Na primeira página do livro O Telvídio, editado há 74 anos,
estampa-se a foto do Dr. Luiz Chaves de Melo, descendente dos poderosos
coronéis da cidade de Santa Filomena, no Estado do Piauí. No rodapé, bem abaixo
do retrato, lê-se: Doutor em Medicina pela Universidade de Chicago, Estados
Unidos e Farmacêutico pela antiga Escola de Farmácia do Pará. Na apresentação
da obra é o próprio autor quem nos informa, “Jesus Cristo disse: - Tempo virá em que no mundo habitará um só rebanho
governado por um só pastor.” Dr.
Luiz, o benfeitor dos pobres, nos esclarece o que significa esta afirmação
bíblica: Chegará o dia em que, no mundo, só haverá uma religião e os fiéis
serão guiados pelo único pastor que será o nosso amado Mestre. O benemérito
Médico e Enfermeiro confirma ser um profundo conhecedor do espiritismo de Alan
Kardec.
Telvídio é um termo
grego-latino que significa aquele que vê
de longe e no livro é um dos personagens, o arcanjo da corte divina enviado
pelo Eterno, que aconselha e orienta a inexperiente Consciência Brasil. Quando
o Dr. Luiz Chaves de Melo não encontra-se, caridosamente, receitando o povo
pobre de Crateús ou exercendo entusiasticamente o direito de cidadania nos
embates políticos com Coronel
Jerônimo de Sousa Lima, o famoso Cel. Jiló, com certeza está escrevendo os
diálogos entre Telvídio e um desatento Brasil, um povoamento simples e ingênuo,
naquela época. No dia em que o iluminado espírita se foi, o arcanjo protetor o
acompanhou e nunca mais voltou para nos recomendar nas boas doutrinas e nos
bons preceitos. Dr. Luiz escreve notas criticando os adversários no
Jornal o “Unitário”, enquanto seus oponentes, o Cel Jiló, o Juiz Apolônio Perga
Bandeira Barros e o Cincinato Rodrigues defendem-se no Jornalzinho “A
Republica”, os dois periódicos crateuenses da época.
Quando jovem, possuidor de um
ávido espírito aventureiro, andou lá pelo lado da Amazônia, um território
desbravado pelos crateuenses desde a Guerra da Borracha. Ele relata, no livro espírita raríssimo: “Uma
tarde eu andava nas matas dos Solimões e me perdi.” Começa assim, a narrativa
de uma saborosíssima aventura!
“Eram três horas da tarde e
pareciam seis da noite devido às enormes árvores, entrelaçadas e tenebrosas. Eu
me sentia como que afogado naquele imenso mar de verdura. No desespero,
procurava a estrada e um anoitecer, o manto assustador da floresta, é o que eu
ia avistando. Subi em um colossal Jequitibá ficando cheio de espinhos, repleto
de lianas silvestres, ferroado pelos carapanãs e pelas formiguinhas miúdas e
vermelhas que produzem uma dor insuportável. Equilibrei-me num dos seus ramos
mais altos. Na escuridão úmida só ouvia a pulsação do meu coração.
À noite, um vento fortíssimo
começou a soprar. Plantas altaneiras caiam e arrastavam outras árvores, em sua
pesada queda. O Jequitibá, em que estava, balançava-se como as jangadas que
singram os mares bravios das terras de Iracema. Assovios, gritos indígenas,
uivos de feras sintonizavam com a fúria dos elementos. Um rifle, cinquenta balas,
uma caixa de fósforos, era tudo que eu possuía naquela hora de infortúnio. A
chuva prosseguiu até alta hora da noite. Dormente e apavorado, sentia o coração
parar nas diástoles. Passada a chuva, todos os animais daquela pavorosa selva,
excitaram-se farejando as presas, e vinham ululando, gritando, tornando mais
lúgubre a hediondez das matas. Avistei luzes que pareciam pirilampos, mas à
medida que o clarão se aproximava, distingui, apavorado, índios com fachos de
luzes acesas. Na certa eram caçadores de tatus, para os festins guerreiros. Os
índios passaram sem dá por mim.
Distingo duas onças
perseguindo uma enorme anta, que foi logo devorada pelos felinos. Quando já me
dispunha a cerrar os olhos e tirar um cochilo, vejo um vulto vestido de branco,
em baixo da árvore. O vulto me diz: - Desça! Desça daí e não me dê trabalho!
Eu, amedrontado, tomei do
rifle e me dispus a atirar, mas desisti e principiei a rezar, mentalmente.
Desci e ao aparecer mais dois vultos, criei coragem para perguntar:
- Em nome de Deus, como você
se chama?
- Eu sou o Capitão Pereira,
bicho pesado, dono destes seringais. Matei muito para roubar e enriquecer. Um
dia os índios mataram-me com flechas envenenadas. Ando vagando, sempre
perseguido por essa mulher e por esse negro. Peço-te que rezes por mim. Que me
liberte deste sofrimento! Os vultos desaparecem, tão logo termina de falar.”
A aventura do Dr. Luiz pela
floresta amazônica continua, cada vez mais emocionante.
“Fiquei ali até o dia
aparecer. Com os primeiros raios de sol, volto a procurar a estrada e a
encontro depois de muito andar. Chego nas margens de um rio e vejo uns
canoeiros que passam remando uma ubá. Dou-lhe sinal e eles me levam rio acima.
Conto todo meu sofrimento e me dizem que foi uma felicidade escapar daquelas
matas assombradas, onde há muitos anos corre a história do capitão Pereira.
Chegando ao seringal tratei de procurar um meio de partir para Manaus.
Na capital amazonense fui
convidado a uma reunião espirita na casa de um engenheiro, homem que se dizia
de grandes conhecimentos. Na sessão foi lido o Evangelho na passagem relativa a
Lázaro e antes disso terminar um espirito atuou numa das moças presentes.
Manifestou-se com essas palavras: - O Dr. C. M. esteve perdido nas matas às
margens do Rio Solimões e viu-se, frente a frente, com o Capitão Pereira,
antigo dono dos seringais daquela região. Fiquei surpreso e perguntei ao
espirito a causa daqueles acontecimento. Dele recebi essa resposta: - Em
séculos passados foste um capitão de piratas, prendia ricaços e potentados, mas
se te pagavam bem, soltavas os presos sem demoras. Em passadas eras, expiando
os crimes da tua pirataria foste mendigo, noutras foste curandeiro, médico,
rico e miserável, e assim será até que teus crimes sejam punidos.”
No Telvídio, um alfarrábio
amarelado, já se esfarelando pelo tempo, lemos esse parágrafo: Deus, na sua
infinita bondade, dá sempre aos seus filhos os meios de progredirem e de se
santificarem pelos próprios esforços. Dá-lhe, ao mesmo tempo, mestres e amigos
para ensinar-lhes a distinguirem o bem e o mal e a conhecerem as leis que
formam o que se chama – Ciência.
Em Crateús, na décadas de 30 e
de 40, ao fim de um dia de labuta, saindo do descorado casarão da Rua Cel. Zezé
com a Rua João Tomé, o Dr. Luiz Chaves se dirige para linha férrea no intuito
de distribuir parte do apurado diário para com os pobres, e a Dona Sancha de
Melo Barbosa, que vem atrás do marido, queixando-se de seu excesso de caridade,
só se acalma quando ouve as explicações do doutor: — Não reclame, minha
querida, o que é nosso ficou em casa! A nossa ventura é proporcional à
felicidade que fizermos os outros. Quem planta colhe, Sancha! E voltavam
abraçados, para se sentarem nas cadeiras de balanço, debaixo de um frondoso
tamarinheiro de uma florida alameda.
No final do livro o Dr. Luiz
nos aconselha: - O espiritismo também acha que nenhum povo deve entregar
mansamente sua cabeça ao cutelo, mas deve respeitar, acima de tudo, a moral e
os mandamentos do Evangelho, a suprema lei de Deus.
Há uma passagem bíblica que
diz: “Aos filhos dos filhos, o homem de bem sempre deixa uma herança.” Às
vezes, esta herança de sabedoria, como transmissão de habilidade ou legando de
espiritualidade, vem embutida no DNA e nas fibras morais da alma. Na mesma Rua Dr. João Tomé, em que o Dr. Luiz
distribuía o apurado do dia com o povo, um trineto, o menino Pitágoras Feitosa
Teixeira, acorda assustado numa sonolenta hora da madrugada. Dormia na casa de
seu Padrinho. Bate na porta do quarto do mesmo e dá um recado:
- Padrinho, o seu tio, aquele que
mora na Praia das Fontes, mandou-lhe dizer que você não abandone seus primos!
O padrinho em reflexiva surpresa,
indaga:
- Mas Pitágoras, como ele
mandou esse recado, se você esteve dormindo aqui em casa, e o meu tio já é
falecido?! Mas, de imediato, compreende
e mais que depressa procura levar ajuda ao distantes primos, executando a preciosa
regra que resume todas as questões ético-morais da humanidade, a lei do Karma,
ensinada há mais de 2000 anos por Jesus Cristo: - A cada um segundo as suas
obras!
Raimundo Cândido
Júnior Bonfim disse...
Parabéns, Raimundinho, pela belíssima Crônica que mergulha nas águas serenas do batismo espiritual.
José Alberto de Souza disse...
Impressionante sua capacidade de transmitir conhecimento. Dos seus escritos me chegam luzes de sabedoria que procuro assimilar da melhor maneira possível.