O sertão de Graciliano Ramos,
árido, sofridamente lastimoso, com Fabiano, Sinhá Vitória, os meninos e a
cachorrinha Baleia em duras penas pela sobrevivência, massacrados pela Caatinga,
castigados pela natureza, não existe mais não!
O sertão de Guimarães Rosa,
inóspito, hostil e perigosamente agressivo pelas azáfamas de Riobaldo e
Diadorim, espalhando sangue e medo nas travessias, em veredas palmilhadas pelo
cramulhão e pela morte, não existe mais não!
O Sertão de Euclides da Cunha,
discriminado, torturado e injustiçado pelas vicissitudes do tempo, com o
sertanejo submetendo-se, por descrença nas leis da terra e pela fé na justiça
do Céu, a um determinismo banal, não existe mais não!
Não é que o sertão de
Euclides, de Rosa ou de Graciliano tenha mudado, não! Ele continua rústico,
permanece difícil e bastante inóspito, é que as pessoas aprenderam a conviver
com as agruras das invisíveis labaredas de fogo no ar que tostam o poeirento
chão do sertão. E o sertanejo venceu,
com denodo, com pertinência, com coragem os obstáculos que o impediam de viver
com alegria, com satisfação e descobriu a certeza de que a vida (E vida bem
vivida) é possível neste duro chão.
O Sertão de Cratheús é um
mosaico de gentes, ladrilhado por povoados, ligados por longas estradinhas de
terra batida, ladeadas por marmeleiros, angicos, aroeiras e mandacarus, como
guias nas veredas, dando as boas vindas aos visitantes que se aventuram pelos
longínquos interiores, isolados do burburinho da cidade.
Fui confirmar essa animada
mudança, do aspecto gracilianizado, do jeitão rústico do sertão roseano e do
fervoroso ar euclidiano para o contente clima do sertanejo Antônio Quina, na
Fazenda Poço da Pedra, no Distrito de Curral Velho e constatei a metamorfose do
sertão, agora repleto de alegria, agitado pela prática do futebol e animado
pelas diversas bandas que tocam no Forrozão do Antônio Quina: Pakerê, Toca do
Vale, Karkara, Som do Oriente, Forró Santana, Crisântemo Show Banda, Edilson
Vieira... Como em todo povoado, a gente vai logo avistando um amplo Campo de
várzea com as pesadas traves de angicos e uma murada, ao lado, que guarnece uma
quadra de cimento liso, junto a um palco, para exibições das agitadas bandas de
forró.
O torneio de Futebol era o
comentário principal em toda região: Varjota, Novilho, Croatá, Várzea da Palha,
Curral do Meio, Curral Velho e até nas localidades do vizinho município de
Tamboril. Que se estivessem ordenhando as vacas nos currais, ou nas limpas de
roças, ou tangendo os jegues com ancoretas de água das cacimbas do Riacho
Pinheiro ou sentados em tamboretes, pelas calçadas no crepúsculo vespertino,
descansando da luta diária, o assunto era o mesmo, e ainda faltando dois meses
para o início do torneio.
Dezenas de animais, cavalos,
burros, jegues ficavam amarrados nas cercas, nos troncos das árvores e as
bicicletas em volta do campo até lembravam o estacionamento de uma grande
fábrica chinesa. Os torcedores já rodeavam o campo para assistir à partida
final entre o Esporte Clube Assis e o Corinthians do Poço da Pedra, que
decidiria o campeão. O Juiz, lá no meio do campo, ouviu uma leve ameaça: - Se
esse cabrinha não apitar direito, depois do jogo, daremos uns panos de faca
nele!
O futebol do interior é
corrido, tem objetivo, nada de atrasar uma bola sem precisão. Os passes são
longos, pois folego é o que não falta no homem do sertão. Antônio Quina era o
centro avante titular do Corinthians, não porque fosse o proprietário do time,
do campo ou da bola, era pela força física e pelo tino de artilheiro,
cabeceador nato e senhor da camisa 9, além de eficiente técnico ( Diz: Jogador
meu não mata a bola para dá um drible sem precisão!). Mal o Quina pegava na
bola o povo gritava, na expectativa: - É agora! É agora! É agora! E se os
ponteiros estivessem correndo pelas laterais, recebia ordem determinante da
torcida: - Joga logo essa bola na cabeça do Quina que é gol! Era dito e feito.
É exigente, a torcida do Poço da Pedra: - Tira
esse pé torto daí! Gritavam com quem chutava a bola para o mato. Se rifassem a
bolota, eles vociferavam alto: - Estrupeiro!!! Só sabe dá balão, parece que
quer furar as nuvens! E o juiz que não caísse na besteira de “errar”: -
Ladrão!!! Filho de uma égua parida! Com os dois gols de cabeça de Antônio
Quina, e um chute certeiro de Cimar Melo, o placar anunciou 2 x 1 e o
Corinthians do Poço da Pedra, mais uma vez, sagrou-se campeão.
Depois do duro empenho no
Futebol vem o forró, que ninguém é de ferro. Antônio Quina já tinha deixado
quase tudo preparado, as cervejas geladas, as bebidas quentes nas prateleiras,
os tira-gostos, o palco e as mesas arrumadas,
tudo já estava no ponto para mais de mil pagantes na festa, que seria ao
ritmo da famosa sanfona de Edilson Vieira.
Enquanto a banda toca os “Pés
de Serra” gostosos de ouvir e dançar (Quando eu vim do sertão, / seu môço, do
meu Bodocó / A malota era um saco / e o cadeado era um nó / Só trazia a coragem
e a cara / Viajando num pau-de-arara...)
Antônio Quina circulava entre as mesas, por entre os casais que dançavam
como carrapetas no salão, de olhar atento, vendo os mínimos detalhes de cada
movimento, com cuidado especial no comportamento dos que bebiam em exagero,
para que tudo corresse na tranquilidade e na paz. Uma trabalheira danada para
quem já tinha disputado três partidas de futebol.
Foi quando o sanfoneiro
Edilson Vieira resolveu homenagear o
torrão natal tocando a música, cuja letra é do poeta Lucas Evangelista:
“Sou de Cratheús cidade maravilhosa, / terra de mulher cheirosa e de cabra
trabalhador / Seu padroeiro e nosso senhor do Bomfim além de nosso padrim / é
nosso santo protetor” que Antônio Quina
ouviu o chamado de três senhores que estavam sentados no canto da quadra,
vestiam ternos pretos e um deles tinha uma gravatinha borboleta no pescoço,
tomavam umas cervejinhas, olhando o movimento e convidaram o Antônio Quina a se
sentar.
O de bigodinho cheio, com um
rosto afilado e o único sem óculos, falou: - Senhor Antônio, receba os nossos
Parabéns! Mesmo nesta brutal aridez e neste desamparo dos poderes constituídos,
o Sertão de Cratheús é só alegria e é feliz assim porque o homem daqui tem
muita fé! Os outros dois, com nobreza de gestos, também se levantaram e o
felicitaram pelo trabalho que realizava.
Antônio teve vontade de ficar
palestrando com aqueles agradáveis senhores, mas tinha que voltar ao trabalho
e, só depois, retornou para lhes convidar para a primeira Cavalgada do Poço da
Pedra e não mais os encontrou. Perguntou a todos e ninguém os tinha visto.
Ficou matutando: “- Quem seriam esses nobres senhores, que entendem, tanto
quanto eu, da dura e alegre vida no sertão?”
Raimundo Cândido