sábado, 15 de dezembro de 2012

Zenon - um conto de Natal


Para Nina, presente da Ana.

Noite alta. 24 de dezembro. Quase Natal. 

Na Barriguda, entroncamento de todas as estradas do mundo, Zenon aguça as orelhas aos barulhos da mata, força as vistas na escuridão e espera, aflito. À sua frente, atravessando calmamente a estrada empoeirada, um preá andou perto de morrer de susto ao avistá-lo. Zenon nem ligou. 

Minutos depois, primeiro um brilho balançante, ora aparecendo nítido, ora escondendo-se inteiro. Visagem? Então o barulho. E o coração de Zenon apertou e disparou, chegou a sentir o sangue correndo feito doido por sob sua pele. Pôs-se de pé num pulo e quase sorriu. Preparou-se. 

Quando o carro apontou na cabeça do alto, chocalhando seu desespero de chegar sabe-se lá em qual destino, Zenon postou-se no meio da estrada, pulando tão alto quanto conseguia sua pequena estatura, balançando e gesticulando todos os membros, chamando a atenção. O carro não parasse, na certa o atropelaria. 

Mas o carro não parou. Apenas diminuiu a velocidade. Quem estava ao volante, talvez tentando adivinhar o que se passava ali, matutando seus perigos. Aproximou-se. 

Zenon entendeu. Virou-se e tomou uma das estradas. Correndo. Logo depois parou, de novo pulou e gesticulou, fez zoada. Quando o carro, primeiro hesitante, depois convicto, passou a segui-lo, Zenon não se deteve mais. Apenas voltava a cabeça, vez por outra, vigiando seu seguidor. 

Nem cinco minutos depois, Zenon estancou de vez. Logo em seguida, o carro. Zenon, então, entrou no mato baixo, antevéspera da caatinga, e, por um instante, pareceu perdido. Quando os ocupantes do carro voltaram a vê-lo, à luz confusa das estrelas, Zenon estava ao lado de um carro escuro, rodas para cima. O vento soprou um chorinho fraco de criança. 

Dentro do carro acidentado, os corpos desacordados de um homem e uma mulher, jovens ainda. Da criança nem sinal. Nada. Apenas o chorinho. 

Onde Zenon? – pensaram. Zenon encontrava-se mais abaixo, numa ribanceira, cheirando delicadamente a criança, acalmando-a. Um alívio. 

Depois Natal. À volta da ceia, todos. Ao casal acidentado, somente leves escoriações. À criança nem isso. Descansava tranquila nos braços de seu salvador. Seu avô. 

E Zenon? Ah, Zenon era apenas um cachorro sem dono, morador daquelas paragens. Cachorro ninguém olha muito não. 

Lourival Veras

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

A MINHA PRAÇA DA ESTAÇÃO

Tributo ao meu pai, chefe da estação, à minha mãe e aos meus irmãos queridos. 

“A praça é do povo como o céu é do condor” 
Castro Alves (1847-1870) 

Era meu império...meu mundo...meu sonho...minha vida. Alucinado por ela, suplicava para nunca dela me ir... Era a minha pátria ...era a minha nação... tinha limites... tinha fronteiras...tinha habitantes e todos amados. Nós sabíamos de cor seus habitantes... uma verdadeira pátria. Simples como seus habitantes que no fim de tarde se sentavam nas calçadas... a falar de magias... e de saudades. Minha agora era nua. Os bancos somente na imaginação. Sem arvores, somente chão batido, era a minha praça. Mas tinha poesia, tinha encanto, tinha sentimento...parecia rezar em um silencio de ternura e paz... Praça rústica, rude, mas era a nossa praça... e começou a morrer quando mudaram as suas feições originais. As suas luzes eram tão fracas que às vezes se confundiam com as estrelas... Em noite de lua, a praça parecia se vestir de um branco de noiva casando com a nossa virgindade de criança... A noite se fazia diáfana e telúrica e os gritos das crianças pareciam pequenos trovadores e seresteiros... Era a alma da cidade... era hospitaleira... abraçava gente de todas as partes de Crateús. Pela manha era um intenso movimento dos que iam para a missa, para a escola ou para o trabalho. Ao meio dia, pino do sol, um intenso silencio se debruçava sobre a praça... todos dormiam ... era a sesta... Mas no descambar do sol quando os chilros das andorinhas se confundiam com a ave-maria da radiadora, quando Gounod se estendia sobre todos nós, a praça era solene... um cerimonioso silencio se estendia sobre a querida ânfora onde guardo todas as minhas saudades, alegrias e lembranças da minha infância. Ânfora das nossas recordações, dos nossos sentimentos e esperanças, ganharás espaço eternamente na praça do meu coração. Estarás conosco nas nossas lembranças, cálice onde sorvo todos os meus encantamentos daquela fase tão feliz, âmbula onde guardarei para sempre todas as minhas saudades e alegrias. E no entardecer da minha vida, quanta saudade dobra-se em mim eternamente. Ao te recordar, chove em mim toda esta primavera da vida passeando no solo sagrado da minha mente... Eternecida praça... definidamente plantada no meu peito... acalanto do meu envelhecer... Minha doce praça que se foi nesta tristeza das ave-marias como uma flor debruçada no chão. E a ti trago os ramalhetes de amores e de saudades ao cantar esta saudade eterna de ti... Serás meu astro, meu símbolo, minha luz, meu encanto, o altar da minha infância, a estrela vésper do meu anoitecer. Guardarei em mim esta lembrança inscrita no meu coração, minha infinita Praça da Estação. O trem da minha vida que ainda não chegou... o tango que ainda não me sepultou na minha saudade. 

Que saudade! 

José Maria Bonfim - Médico Cardiologista

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

A Estação Centenária


A Estação Ferroviária de Crateús chega ao seu primeiro centenário. No dia 12.12.1912 era inaugurada a Estação de Crateús. Chegava àquela cidade o seu marco maior de desenvolvimento. O nosso corredor para ensaiarmos a nossa libertação. A nossa capacidade de se ligar ao mundo. Sem estradas. Sem mar. Sem veleiros e sem escunas, a nossa estação seria a nossa janela que se abria ao mundo. A nossa estação erguida solene, era o nosso porto por onde chegavam as nossas necessidades. As nossas alegrias. As nossas esperanças . Os nossos anseios. Foi o nosso porto, foi a nossa casa, o nosso abrigo, o nosso santuário onde as lagrimas de tristezas e de saudades secavam, quando o sol das nossas esperanças se aqueciam. Hoje os nossos olhos umedecidos voltam se para nossa velha Catedral da nossa infância. A edificação centenária tesouro de nossas lembranças e de nossas memorias. No seu dia centenário ela revive. Paramenta-se com cor lírica dos momentos mais belos das nossas vidas. E a liturgia mágica do tempo faz com que a esplendorosa estação reviva. Sacuda o pó desta longa e tormentosa estrada e volte aos seus belos momentos de realeza. Um reinado de historias inesquecíveis, que mais do que porto ela se transforma em farol. Em lampião cintilante. E qual uma estrela do Oriente volte os seus raios sobre as nossas vidas. E neste cenário saudoso se impõe a figura centenária do meu pai, Felipe Morais, desenvolto a scanear emoções e ternuras. O seu olhar afoito a esperar as alegrias das chegadas, os lenços mornos das partidas, os abraços dos que chegam e os adeuses dos que, se foram para nunca mais voltar. E nesta procissão lembramos o Chico Oliveira, Antonio Candido, José Euclides e tantos outros dignos funcionários que brilharam nesta faina de ferro. E na reza da nossa saudade, avulta a batina esmaecida do Monsenhor Luis Freire Ximenes. O trem era o seu quinto evangelho. A sua predica melódica e poética. A sua teologia de amor e de carinho para os mais pobres. Mais esquecidos. Mais oprimidos. Os mais amados por Deus. Não por serem os melhores, mas porque Deus é Deus. Mons. Ximenes traduzia os paradigmas da Lectio Divina. Um ser sedento de servir. Um ser cheio dos mandamentos teológicos do amor. Apaixonado pelo marchar poético dos comboios. Pela estações simples e humildes, como se fossem Via Sacra da Semana Santa. Este é o santo ferroviário que eu conheci e que mora bem perto do meu coração. Mas hoje, nos deixamos afogar nestas metáforas líricas, neste advento de recordações, neste panegirico insistente para que a estação volte a ser o estuário de riqueza e progresso, que um dia sonhamos. Um dia virá para todos que amam Crateús, a sua historia e o seu sagrado chão. A nossa querida centenária será novamente o anelo precioso que nos marcou nos momentos mais promissores de nossas vidas. Foi por ela que conhecemos o mundo. Que descobrimos a vida. Que realizamos os nossos sonhos. Sacramentamos os nossos ideais. Que construímos as aspirações que mourejavam buliçosas nas nossas almas infantes. 

Fortaleza, 09 de dezembro de 2012
José Maria Bonfim de Morais- médico cardiologista