terça-feira, 5 de junho de 2012

Caçadores de Tesouros




Nunca o implacável tempo deu um mero sinal de cansaço na função de arrastar o mundo em redemoinho voraz, consumindo tudo, devorando a todos e deixando escassas imagens estampadas no ar, como vulto de um passado.
Ele sempre transpassou borrifando um ácido corrosivo na pele das coisas que se alteram, impreterivelmente, compondo aparêcias sombreadas decorrentes de um lento processo de metamorfose.
 É quando a nossa atenção se volta para outro rumo, para o que é mais ostentoso aos olhos, sempre sequiosos por uma novidade, sedentos por mudanças.
E assim, as essências das épocas caem num esquecimento impiedoso, sem data prevista para acabar. É como se bebesse a água de um dos rios de Hades na Grécia antiga, o célebre e lamacento Lete, que cruza a morada dos mortos com seu fluido aquoso a provocar um demente olvidamento.  A realidade transitória das coisas, como os homens, está sujeita a esta maresia, mesmo que esteja bem longe do mar. É necessária uma compleição forte para burlar o zelo profano do tempo em nos repostar como poeira da eternidade, e só conseguem este grande feito os tesouros verdadeiramente determinados, os que já deixaram em seu pretérito a feição da imortalidade.
A estes, que brilham mesmo na escuridão momentânea do esquecimento, o destino sempre dará um jeito para que voltem a cintilar, fazendo com que alguns devolutos cidadãos se transformem em caçadores de talentos perdidos, incumbindo-se da nobre missão de procurá-los: — Oh, doce brisa do norte, avistaste algum disperso poeta por aí? Saímos a revirar as entranhas abissais da terra, investigando nas fendas do tempo, auscultando seu tíbio sopro e até pomo-nos a catar nos entulhos abandonados pelos desleixados entes queridos, tudo para redescobri-los e salvá-los, e a isso nos dispomos.
Como os três mosqueteiros de Alexandre Dumas, Athos, Porthos e Aramis, partimos, eu e meus intrépidos companheiros: Edmilson Providência, um cabra bem oh xente, que veste o manto da composição poética, e o nobre historiador Flávio Machado, rumo à aventura, numa atitude que já se tornou bem habitual.
Havia começado “a busca”, casualmente, numa pesquisa de campo nos distritos de Crateús para o Livro dos 100 Anos, quando admirado soube da existência do poeta de Monte Nebo, Nelson Sabóia Barros, nascido no sopé da Serra Grande e de lá partiu, maturado e afeito ave migrante, para se revelar na distante cidade de Sobral, sob os olhares do poderoso Dom José Tupinambá da Frota.
 A esse, Monte Nebo com certeza lhe dará mérito, e louvará a sua gloria como se deve exaltar a um filho querido que transporta nos ombros e nos versos a história de seu lugar.
Era como se levássemos uma quartinha com as águas do rio Mnemósine, a contraparte do Lete, e ao chegarmos no Curral Velho dos Bonfim aspergimos a água benta da memória e pululou poetas de todo canto, como se estivessem em sortilégio por muito tempo e agora vicejam e versejam ao vento. O Curral Velho é um grande celeiro de poetas. Só tivemos que separar direitinho, com ajuda do vate Dideus Sales, o enganoso joio do essencial trigo.
O Bastiãozinho, debaixo de uma velha casa alpendrada, observava-nos com um olhar penetrante e com certeza já sabia o que fazíamos por ali, pois nada disse e nada perguntou. Devia refletir sobre o destino de outro vate, seu amigo, que fora morar na cidade aos cuidados da família, o ativo e falante Datim Bonfim que gosta de recitar: “Tem quatro coisas no mundo/ Que faz eu trocer o camim/ Uma rodia de cascavel/ Uma briga de guaxinim/ Dos bebos do Curral Velho/ Ser morador dos Bonfim”.
 O poeta Junior Bonfim, essência e pó do extremado nectário do Curral Velho, foi quem nos lembrou, no Livro do Centenário: “Foi um fidalgo das letras que teve a graça de alcançar os píncaros da glória!”. E saímos à procura dele - José Coriolano de Souza Lima, o Príncipe dos Poetas - um grande crateuense.
O pesquisador incansável, inquiridor metódico, um perfeito historiógrafo, Flávio Machado, liga-me dizendo que no Livro “Meus Avos” de Raimundo Raul Correia Lima, na página 247,  poderia encontrar os dados exatos do poeta.
E vi entre as páginas amareladas deste livro, que conta a história da família correia Lima, a grande festa em homenagem ao vate crateuense.
A missa solene, no dia 30 de novembro de 1947, um ensolarado domingo, já havia acabado e o Pe. José Maria Moreira do Bonfim abençoou a lápide em que se encontram os restos mortais do poeta, quando todos foram convidados a se dirigir ao largo, no lado esquerdo da matriz, onde um pano encobria, como surpresa, um monumento.
O prefeito, Dr. Afonso de Almeida Vale, depois de descerrar o busto revelando um rosto fino sob um cabelo ondulado, o nariz afilado e um brônzeo olhar de poeta perscrutador, foi primeiro a falar. Advogado, de palavra fácil, exímio orador, encantou a plateia que se aglomeravam em círculo apurando a audição para ouvi-lo melhor. O doutor aproveitou a ocasião e mostrou seus dotes de excelente declamador, recitando o poema Crateús: “..... terra, onde a alvorada/ Primeira pra mim raiou!/ Onde a primeira morada/ Meu pai querido assentou! // Onde o galo, à madrugada/ Cantando me despertou!/ Onde à primeira alvorada/ Ouvi-lhe o có-corô-cô!”
Uma salva de palmas ecoou infundindo inveja aos badalos dos sinos que assistiam do alto das duas torres da matriz. Os vereadores presentes, Leônidas Bezerra de Melo, Chico Gomes, Tobias Soares Resende entre outros, olhavam sentindo vontade de ter sido deles aquele momento de exaltação ao digníssimo poeta. Encerrada a festa, todos se dirigiram a suas casas, buscando repousar para mais uma semana de trabalho.
A quem afirme que a vida é uma lousa e o destino quando quer escrever um novo caso precisa apagar o anterior, só para confirmar que esquecer é uma necessidade. Mas isso é  para as lembranças imediatas e passageiras. O que se viveu intensamente nas cordas do coração, não se pode desprezar; as pegadas marcadas na alma são indestrutíveis.
Mas o implacável tempo que nunca deu um mero sinal de cansaço na função de arrastar o mundo em redemoinho voraz, fez o busto sumir, desaparecendo, levando até a lembrança do poeta.
                Dizem que a família o retirou pelo descaso e abandono com que se encontrava em plena praça, comprovando que a ingratidão tem memória curta.
Foi quando os três mosqueteiros, como uma infalível cavalaria, entraram em ação numa descomedida busca pelo torso do poeta. Conjecturava-se: — Um busto tão pesado não pode ter saído a andar por ai, ou criado asas imitando a imaginação de poeta Coriolano! Por fim, alguém afirmou: — Tenho certeza de que o busto foi derretido! Uma tristeza enorme apossou-se dos animados caçadores de poetas, deixando-os em desalento profundo e, com olha incrédulo, perguntávamos ao vazio: — Como pode um líquido brônzeo que representa nossa poesia, escoar pelo ralo da ingratidão e desaparecer nas coxias da ignorância?
Como Aramis, um racionalista, detalhista e corajoso, o poeta Edmilson Lopes logo arranjou novas soluções e mobilizou a família inteira do poeta, espalhada pelos lugares por onde ele palmilhou o seu encantamento e seu valor. Premedita-se uma nova festa como aquela do domingo batido de sol, no ano 47, quando um novo busto resplandecerá na Praça José Coriolano, provando que o coração do poeta ainda pulsa e sua mente ainda vive.
E sinto-me um pouco o Athos, desacreditado e desiludido com os tristes fatos da vida, mas já mandei fazer uma roupa nova, como aquela de primoroso brim que minha mãe sempre me presenteava no natal para ir à praça. Tomara que na festa do retorno do Poeta José Coriolano, tenha o saboroso bolo de milho e o delicioso aluá feito com água do memorável Poti, para reviver alguns momentos felicidade. E antes que me esqueça, meu(minha) querido(a) amigo(a), você também está convidado.

Raimundo Candido

Antonio Edmilson de Sousa Lopes  disse...
Caro amigo Raimundo,  confesso que fiquei sensibilizado com seu texto, você conseguiu passar uma emoção muito grande e um desejo de cada vez mais mergulhar neste resgate cultural que , sem dúvidas,  vai ser de grande importância pra nossa cidade e com certeza vai abrir a possibilidade de muitos outros resgates.    Parabéns.

José Alberto de Souza disse...
Lembra aquela história da Taça Jules Rimet, conquistada em definitivo pelo Brasil em 1970.
Enquanto a original era exposta ao público, guardava-se a sete chaves a réplica.
Deu no que deu, quando a mesma desapareceu bem diante de nossos olhos, sabe-se lá se foi derretida ou não.
Por via das dúvidas, ainda guardo uma garrafa de cachaça no formato "Campeã do Mundo"...