Com
exceção da lascívia dos felinos sobre a vertente dos telhados e da
permissividade dos ébrios inveterados deslizando pelas ruas da cidade, tudo que
vagueia ao relento faz parte da obscura mazela que povoa a calada da noite. É a
hora em que as máscaras caem e o sorrateiro mal avança. Momento em que os
valores morais e éticos são postos à prova, pois é na recôndita calada das
trevas que as hienas espreitam!
Quando
os vampiros saem de suas tocas, ávidos por sangue, quando os guizos das
cascavéis chocalham com seus mórbidos avisos, é a dita hora em que as coisas
que não podem ser feitas em público, são postas em prática. Mal o limite do
oculto se amplia, os crimes contra o povo são perpetrados. É no momento em que
os olhos da dignidade serenam, distraídos, sem espreitar nem se precaver do
secreto, aí o falso moralista mostra que não passa de um hipócrita. A ganância humana vira lobisomem!
O
áspero cabo de aço intrometeu-se pela janela do oitão da Rua Cel. Zezé
deslizando pela velha sala de visita - na qual esparramava-se o sonolento
semblante de uma tradição, a face de uma era - e saiu pela claridade da Rua
João Tomé, num serpentino abraço atando-se a um robusto trator, que já roncava.
A tração, um cortante cerol, talha a grossa parede de imensos tijolos como faca
amolada no queijo coalho e tudo vem abaixo. As gerações dos aguerridos Mourões
abalaram-se em seus incorpóreos alicerces, agora sem o bacamarte em punho para
revidar, sente-se a falta da pena do poeta José Coriolano para protestar contra
o ato insano em seu sanguíneo cabedal. O Coletor Estadual e chefe político Enoque Mourão, com
todos seus descendentes, se agita, de onde está, sem nada poder fazer. Ruiu,
como um castelo de cartas, o Casarão dos Mourões!
Há
muito que se notava uma força estranha estendendo tentáculos gananciosos pelas
terras do Senhor do Bonfim, como uma sombra que caminha agachada,
sorrateiramente a negacear, a tirar proveitos de ajustes escusos, como os
judeus, de quem nos fala Gustavo Barroso em Historias Secretas do Brasil, que
com os repulsivos lucros desde o tráfego negreiro, com os ágios de corrupções e
das drogas, vêm comprando o Brasil e o mundo. Estarão, também, devorando os
velhos casarões de Príncipe Imperial, em busca de uma legitimidade?
Já
passava da meia-noite, quando o bancário Fred observa uma poeira de escombros
subindo pelo cruzamento das Ruas Barão do Rio Branco e Cel. Lúcio e percebe a
tramóia, era a iminência de mais um crime na calada da noite. Liga para o Professor
Paulo Geovane que alardeia a todos na reunião do comitê do Partido Socialismo e
Liberdade, Psol:
-
Meu povo, estão derrubando mais um casarão da cidade!
A Professora Adriana Calaça, candidata a
prefeita, alvoroça-se e parte na frente, rumo ao anunciado endereço, seguida de
perto por Geovane.
O
trator já patina no assalto, em marcha à ré, tracionando um forte cabo de aço
amarrado nas paredes do imenso Casarão dos Machados: Vroom!! Vroooom!!!
Vroooooomm!!! Os olhos espantados de Adriana Calaça clareiam-se num lampejo de
coragem e determinação, como nos raros momentos da história em que surgem os
heróis, quando ouviu um estalido seco, como um chicote no ar: Páááá!!! O cabo
de aço partira-se! De imediato avisa para seu companheiro de partido: - Paulo, isso foi um aviso! É para nos dizer
que não deixemos esse povo demolir o casarão! Siga-me!
Passam
por baixo do cabo de aço, que um funcionário novamente amarrava por entre os
janelões, e postam-se, corajosamente, em frente ao paredão que irá cair!
O
motorista do trator e os recentes donos do prédio, aos gritos, avisam:
-
Vocês são loucos!!! Vão acabar morrendo se não saírem daí!
A
turba que aguarda, ansiosa, para assistir ao espetáculo do tombo do Castelo,
estava dividida. Alguns, subordinados pelo dinheiro, gritavam:
-
Derruba por cima! Mata! Mata a prefeita!
Rapidamente,
outras pessoas foram chegando, e dão apoio à temerária dupla, armada somente
com a disposição extraordinária de alma de guerreiro. O poeta Elias de França,
notando que não se entenderá com os proprietários por meio de meras palavras,
liga para o Promotor de Justiça, Dr. José Arteiro, e marca-se uma Audiência
Pública de conciliação entre as partes, os proprietários do prédio e Academia
de Letras de Crateús representando a sociedade civil. A reunião de conciliação
foi presidida pelo Juiz da 3ª Vara de Tauá, Dr. Adriano Pontes de Aragão.
Naquele dia, assistiu-se a um belíssimo show de erudição e discernimento de um
honrado magistrado, que lembrou a sabedoria bíblica do Profeta Salomão,
confirmando que a força da lei, em mãos hábeis e sábias, é o poder que
restaurará a Nação. Assinou-se um acordo de preservação da fachada histórica do
Casarão dos Machados, mas este já havia confirmado a sua inalterabilidade na
face do tempo, desde o dia em que recebeu o batismo da eternidade por um raio
de cem mil volts mandados pelos céus, e que escoou pela fachada em mistura de
barrenta descarga elétrica, cal e tijolos do pico do seu oitão.
A
lei Nº 186 de novembro de 2011 que dispõe sobre a preservação do patrimônio
histórico, cultural e turístico do Município de Cratheús protege os prédios
históricos, e afirma: pela destruição, pela demolição do bem tombado, multa de
até dez vezes o valor venal do edifício.
Mesmo
assim, as madrugadas sonolentas da cidade são inimigas do nosso patrimônio e,
numa mera distração da dignidade, a ganância continuará a detonar nossos
casarões, pelas frientas caladas das noites.
Uma
sensação de temor e apreensão ainda desfila pelas madrugadas da Rua João Tomé,
esquina com Cel. Zezé: O Casarão, aonde Dona Isabel Bonfim Leitão serviu água e
café para o falso aleijado, Cap. Pretinho, alertando a cidade para a presença
de um perigoso espião da Coluna Miguel-Prestes, pode a qualquer hora amanhecer
no chão!
Uma sensação de temor e apreensão ainda
desfila pelas madrugadas da Rua Padre Macedo com a Rua Firmino Rosa: O Casarão
dos Bonfim, sede da Fazenda Piranhas, que ostenta o símbolo da Intendência
Municipal em sua fachada, pode a qualquer momento amanhecer no chão!
Uma sensação de temor e apreensão ainda
desfila pelas madrugadas da Rua Carlos Rolim com a Rua Dr. José Coriolano: O
casarão onde morou Padre Macedo, que um dia hospedou o escritor Antônio Bezerra
de Menezes e de onde o criminoso Adriano pulou a janela após esfaquear o
sacerdote, pode a qualquer instante acordar no chão!
Uma sensação de temor e apreensão desfila
pelas madrugadas das ruas da cidade aonde ainda exista, de pé, um histórico
casarão: pode não haver, nesta noite calada, fria e desprevenida, uma
heroína-guerreira, uma entusiasmada Adriana, decidida e de prontidão!
Raimundo
Cândido
José Alberto de Souza disse...
Às vezes, me quedo perguntando, se a humanidade ainda não se encontra preparada para o progresso, será que não precisa duma nova Inquisição?
José Alberto de Souza disse...
Às vezes, me quedo perguntando, se a humanidade ainda não se encontra preparada para o progresso, será que não precisa duma nova Inquisição?