Um dia, propuseram-me uma difícil
questão e nada comum: E se Hitler tivesse ganho a Segunda Guerra Mundial? Respondi, denotando certo gracejo, que,
talvez, o mundo fosse uma grande Cuba ou uma imensa China, formada
exclusivamente por arrogantes brancos, metidos a puros, e nós, brasileiros,
possivelmente não existíssemos mais!
Tenho ciência que a resposta
poderia ser outra e sei, também, que a história não trabalha com se, e sim com
o que aconteceu. Mas a pergunta inoportuna trouxe-me, a mente, um grande poeta
americano que se iludiu com as teorias econômicas e ideológicas do
Nacional-Socialismo: Erza Pound. Um magnífico vate, um sexagenário crítico
literário que perpetrara um crime inafiançável. Defendera as teorias econômicas
nazistas numa emissora radiofônica da Itália, com pronunciamentos
antidemocráticos, em plena 2ª Guerra Mundial. Arrependera-se: “Fui um estúpido.
Enganei-me. O conhecimento me chegou tarde de mais... Muito tarde me chegou a
certeza de nada saber... Agora, uma máscara aprisiona meus pensamentos, abafa a
minha voz.”
O mundo literário levantou-se em
favor da universal poesia poundiana. Ernert Hemingway, autor de “O Velho e o
Mar”, sentenciou o povo americano, em viva voz: “Erza é um grande poeta e o
proclamo com orgulho. Deixemos de perseguir os nossos poetas. Modifiquemos a
mentalidade americana segundo a qual um homem deve ser castigado, sempre que se
recuse a se conformar com a massa!”
Pound passou três semanas num
campo de concentração, como um animal dentro de uma jaula e 13 anos num
hospital psiquiátrico. Foi a forma encontrada de livrá-lo da prisão, considerando-o
mentalmente incapaz e, mesmo numa “gorila cage” rugiu em versos: “Sim! Sou um
poeta e sobre minha tumba / Donzelas hão de espalhar pétalas de rosas... Sou um
poeta, e bebo vida / Como os homens menores bebem vinho.”
Enquanto Erza Pound pagava por
seus pecados socialistas, arribava da cidade de Crateús, de encontro a melhores
dias, um poeta stalinista estremado, para se tornar um dos mais importantes
militantes comunistas do Ceará, dos dourados anos de 50 até a década perdida dos
80, e chamava-se Manoel Coelho Raposo, o Camarada Raposo.
Desde os jogos de bila e as brincadeiras
de roda-peão pelas calçadas, ou vendendo bombons e chicletes com um caixote
dependurado no pescoço aos namorados na Praça da Matriz, que a sua juventude ia
sendo marcada pelas atitudes do humanista e revolucionário socialista Norberto
Ferreira Filho, na cidade de Cratheús. Ferreirinha foi o modelo que o
influenciou na trajetória de marxista militante da causa proletária.
Um padre havia proibido aos
fiéis crateuenses de comprarem pão na padaria daquele comunista, pois vivia
metido com “coisas do diabo”. Mas o pai de Manoel, Seu Genuino Raposo,
ordenava:
—
Manoel, vai comprar pão lá no compadre Ferreirinha, pois nunca vimos um pão ser
comunista!
Na
padaria, o menino sentia o cheiro do pão quentinho saindo do forno e assistia às
discussões dos militantes, ali presentes: Vicente Lopes, Osvaldo Farias, Mário
Pontes, Seu Ferreirinha entre outros, que elogiavam o heroísmo dos soviéticos
na luta contra o nazismo e a resistência aguerrida do povo de Stalingrado
frente aos tanques de guerra e aos ataques aéreos alemães. Ouvia, atentamente,
aqueles senhores externarem suas preocupações sobre as injustiças sociais e
defenderem, com entusiasmo, a liberdade do ser humano cruelmente escravizado
pela burguesia conservadora.
Os sonhos do Camarada Raposo se
avolumam, extrapolavam a inóspita caatinga dos Sertões de Crathéus. É ele quem
nos esclarece: "Muito jovem, na minha pequena cidade, enxerguei nos livros
a minha janela para o mundo, lia tudo que vinha às minhas mãos e como achava
que os outros também deviam participar desse maravilhoso mundo da leitura,
criei uma pequena biblioteca, a qual mantinha graças a algum dinheiro apurado
na venda de frutas nas ruas da cidade. De repente achei que somente ler era
pouco, tinha que escrever, que passar a outros minhas impressões sobre tão
variados temas e, aí pelos dezoito anos já participava de um concurso
literário, tirando o primeiro lugar.”
Um grande amigo crateuense, o
Coletor Federal Carlos Rolim, para ajudá-lo a alça o voo, compra seus livros por
30 mil reis e o Manoel ruma para a Capital do Estado onde, além de estudar,
trabalha no jornal do Partido Comunista Brasileiro, O Democrata.
Foi pioneiro em levar livros
pelas ruas de Fortaleza. Era numa guarita de madeira sobre rodas, como uma
Livraria Ambulante que depois foi afixada na Praça do Ferreira com apoio da
Prefeitura Municipal. No ambiente da famosa Livraria Feira do Livro
realizaram-se as maiores noitadas literárias da história do Ceará. Trouxeram até
o Baiano Jorge Amado, autor do Cavaleiro da Esperança, para uma noite de
autógrafos. No lançamento do Livro Sua Majestade, O Juiz, o escritor Jader de Carvalho
assinou 840 exemplares, ficando com os dedos calejados. Foi uma pena que o seu
livro foi proibido e retirado de circulação, pois denunciava a corrupção, a
fraude, o estelionato e os atos arbitrários praticados pelos nossos magistrados
entre os anos 60 e 80, em subserviência ao poder político estadual.
Ouçam, é voz do Camarada Raposo: “Lia os Romances do povo e as obras de Marx, Engels, Lênin e Stalin. Também as
revistas que chegavam da União Soviética e da China contendo as realizações
socialistas. Tornei-me um estudioso e propagandista das idéias do socialismo e,
enquanto trabalhava na livraria, já escrevia algumas coisas para o jornal sob o
pseudônimo de Petrônio."
Em 1964, logo após o golpe
militar de 1º de abril, foi preso e encarcerado no 23º Batalhão de Caçadores,
onde passou 33 dias. Dentro da prisão, Raposo compôs um de seus mais célebres
poemas: “... O silêncio / do silêncio surge a "profecia" / "toda
noite tem aurora" / quebra-se o silêncio / do lado esquerdo da rua / rompe
o sol no horizonte / os raios invadem o lado / esquerdo da rua / a liberdade se
anuncia / treme o lado / direito da rua.”
Ajudou a
criar, em Fortaleza, a Frente Sindical dos Trabalhadores
Rurais e Urbanos, em 1978. Ela foi uma precursora da Central Única dos
Trabalhadores (CUT). E foi uma antecipação da fundação do PT. Quando o barbudo
Lula veio à cidade e participou da criação do Partido Independente dos
Trabalhadores, levou a ideia para o ABC paulista, para as mãos dos acadêmicos
de São Paulo. Aliás, Luiz Carlos Prestes
dizia que Luiz Inácio, o Lula, nunca passara da 10ª página do O Capital.
Os comunistas afirmam:
Como podemos acreditar num Deus dos capitalistas que permite que
milhões passem fome, milhões não tenham onde dormir, milhões não tenham trabalho, escola, assistência médica...
Deus
era uma questão mal resolvida em Manoel Raposo, que dizia: Deus é o
incognoscível momentâneo do homem. E um dia se viu entre a Cruz e a Espada.
Resolveu casar na Igreja Católica. No dia do casamento com Maria do Carmo, a
cerimônia teve de ser interrompida. Tudo corria de acordo com o manual católico
até o padre perguntar se o noivo havia confessado os pecados e comungado. “Não
senhor”. - Então, o senhor não pode se casar. O ritual foi suspenso. Todos ficam
sem saber o que fazer. O padre pergunta, perplexo: -Por que o senhor não
cumpriu os mandamentos? “Porque não acredito neles”. Mais alguns minutos de
agonia e o clérigo, vencido, decidiu casar o “ateu”.
Raposo confessa: “Convidei o padre para tomar umas
cachaças comigo depois da cerimônia”. E continua se confessando: “Cometi um
grande e grave erro ao entrar para o PT. Não consegui antever que a burguesia
brasileira não era revolucionária, era, sim, conciliatória. Apoiei Lula mesmo
sabendo que ele nunca faria a revolução."
Bertold Brecht disse que os homens imprescindíveis
são aqueles que lutam por um ideal durante toda uma vida como Erza Pound e Manoel
Coelho Raposo. Arrisco minhas ilusões de um mundo melhor na pessoa do
guerrilheiro José Alberto Mujica quando diz: “Precisamos priorizar o choque
de valores: tornar
cada vez mais clara a mediocridade da vida burguesa e apontar modos
alternativos de convívio, de produção e consumo. Sinto como minhas as derrotas
do movimento socialista. Ensinam-me o que não devo fazer. Mas isso não
significa que vá engolir a pastilha do capitalismo, nesta altura de minha
vida”.
Como Hemingway que um dia aclamou
Pound, deixo agora que Erza Pound, em nome dos Camaradas Raposo e Mujica, os
saudar, meus caros leitores, como mais uma voz perdida no deserto: “Oh geração
dos afetados consumados / e os consumadamente deslocados, / Tenho visto
pecadores em piqueniques ao sol, / Tenho-os visto, com suas famílias
mal-amanhadas / Tenho-os vistos seus
sorrisos transbordantes de dentes / e escutado seus risos desdentados. / E eu
sou o mais feliz de vós, / E eles eram mais felizes que eu; / E os peixes nadam
nos lagos / e não possuem nem o que vestir.”

Raimundo
Cândido
Silas Falcão disse...
Conheci o Manoel Raposo na Premius Editora. Conversei com ele em reuniões da ACE – Associação Cearense de Escritores, da qual era associado. Sempre falava de um mundo melhor. Sempre discursava felicidades coletivas. Em nenhum momento ouvi da oralidade de Raposo, pensamentos que não fossem de liberdade e igualdade humanas. Comunista sem definhar, ele sempre acreditou no que escreveu em prosa e verso. Escrita louvando a igualdade entre os povos. Em nossos encontros na ACE, eu sempre ouvia mais que falava. Sentia-me muito bem informado quando escutava as memórias de luta dele. Tinha ele uma pequena editora que muito ajudou escritores de recursos menores, a editar livros. Claro que havia uma linha editorial! NUNCA as prensas – naquela época, década de 70-80, a linha de produção de um livro era mais mecânica, de pouca tecnologia - da sua editora imprimiriam conceitos contrários à sua formação comunista. NUNCA! Manoel Raposo construiu uma convicção comunista que o acompanhou até sua morte, mesmo quando se afastou definitivamente do PCR – Partido Comunista Revolucionário. A Carta pode ser lida no http://grandedazibao.blogspot.com.br/2012/04/carta-de-afastamento-do-pcr-de-manoel.html. Ele sempre me falava de uma sociedade sem degraus, liberta das correntes do capitalismo. Dia de sua morte, 10 de novembro de 2009, a inteligência comunista universal perdeu um dos seus mais ferrenhos propagadores em seus 60 anos dedicados à cultura e à luta do nosso povo. O amigo cronista Raimundo Cândido cita também Vicente Lopes. Este, eu não conheci. Mas sei de suas consciências comunistas muito longamente narradas por sua esposa Abgail Lopes, bisavó dos meus filhos. Ela, hoje com 105 anos, inúmeras noites relembrou os passos agressivos dos coturnos da ditadura na busca pelos escondidos da sua casa de Marx, Engels, Lênin e Stalin. Muitas vezes eles estavam em profundos buracos escavados no quintal. Vicente Lopes também foi preso por ler e divulgar maravilhosas ideias de uma sociedade igualitária idealizada por estes escritores. Crateús tem riqueza intelectual. Tem memórias de liberdades ainda contadas diariamente por seu Ferreirinha e registradas por este cronista das Ribeiras do Poty, Raimundo Cândido. Parabéns por este trabalho de pesquisa.