Quem sabe dos segredos do sertão é
porque nasceu com uma preciosa dádiva, um raro dom de ver-olhar, olhar e ver. Só
podemos captar o que não está à mostra, o que não se divisa, quando podemos
sabê-lo, pressentir o invisível. E para se pressagiar assim, é preciso pensar.
Raciocinar com o sexto-sentido conectado aos elementos da terra, às vibrações
do ar e às essências dos mistérios que revelam os indícios do que não se pode
ver.
A
humana criatura foi perdendo esse dom, hoje incorporado as insensíveis máquinas
tecnológicas que, simplesmente olham, captam e realizam o que tem que fazer,
sem a mínima descrença em si, mas privadas da doce contemplação ou do inesperado
espanto! Chamam-na de nanotecnologia e já é parte integrante do corpo humano. Numa
engrenagem menor que um grão de arroz, dissimulada no corpo, guardam-se todas
as informações de um cidadão: nome, endereço, árvore genealógica, tipo
sanguíneo, histórico de medicamentos, RG, CPF, senha de bancos e um
localizador, com Sistema de Posicionamento Global viam satélite, o GPS, fazendo
com que esta pessoa possa ser escaneada, rastreada em qualquer ponto do Planeta.
Se o sábio filósofo Aristóteles,
que achava ser o coração a mola mestra dos pensamentos e dos sentimentos,
tivesse imaginado que, um dia, alguém caminhasse pela face da terra com um chip
implantado na pele ou com um motorzinho de titânio e plástico acoplado na caixa
torácica, fazendo um vruuum, no lugar do característico tum tum tum entre a
sístole e a diástole, diria a mesma coisa que muitos crentes alardeiam, exageradamente,
por aí: - É a marca da besta ferra! Isto é o sinal do anti-Cristo!!!
Um bom rastreador, outrora, usava
uma visão apurada, um faro aguçado e o espírito em total alerta para seguir uma
trilha deixada por uma caça ou por uma pessoa perdida na Caatinga. Virgulino
Ferreira da Silva, o famigerado Lampião, que sobreviveu por quase vinte anos
lutando e fugindo pelo sertão nordestino, tinha mais ódio dos rastreadores das
volantes do que dos próprios policiais que o perseguiam. Proferia colérico: -
Quem eliminar um desgraçado de um rastreador terá matado uns cem macacos!
Para despistá-los, o bando
usava todo tipo de artimanhas: invertiam a posição do salto das alpercatas, pisavam
somente no chão duro, sobre o mesmo rastro para parecer o caminhar de um só
homem e, quase sempre, o último cangaceiro da fila apagava as pisadas que iam
ficando, com uns galhos folhudos. Andavam dezenas de quilômetros por dia despistando
os rastreadores, num silêncio quase sepulcral. Mas cometeram um pecado mortal,
para quem queria desnortear os “cães” farejadores das volantes: como raramente
tomavam banho, para tirar o cheiro forte sob os trajes de couro cru, despejavam
vidros de perfumes sobre o corpo! Só poderia dá no que deu, foram pegues de “assalto”
no pedregal da Grota de Angicos, por 45 macacos conduzidos pelo legendário
rastreador pernambucano Antônio Cassiano. Nem a Oração da Pedra Cristalina,
encontrada no bolso de Virgulino, fechou o corpo do cangaceiro contra as balas
das metralhadoras e o faro dos rastreadores da Caatinga.
Os Sertões de Crateús sempre foram
afamados pelos seus rastreadores. Eles tinham um lema: Se voar, deixa sombras.
Se andar, deixa rastros. O de mais remota
memória chamava-se Alfinete, que rastreava bichos, gente e até visagens. Numa
acirrada briga política entre dois Partidos Políticos: o Conservador, apelidado
de Marretas, e o Liberal do Pe. Inácio Ribeiro de Melo, o padre levou a melhor
e venceu o preito de 1849, com uma grande maioria de votos. A oposição resolve
processar o Pe. Inácio e tentam enquadrá-lo nos crimes do irmão, o famigerado Cascavel.
Há oito dias que o Pe. Inácio partira ao encontro do Juiz de Piacó, recém nomeado
para essa região, para relatar a situação caótica de Crateús e se livrar de um
“arranjado” júri popular. O ferrenho
adversário, Pe. Francisco Santiago, convoca o rastreador Alfinete para conduzir
um bando de assassinos na perseguição do Padre Inácio. O tempo apaga os vestígios,
a aspereza do sertão engole os rastros e o dom de olhar-ver tem que estar bem apurado,
principalmente quanto o sol escaldante e o relento da madrugada dissipa estas
marcas efêmeras. A visão microscópica, o sentido farejador, o senso de
percepção detectam os rastros deixados pelo padre como se fossem pisadas
recentes. Já próximo de Sousa-PB, nas margens de um riacho, sob as sombras de
frondosas oiticicas, os assassinos executam a infeliz missão, com requinte de
uma inenarrável perversidade.
No celebre livro Notas de
Viagem, de Antônio Bezerra, encontramos mais um velho rastejador dos Sertões de
Crateús, e chamava-se Bernadino. Ele decifrou um bárbaro crime, após um
tarrafeiro pescar uma perna de um poço do Rio Poti. Bernadinho foi incumbido de
rastrear o assassino, pelas pegadas que partiam das margéns e, o incrível, foi que
ele relatou toda história, como se tivesse vendo “in loco”, até chegar ao filho
do dono de uma fazenda, a 60 km do local do delito. O assassino confirmou tudo,
como Bernardino havia decifrado.
No município de Tamboril, o Senhor Francisco
Pedrosa amalucara de vez. Enlouquecera
de tal forma que pegava uma faca e dizia que ia se matar. Certo dia ele
desapareceu e entrou sem rumo pela Caatinga adentro. A família procurara por
toda parte e já perdera a esperança de encontrá-lo vivo. Alguém se lembra do
velho Bernadino, que sai em seu encalço, prometendo encontrá-lo. O rastrejador
disse que ficou zonzo e sentiu o que é ser um zuruó por tantos ziguezagues, tantos
vai e vem, passando pelo mesmo ponto e seguindo seu rastro. Bernadino vai
encontrar o amalucado quando o rastro resolve partir na direção do Serrote
Feiticeiro e acha-o, no alto dos íngremes lajedos, sentado numa pedra, olhando
o precipício, em iminente perigo de vida. E como havia prometido, restitui o
maluco a sua família, não tão são, mas salvo.
No sumiço de um animal, daqueles
propensos a fugir do curral ou quando tangido por espertalhões, logo chamavam
um rastreador da região. Sempre que os bodes de Zé Ivan Melo fugiam, ninguém
achava e ele ordenava: - Oh Menino, chame ali o Altino, filho do Aureliano dos
Anjos. Altino partia rumo à Serra da Ibiapaba, esmiuçando o chão e sempre voltava
com os bodes fujões.
Para fazer vida no sertão o trabalho
do cidadão é árduo, é duro, principalmente para quem é honesto e não tem uma
herança em vista. O boiadeiro Raimundo Cuímba, quando vinha do Piauí, sempre
trazia uma ou duas vaquinha, para revender em Crateús e nunca passava disso. Um
dia Milton Menezes cavalga ao lado do grande rastreador Firmino dos Anjos, que caminha
cabisbaixo, concentrado nos veredas do caminho. Súbito, Firmino levanta a
cabeça e afirma: — Mas menino, pois num é que o Raimundo Cuímba agora cresceu
os olhos! Desta vez ele veio tangendo doze vaquinhas. Vão até o curral em que está o gado, cansado
da viagem e contam: Uma, duas... Doze! Com espanto nos olhos Milton afirma:
— Como é que pode? Isso só acontece
se for adivinhando!!!
Como o velho Bernadino do
livro de Antonio Bezerra, Firmino dos Anjos também tinha o olhar microscópico, igual
ao do irmão Lauriano, um dom de família, sabiam olhar e ver o que ninguém mais
via. Quando o menino que Dona Donana criava desapareceu, tomou rumo ignorado
pelas veredas do Pereiros, Firmino aguçou a vista e, como fazem os carcarás
caçando calando entre os gravetos do sertão, pegou o fio da meada e seguiu até
achar o coitado perdido no meio do mato, com um assombro maior que a fome e a
sede que o devorava.
Um dia resolveram testar o
oficio de Firmino. Havia morrido um cavalo velho pelas redondezas. Pegaram os
cascos do finado e fizeram umas marcas numa cacimba de gado. Chamaram o
rastreador dos Pereiros: — Firmino, nós encontramos uns rastros de um animal
ali. Parece que o cavalo não é daqui não! Você quer olhar?
Foram lá, ver. Firmino
examina, detalhadamente, sente os elementos da terra, as vibrações do ar, e a
essência do mistério revela-se como que milagre, aos olhos que brilham numa
sentença:
— Eh, rapazes... Esse cavalo
velho, aqui, está com um bocado de tempo que morreu!
Raimundo Cândido