sábado, 25 de agosto de 2012

IMORTAL É A MENSAGEM!

Pitágoras proclamou: “Todas as Coisas são Números”. Os que se embrenham pelas florestas numéricas costumam sentir a mesma sensação dos bandeirantes: perscrutam, desbravam, descobrem e se extasiam com a novidade!

Também creio na numerologia! E foi com essa crença nos números que acolhi a incumbência, que é sempre uma deferência, emanada do nosso Presidente Seridião Correia Montenegro para lhes proferir estas singelas frases de efusão. É a nossa festa de aniversário e a mim me cabe saudar os neófitos.

Mirei no calendário nossa data de fundação: 25 de junho. Ano 2005. Se abstrairmos os dois zeros de 2005 também chegaremos a 25. Somando, 2+5 é igual a 7. Sete é o cabalístico número da perfeição. 

Aristóteles dizia que todas as coisas deviam sua existência à imitação ou à representação dos números.

Os pitagóricos também assentaram que é a masculinidade um número ímpar e a feminilidade um número par. Assim, a nossa Academia, sacramentada no altar matrimonial entre o dois e o cinco, nasceu sob o signo da pluralidade feita expressão singular, da unidade fiada na diversidade. 

A ciranda constitutiva da AMLEF exibe uma inaudita sintonia entre a construção rebuscada da erudição e a mais genuína inspiração popular. Em nossos convescotes literários têm desfilado, com igual relevo, a sílaba portentosa e o fonema singelo. 

Os córregos que deságuam neste Sodalício transportam tanto a água quimicamente impecável como a potável água das fontes cristalinas. 

E os que se abancam entre nós nesta noite memorável reforçam essa excelsa tradição. São pessoas oriundas de manjedouras distintas, porém trazem na alma as pilastras da essencialidade humanística da cidadania militante, que mesclam literatura e amor à livre criatura. Saramago já dizia que aonde vai o escritor vai também o cidadão.
É com fraternal prazer que anuncio: os cidadãos José Hilton Lima Verde Montenegro e Antônio Tarcísio Carneiro passam a compor a moldura de Acadêmicos Correspondentes da AMLEF. 

Da terra de Eleazar de Carvalho, Evaldo Gouveia e Humberto Teixeira, o engenheiro mecânico José Hilton, que também perambula pelos campos da filosofia e das letras, resolveu perscrutar a engenhosa mecânica da História. Produziu obras memoráveis. 

Antonio Tarcisio Carneiro é músico, compositor, poeta popular, cantor, contista e dramaturgo. Marinheiro de profissão, nunca olvidou os tórridos rincões de Santana do Acaraú. Por transpiração virou o Carneiro do Sertão. Mansamente se achegou ao nosso convívio. Hoje mansamente correspondemos seu afeto.

No nosso pórtico de honra, na categoria de Acadêmico Honorário, inscrevemos com reverente dignidade os nomes de José Augusto Bezerra, José Lins de Albuquerque e Francisco Eloy Bruno Alves.

Como o próprio nome consigna, o primeiro José tem a sensibilidade do carpinteiro de Nazaré e a augusta solenidade de um imperador romano. O mestre José Augusto Bezerra exibe talento multifacetário: escritura e empresaria, cultiva a bibliofilia e irradia filantropia. Agraciado com a Sereia de Ouro, pertence às mais destacadas Academias Cearenses, inclusive a mais antiga do Brasil. Meu destino eu mesmo traço: a fraternidade me deu régua e compasso – pode ele afirmar parodiando Gilberto Gil. 

Na pessoa do poeta Juarez Leitão, saúdo o meu conterrâneo José Lins de Albuquerque, um ser constelado que conserva a invariável expertise de bafejar com o incenso da competência os espaços por onde passa, poliu a mente e a alma nas montanhas das Minas Gerais. Certamente nas Alterosas apurou a visão aguçada, sedimentou o estilo sóbrio, fiou o jeito silencioso e disciplinou-se no rigor técnico. Pai de oito filhos, com 22 netos e dois bisnetos, o nonagenário, porém adolescente engenheiro, professor, poeta, contista e memorialista mergulhou nas águas plácidas da aposentadoria com a dignidade de um varão de Plutarco, dedicando-se ao culto da família e às delícias do espírito, escrevendo Contos Verdadeiros e Versos de Muito Amor & Outras Poesias.

A primeira reunião desta Arcádia em que me fiz presente ocorreu na Parangaba. Qual não foi minha surpresa quando surgiu ali a figura de um padre: Francisco Eloy Bruno Alves, hoje monsenhor da Igreja Ortodoxa. Àquela época profetizou, fazendo uso de uma parábola evangélica, que esta Academia se assemelhava ao grão de mostarda: embora a menor das sementes, lançada em solo fértil, cresce e se torna a maior de todas as hortaliças. E este vôo imaginativo parece que, agora, ganha contornos de realidade. Após enfrentar problemas de saúde, Padre Eloy retorna à AMLEF.

Exibirá o Diploma de Acadêmico Emérito o jornalista Francisco Lima Freitas. Patrono do municipalismo no campo das letras, Lima Freitas preside o mais representativo sodalício de letras da Terra da Luz, a ALMECE (Academia de Letras dos Municípios do Estado do Ceará). É um apóstolo da cultura, um missionário das letras, semeador de livros e um peregrino incansável da causa literária.

Para abrilhantar nossa bancada de Acadêmicos Efetivos oficializamos o ingresso do Padre Francisco Geovane Saraiva Costa, cadeira nº 8, Patrono Olavo Oliveira; da professora Michelly Barros Andrade Sousa, cadeira nº 15, Patrona Natércia Campos; e do doutor Francisco Régis Frota Araújo, cadeira nº 31, Patrono Antônio Bezerra de Menezes.

O Padre Geovane, que atualmente pastoreia em Fortaleza, aprendeu com dom Helder Câmara, nascido para as coisas maiores, a ser um peregrino da paz. Trabalhador incansável na messe do Senhor, o pároco da Parquelândia é também articulista, cronista e biógrafo. Adentra o nosso círculo para nos ensinar que o ódio e a paz, o simbólico e o diabólico, o céu e o inferno não são instituições alienígenas, mas forças que se debatem no universo do nosso ser. Padre Geovane bafejará este Sodalício com os fluidos da espiritualidade a fim de que nos voltemos, sempre, para os pensamentos superiores.

A professora Michelly Barros é uma heroína popular que seduziu o nosso Silogeu antes da admissão. Sua história de vida é um enredo épico. Muito mais que isso: uma indelével lição existencial. Um culto de amor à luta pela sobrevivência. Um hino à superação. Por mais de 17 anos erigiu sua trincheira nos morros de areia branca e vegetação abundante do Conjunto Santa Terezinha. Da pobreza extraiu beleza. Graduou-se pela UFC e abraçou a causa do magistério. Escritora e compositora, exalta a rica e autentica linguagem regionalista do matuto cearense. Nenhuma porta lhe foi aberta. Ela as abriu. Inclusive as desta Academia. Seu diploma foi confeccionado por uma matéria chamada merecimento. Parabéns, Michelly Barros Andrade Sousa! 

“Instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social” – eis uma parte do Preâmbulo da Constituição Brasileira, a nossa Magna Carta, o principal e um dos mais belos documentos do nosso ordenamento. A terceira cadeira será ocupada por um intelectual irrequieto, amante do direito constitucional, que já percorreu meio mundo estudando essa temática. O professor Francisco Régis Frota Araújo, mestre pela UFC, doutor pela Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha, Presidente da Associação Ibero-Americana de Direito Constitucional Econômico, cujas produções técnico-jurídicas aliam rigor científico e brilhantismo literário, nos honrará com sua distinta companhia. 

Portanto, tomai assento entre nós, humanos livres e de saudáveis costumes! 

Aqui sentireis a camaradagem que contagia um modesto sodalício de destemidos militantes em defesa dos direitos da inteligência, que presta reverência aos ditames do Espírito, que busca cumprir os deveres do coração!

Vamos formar um pelotão de mãos conjuncionais. 

Vamos erigir um monumento ao belo, ao sagrado, ao essencial! 

Publiquemos, juntos, o édito da paz! 

A missão primeira de quem se entrega à tarefa de cunhar as sílabas oníricas é proclamar a civilização da claridade e o império do amor. Deixemos que esta Casa nos transforme em indeléveis centelhas da alegria, eternos operários das estrelas, perenes súditos da aurora! 

Rotulam-nos de imortais. Não o somos. Imortal é a mensagem daquele que consegue encravar sua escritura no solene pergaminho estampado no átrio do sonho humano. 
Para fazê-lo, precisamos emprestar as nossas mãos às invisíveis mãos do Insondável, algo que só é possível quando nos abrimos à iluminação. Por isso o espaço em que vos acolhemos chama-se Palácio da Luz! Assim, vos desejamos êxito no cumprimento deste múnus fulgurante! 

Fiat Lux! 

Viva a AMLEF!

(Discurso proferido por Júnior Bonfim na sessão de ontem da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza – AMLEF – no Palácio da Luz, Fortaleza, Ceará)

Raimundo Candido disse...

Um iluminado, que se irradia em verso e prosa, mas toda essa luz teve a chispa primeira nas brenhas dos Sertão de Crateús e no bucólico Curral Velho! Parabéns Junior Bonfim, um orgulho dos crateuenses!

                                         

                                                           A MÃE
           Olharam-se várias vezes. Em casa, ela gritou: “Era o meu filho!”.

Silas Falcão

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Botequim


              Era um prédio antigo que ficava na esquina da Rua Cel Zezé com a Rua Poeta José Coriolano de Souza Lima, no coração da cidade. O amarelo desbotado das paredes indicava um evidente desamparo e nas entradas laterais, escancaradamente encardidas, via-se o desleixo de cada oitão. Logo cedo, o desembaraçado Teófilo abre as portas do recinto. Alguns fregueses, sequiosos, já o aguardavam para reiniciar mais um dia de rojão etílico, e como nos aconselha o francês Baudelaire, bebamos para não sentir o terrível fardo do tempo que nos quebra os ombros e nos curva ao chão.
              De início, é só pinga-pinga de desocupados cidadãos. Alguém toma um trago fiado, soltam uma conversa mole de quem não infunde a mínima fé, e prossegue no descuido da vida. Os pinguços inveterados esticam o olhar rumo à porta, na esperança de que um (des)conhecido se apiede de seus nervos em frangalhos e lhes pague um trago.
                Na hora do Rush, enquanto os passos da humanidade giram para destrocar uma carcomida fome, um dos eixos móbeis do mundo, alguns agem como autômatos cumprindo uma penosa rotina, e se dirigem aos bares para aplacar a sede que os consomem.
               Enquanto Teófilo disputa uma porrinha de palitos fósforo com o Prof. Praxedes ( peculiar avis rara social ) e despacha outra cerveja a um velho freguês no balcão, um impaciente doutor pede um whisky na mesa. Já está habituado ao intenso movimento sem demonstrar a mínima aperreação.  Ouve-se um reclame, em estridentes berros que vem de uma sala reservada, lá atrás. São os funcionários da Coletoria Estadual que mastigam um litro de aguardente com um indigesto tira-gosto: — Oh, Teófilo, a panela de buchada até que está boa, mas este cheirinho de rato é que estraga tudo! E botequeiro se justifica:
               — Desculpem pessoal! Coloquei umas vitaminas para os ratos. Mas não se assustem, pois acho que dentro da panela, não caiu nenhum rato morto, não!
              Uma questão complicada nos bares é na hora de pagar o que se deve, é só falar em acertar uma conta que se estampa a alegria nos olhos dos donos dos botequins. Alguém pede para somar o débito, que já vem se acumulado há dias... A amnésia de bêbado é coisa notória e trivial: — Eu não bebi essas cervejas todas, Teófilo!  Mas um brincalhão, ali por perto, sempre tira um sarro da dúvida alcoólica:  — Ora, ora...a cerveja estava aí, geladinha, só esperando. Se você passou em frente ao bar e não entrou para beber... O Teófilo anotou!
               Alguns quarteirões dali, esquina da Rua da Pimenta, Elias Vieira, outro barmen show, atende com distinção e gracejos aos seus fregueses. Sempre que abre uma cerveja, dá umas embaixadinhas com a tampa da garrafa, demonstrando o talento e arte que lhe sobraram dos salões de dança, era um carrapeta. Uma vitrola solta a voz de antigos seresteiros para o deleite dos ébrios que regam a saudade do que nunca tiveram ou nunca terão.
              Um pé de valsa, já meio zonzo, cantarola a canção que só se efetua na veludosa voz do cantor Jessé, a grande atração da Boate do Louro da Cruz, logo mais: “Rimas de ventos e velas / vidas que vem e que vai / a solidão que fica e entra / me arremessando contra o cais”, e recordo-me dos colegas, barcos ébrios, que tentarão encher o tanque no botequim do Valmir, antes de ir ao show do Louro. Espero que Juracy, não engorde o olho mais uma vez e faça a polícia fechar o pobre Bar do Valmir, aonde temos direito a uma cuspidela ao pé do balcão.
              São diversos os pontos onde a população etilista ingere uma abrideira, o primeiro trago, passando pela saideira, a tangedeira até chegar a irremediável caideira. Na bodega do Luiz do Emídio, última estação da Frei Vidal, pode-se entrar, abrir a geladeira, escolher a loura mais gelada e apreciá-la sentado sobre o balcão.  Liberdade assim, nem na nossa casa. Já no Bar do Tio Onésio, sócio do Lourinho, é um clube de elite, embora esteja situado no Beco da cachaça, o pinguço de lá mostra um pedigree até nas feições do rosto, que o diga o bancário Júlio Menezes.
                Das classes de bêbados a mais desregrada é a dos poetas. Um deles ousou dizer: “O álcool é como o amor. O primeiro beijo é mágico, o segundo é íntimo, o terceiro é rotina. Depois dele, você tira as roupas da moça” E de todos os poetas embriagados, o Velho Safado chamado Charles Bukowski bateu todos os recordes, era como se tivesse um carimbo na testa: Eternamente Ébrio!
              Por aqui, na terra da puríssima ou desdobrada Lagoa do Barro, um poeta tentou passar de consumidor a produtor de aguardente, mas as circunstâncias providenciais lhes tiraram as duas possibilidades e ele foi ser poeta-compositor-construtor. Nunca devemos lamentar que um poeta torne-se um bebedor, devemos lamentar sim, que nem todos os bebedores sejam poetas.
               Um dos mais antigos barman que se tem notícia no mundo chamava-se Eubulo, em 375 a.C. na antiga Grécia. Ele descreveu, com detalhes, como se conduz eficazmente um bar: As três primeiras taças de bebida são para os comedidos, a primeira é para saúde, a segunda para o amor e o prazer e a terceira para o sono. Devemos avisar aos consumidores que já basta e os persuadimo-los a ir para casa. Se insistirem em ficar, é exclusiva por conta e risco. Só avisamos, amigavelmente que a quarta dose pertence à violência, a quinta ao tumulto, a sexta, à folia, a sétima, aos olhos roxos, a oitava ao policial, a nona, à bílis e a décima dose à loucura e ao desespero. Sábio Eubulo!
               Depois que a Presidente(a) Dilma Rousseff presenteou o poderosíssimo Barack Obama com um litro de cana, de edição limitadíssima, no valor unitário de R$ 212. 000, 00, cheguei a conclusão, pelo bocado que bebi (Mais que um bocado!), de que já ingeri um rio de dinheiro.
                Para quem bem sabe, até a história do Brasil foi escrita sobre os tonéis de cachaças. Os irmãos portugueses quando caíram na besteira de proibir a nossa branquinha pela desgostosa bagaceira deles, transformaram a cachaça no símbolo de resistência ao Império Lusitano e vencemos, de copo na mão, mais uma guerra.
               Há quem diga que a nossa aguardente, a malvada, o mé, o engasga-gato, a água que passarinho não bebe, serve até de remédio: cura gripes, elimina os vermes, debela frieiras, espanta as tristezas e outras mazelas... Eu acredito! E despeço-me desta mesa de bar com mais um dito do velho vate bebedor Baudelaire: “ É preciso estar sempre embriagado. Eis aí tudo: é a única questão. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa maneira. Mas embriagai-vos!” Até e deixo, para não perder o costume, a conta dependurada no prego mais alto da prateleira.

Raimundo Candido
Silas Falcão disse...
Poeta Raimundinho, você me (re) conduzia aos bares da juventude. Com os amigos ou meu pai, tomei todas no bar do Teófilo. Seu Eliás, que tinha um filho que o chamávamos de Jerry Adrianne, foi outro bar da minha boêmia. Tinha também o Zé Artur, no bairro dos Venâncio. Bela crônica.

José Alberto de Souza disse...


ExcluirPara o santo, o primeiro gole derramo no chão e os outros vou distribuindo sem distinção. Agradeço esta alma caridosa que me pagar a conta.

Leitura em Noite de Gala


A Escola Estadual de Educação Profissional Manoel Mano tem o prazer de convidar Vossa Excelência a um passeio pelo mundo dos clássicos da Literatura Portuguesa e Brasileira.

 Data: 24-08-2012
Horário: a partir das 19:00h
Local: Rua Julio Lima, 2194

(SIC)

quarta-feira, 22 de agosto de 2012




                                              NA MANSÃO

– Pai, o senhor compra uma coleção de crianças para eu brincar?

 
Silas Falcão

terça-feira, 21 de agosto de 2012



                                                      UTI
“Você sabe com quem está falando?” era o seu comportamento.
Hoje o seu coração pergunta: “Você sabe com quem está falando?”.
Silas Falcão

domingo, 19 de agosto de 2012

Avôhai


             Um poeta- cordelista-agricultor, lavrador de Cante Lá que Eu Canto Cá, entediado com tantas homenagens e títulos que lhe foram concedidos por diversas Instituições de Ensino Superior – cinco “Doutor Honoris Causa” – num repente de ocasião gorjeou com saudades da roça, onde matutava de inverno a estio afeito patativa, com foice e enxada na mão: “Chegando o tempo do inverno, / tudo é amoroso e terno, / sentindo o Pai Eterno / sua bondade sem fim. / O nosso sertão amado,/ estrumicado e pelado, / fica logo transformado / no mais bonito jardim.”
Ainda é um poético paraíso, mesmo com os apetrechos da modernidade que instalaram por lá: um amplo estacionamento de carros, um rumoroso bar, piscina azulada, campo de futebol e um grande salão de eventos. Mas o bonito e bucólico jardim era quando a branca casinha da Fazenda Pereiros, rodeada de frondosas algarobas, tinha um alpendre com um parapeito convidativo ao sossego da gente e não impedia que o olhar contemplativo, de quem se esticava numa alada rede de algodão, se deleitasse na visão aguada e aromal de um açudinho chamado Jaibara. Naquele lugar, dificilmente acharemos um pé de Pereiro, árvore nativa da caatinga nordestina, pois foram quase todos transformados em estacas de cercas, lenhas e carvão.
                Os primeiros meses de chuvas são bonitos de se ver, espontaneamente jorra um rejuvenescido sertão. Tudo verde, tudo alegre e a vida a brotar do chão. Na arejada varanda da fazenda, uma cena incomum já nem chama atenção dos habituais visitantes dominicais: um manso canário-da-terra se empoleira no punho de uma rede com varanda de crochê e trina reverenciando ao homem que ali está, majestosamente, deitado.  O Senhor Júlio Facundo de Menezes, com mansa serenidade a transbordar de um meigo olhar, demonstra infinita sabedoria que só subsiste na humildade dos que já nasceram sabendo viver. Contempla os meninos, que brincam inocentemente no terreiro e nota a ausência da Delite, a filha mais velha, que está sendo esmerilada carinhosamente pelos avós maternos, o fazendeiro João de Matos ( Pudidi) e a bondosa avó (Budidi), também sente a ausência, pelo vago olhar, de José e Antonio Belê, mas não no soberbo coração.
              Chama o mais irrequieto dos meninos, que se diverte com o irmão Wilson e pergunta, para mostrar o orgulho de pai, pela perspicácia de um filho precoce:
               – Oh, Joãozito, venha aqui e me responda, o que você vai ser quando crescer?
               O ingênuo menino ouvira falar que Dédalo para fugir do Labirinto, prisão do mitológico Minotauro, inventara um par de asas coladas com cera nas costas. E ruflaram, um sábio pai acompanhado do filho, o imprudente Ícaro, na busca de liberdade, rumo ao encontro da realização do sonho maior da humanidade: voar como os pássaros. E o menino resoluto, responde:
             – Papai, eu quero ser piloto de avião!
              Admiram-se todos, inclusive Vilebaldo Martins, um senhor careca, de riso solto, dono de um posto de gasolina, há muito amigo da família. E com voz grave, afirma:
             – Amigo, Júlio, eu tenho a impressão de que esse menino herdou toda impetuosidade dos Matos. Não tem uma gota da paciência dos Menezes, pois mal se desprega do chão para andar e já está é pensando em voar!
              Um cheiro de grão torrado atiça as narinas, é quando Dona Maria de Matos manda trazer um cafezinho quente que é servido com queijo coalho, acabado de sair da prensa. Com a resolução de quem é habituada a tomar decisões e emitir opiniões, anuncia:
             – Ano que vem, mandaremos os meninos para estudar em Fortaleza. As meninas vão para o colégio de Nossa Senhora do Sagrado Coração das irmãs Dorotéias, e os meninos vão se aplicar, para ser doutor. Já acertamos a viagem no caminhão do Sr. José de Alencar.
             Com a debandada dos filhos para o mundo, os pais padecem na expectativa dos mesmos, premeditam os sonhos e almejam um feliz regresso ao lar. O Joãozito, como ele mesmo profetizara, retorna como piloto da aviação comercial e avisa que chegará nas asas de uma assustadora e metálica esperança. Os amigos e familiares o aguardam, ansiosos, na Fazenda.
              Os galos das torres da igreja nunca haviam tomado um susto tão grande como o daquele voo rasante sobre a praça. No desfecho dos anos 40, foi o primeiro piloto crateuense a se exibir por aqui e se dirige como ligeiro falcão para os Pereiros, num espetáculo arriscado da arte de pilotar. Dizem que as galinhas ficaram sem nada para ciscar no terreiro, perdendo inclusive as penas depois que o aparelho passou lambendo a chão, onde há pouco um magricelo menino sonhava em pilotar um avião.
             Com a aeronave na pista de pouso do campo velho, mal se estira na rede da varanda para agradecer os calorosos aplausos, recebe ordens da mãe, Dona Maria, para deixar uma amiga que está mal de saúde, em Fortaleza. Mesmo a contra gosto, vai. Quem é ele, para desobedecer à índole rija da filha do poderoso João de Matos?
              Foi outra grande admiração, quando perceberam que, mal a alquimia do temperado almoço irradiava o aroma de um farto banquete no ar, o top gun indomável já estava de volta ao lar. Tinha a índole de um Santos Dumont nas veias, mas o destemor mitológico de Ícaro na alma. O mesmo inclemente sol que derreteu as asas do mitológico grego voador presenciou o nono acidente aéreo que o vitimou, carbonizado ao bater nos fios de alta-tensão.
              Um poeta português, das múltiplas personalidades, tinha razão quando disse: o nosso viver é um morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela. Dona Maria de Matos, também se fora. Sabemos que para se suportar melhor a vida devemos está pronto para, também, morrer. E a poesia da velha Fazenda Pereiros foi se apagando aos pouco!
              O transporte para a cidade era feito sobre um felpudo coxinil branco na cela de um alazão machador, treinado por Cícero Maçal, um exímio adestrador de cavalos. O Padrim Júlio constantemente vinha para a casa da Dona Delite, na cidade e neste sempre vir, foi ficando, para alívio do cruel isolamento, desafogo da solidão e alegria dos netos. Tínhamos bons momentos de recordação com as repetidas lembranças de Vovô, pois recordar antigas venturas ainda é um puro momento de felicidade. Até num resmungo infantil ele rezava na gente: “Cancão do bico torto do sobrecu arrebitado...” e a dor logo se ia.
             O Manoel Nene Martins Coriolano, um reservado advogado com licenciatura plena e total em História, foi quem me confirmou: – Raimundo, o teu avô era um grande historiador- memorialista e foi uma pena ter partido sem deixar registrado todas aquelas boas lembranças. Fez questão de me recordar uma delas, a história do Padre Verdeixa.
             Seu Júlio dizia que o Pe. Verdeixa, da região do cariri, depois de ordenado, mostrou-se ateu e sacrílego e por se meter em arrojados litígios políticos, sempre se opondo aos sistemas de governo, ficou um indivíduo homiziado, constantemente perseguido por Jacarandá, um alferes do Exército que seguia seu rastro por onde andasse.  Uma vez, no distrito de Siupê, em Caucaia, bateu à porta de um camponês, a quem pediu abrigo. A dona da casa estava em trabalho de parto, assistida por um feiticeiro. O Padre o expulsou e rabiscou umas breves palavras num papel, colocou o escrito dentro de um saquinho em forma de esculápio, pendurando-o, urgido de devoção, no pescoço da parturiente e quase que instantaneamente um novo ser veio ao mundo. A população ficou grata ao santíssimo homem. Verdeixa seguiu em frente com os agradecimentos monetários daquele humilde povo e o saquinho maravilhoso ficou de pescoço em pescoço realizando prodígios.  De tanto andar, o medicinal e milagroso esculápio descosturou-se. Alguém violou o segredo e leu com espanto o que achavam ser uma valiosíssima oração-forte: “ - Vamos passando bem, eu e meu cavalo, se quiser parir, poder parir! Se não quiser, pode morrer entupida! “
            Embora gostando de contar saborosas histórias como essa uma neta me afirma, a escritora Vera Lúcia Menezes, que Vovô assistia a todas as missas, compenetradíssimo, e no final da solenidade ainda beijava a mão do digníssimo padre. 
            Um dia, como os passarinhos, que ele gostava de alimentar na calçada da Rua Frei Vidal da Penha, como se soubesse o último dia de sua longa vida, deita-se, vira de lado e parte, sem dizer um adeus.
             De tudo resta um confidencial silêncio que reverencio, não com o trinado do extinto canário dos Pereiros, mas com uma composição magistral e emocionante voz do compositor Zé Ramalho: ” Um velho cruza a soleira /de botas longas de barbas longas / de ouro o brilho de seu colar...” Depois do instante silencioso, que por si é oração, só a música para me manifestar o inexprimível.  A alma enternece e as lágrimas caem. É o Padrim Júlio, pai e avô, como uma canção! “ Pares de olhos tão profundos / que amargam as pessoas / que fitar” Nos é retirado pelos anjos, num condolente fim de tarde, amabilíssimo Avô, Pai... “Oh! Meu velho e invisível Avôhai...   


 Raimundo Candido

José Alberto de Souza disse...
Que pena de mestre, varando a nossa sensibilidade com histórias emocionantes e transcendentes