quarta-feira, 10 de abril de 2013


SENHORA DA SEXTA-FEIRA,
Romance inédito de Milton Dias


Fonte: Blog trocando em miúdos – Paulo Elpídio de Menezes Neto



Sabia-se da existência de um romance que Milton Dias não chegara a publicar. Por timidez de quem se aventurou com sucesso pelo gênero difícil da crônica, mas que não venceu os receios de um romancista dominado pela modéstia.



Ouvira referências de vários amigos sobre o romance. Tive os originais em mãos, revelado com discrição pelo seu autor.



Conversando com Pedro Paulo Montenegro, pesquisador e crítico literário respeitado, descobrimos que os originais encontrava-se em poder de um sobrinho de Milton Dias, filho de seu irmão Wílson Dias — o engenheiro Rui Dias.



Recuperados os originais estamos em trabalho, a quatro mãos, cuidando da editoração do romance a ser lançado em Fortaleza, no início de 2014.



Um presente aos incontáveis amigos e leitores do cronista, agora no texto de romancista que também o foi com talento e elegância.

UM APARTE



POR SILAS FALCÃO



Os originais de A senhora da sexta feira foram lidos pelo poeta Francisco Carvalho. Aconselhou edição. Pedro Nava, após receber os mesmos originais, enviou carta ao amigo autor determinando urgentíssima edição. A professora de literatura Suely Oliveira, na sua dissertação Milton Dias – a vida que poderia ter sido e que não foi, nos revela cópia da carta.



Numa manhã de sábado de 2010, na entrada do Mercadinho São Luis, Pontes Vieira, encontrei o mestre Pedro Paulo Montenegro. Mesmo morando a um quarteirão da casa dele, nunca forcei mais aproximação com este ensaísta que há décadas reside no Pio XII. Mas naquele sábado perguntei-lhe sobre o romance. Indiferente a minha espinhenta intervenção, ele respondeu: Tá com o sobrinho dele. E foi às compras sobre seus passos lentos e idosos.



Excelente a noticia do lançamento deste romance.



Mesmo após trinta anos da morte de Milton Dias.

Raimundo Cândido disse...

Parabéns Silas Falcão, você é mesmo um Dartanhan das Literaturas, muito ajudou na recuperação da memória do Poeta  José Coriolano , e com esse trabalho de resgate de Milton Dias, só tenho a lhe felicitar e me orgulhar do eficiente amigo que tenho!



Por Silas Falcão

segunda-feira, 8 de abril de 2013

CASA DA TORRE - UM CASTELO DE SANGUE



              A expectativa em conhecer a Casa da Torre era tanta, mas tanta que, quando Isabelle, minha companheira de aventura e vida, disse-me “Filho, vamos à Bahia!” meu coração disparou, pois desde que lera “Radiografia dos Sertões de Crateús” do Pe. Geraldinho, no livro Crateús 100 anos, publicado pela Academia de Letras de Crateús, intimamente, acalentava esse desejo.
Tinha perdido a oportunidade na vez passada, quando estive na cidade de Santo Antônio de Jesus, Recôncavo Baiano, mas agora, não deixaria passar outra ocasião. A Casa da Torre é um local que diz respeito à nossa história, mas poucos crateuenses tiveram o ensejo de conhecê-la e os baianos não sabem nem o que significa. Das duras ordens que desciam da alta Colina, ao lado do ferruginoso Rio Tatuapara, o sertão principiou e, penosamente, sob o signo das patas dos bois, procriados nos currais sem fronteiras, espalhou-se um estrume umedecido no sangue do maior genocídio da história do Brasil, o extermínio dos gentios. Brotamos deste cruento adubo, excremento do gado aguado com o plasma das artérias dos massacrados índios tapuia, pastagem brotada da usura e da ganância. Foi assim que o Nordeste nasceu!
De Santo Antônio, terra do amendoim e das divertidas corridas de jegues, fomos a afrodisíaca Ilha de Itaparica tomar um Ferry-boat, o trem do mar (navio lotado de gente e o porão repleto de carros, inclusive um imenso caminhão) e atravessamos a extensa baía para Salvador, urbe arquiteturalmente colonial. Na rodoviária pegamos um ônibus para o local chamado Mata de São João, distante região metropolitana, como nos ensinaram. Uma viagem cheia de expectativa, mas tranquila a não ser pela decepção de quando, ao descermos em São João, descobrirmos que estávamos no caminho errado do almejado destino. As ruínas ficavam a uns 80 km, perpendicularmente de onde nos encontrávamos, tínhamos que ir pela Estrada do Coco, até chegar à turística Praia do Forte.
Certo dia, alguém me aconselhou: “Estando no angustiante desespero de uma situação imprevista e não podendo contar com a influência da razão, espere pelo bafejo da sorte que tudo se resolve!” A nossa felicidade foi um motorista de praça e que nos deu a má notícia: — Por aqui, quase ninguém sabe destas ruínas que vocês procuram! Andei por lá, quando menino, na companhia de meu pai. Fomos a cavalo e o local estava totalmente invadido pelo mato. Posso levar vocês, mas a corrida vai custar R$ 180,00. E olhe que sou o único, por aqui, que sabe onde fica esse tal castelo!
Por um momento veio-me à mente as descobertas das milenares ruínas dos Maias e dos Incas e não desdenhei da sorte, tendo em visto que o próprio condutor havia fechado o negócio com a última afirmação. Sem mais demora, partimos! Enquanto percorríamos uma série de BAs, estradas bem conservadas, ora se entrecruzando, ora se bifurcando ou contornando o imenso balão do Polo Industrial de Camaçari, o taxista ia falando pelos cotovelos e ao mostrar a Montadora de Carros da Ford, disse-nos: — Isto aqui é orgulho da Bahia! Avistamos uns estranhos veículos chineses sobre três rodas chamadosTucTuc, transportando turistas, sinal que já estávamos na Praia do Forte. Entramos numa poeirenta carroçal, percorremos mais uns 2 km de íngreme subida, margeada por alta vegetação de Mata Atlântica quando, surpreendentemente, se descortina a entrada da Reserva de Sapiranga, mantida pela Fundação Garcia d’Ávila. Quem primeiro nos recebe, no alto da colina de Tatuapara, é uma belíssima e centenária figueira que mais pareceu um gigantesco guarda-chuva encobrindo a frente de um magnífico Castelo Medieval. Fiquei pasmo com a surpresa. Era muito mais do que esperava ver!
O Castelo Garcia D’Ávila, ou a Casa da Torre, é uma antiga fortificação de três pavimentos com enormes pedras sobre pedras, cimentadas com cal de ostras misturada com suor dos escravos, os negros e os gentios. Era a sede de um imenso morgado que passou de pai para filho, por dezenas de gerações, num eficiente feudo de estilo medieval. Boquiaberto, fiquei a imaginar o poderio que um único homem tinha nas mãos, numa imensa fazenda que começava nos arredores de Salvador e chegava ao longínquo Estado do Maranhão, o maior latifúndio do mundo! Quantas vezes, o próprio Senhor Garcia, filho bastardo de Tomé de Sousa e o primeiro Bandeirante do Norte, da janela mais alta do seu castelo, acionou à cidade de Salvador no primeiro sistema de telecomunicação do Brasil, num lusco-fusco de luzes que acendiam e apagavam, anunciando a invasão do golfo por perversos piratas. E ao olhar por aquela janela, hoje em ruínas, lembrei-me do poeta Gerardo Mello Mourão, com seu sublime épico “A Invenção do Mar” invocando o Rei Guerreiro que nunca voltou da batalha de Alcácer-Quibir: Sebastião! Sebastião! Com certeza o velho D’Ávila, como os portugueses quando em desespero, também gritou o nome do seu rei protetor, ao ver a invasão dos corsários ingleses: Sebastião! Sebastião!
A Torre de Tatuapara, um solar imenso e a capela de Nossa Senhora da Conceição - de onde saiu as ordens de extermínio dos gentios e imagem de madeira do Senhor do Bonfim que está na Igreja da Matriz de Crateús - era na realidade, uma poderosa base militar. Os coronéis, os barões, os viscondes e toda a nobreza nordestina, descendente do remoto Garcia D’Ávila com a índia tupi Francisca Rodrigues, continuaram anotando nos livros de Tombo as rendas que vinham das sesmarias distribuídas pelas terras devolutas do nordeste. As Bandeiras, que partiam daquele casarão e que desbravavam o sertão, eram formadas por homens, mulheres, crianças, padres, soldados e um magote de índios domados pelos jesuítas, desciam pelas trilhas das onças e pelas corredeiras dos rios: um sacos de juta nas costas, no alforje o polvilho, a pólvora, o sal, as balas, os chumbos, as caçarolas, uma espingarda no ombro e no fulgor dos olhos a miragem do ouro, o brilho das pedras verdes e a ambição que se confundia com a imensa vontade de eliminar os índios. 
A influência dos Ávilas da Bahia chegou até ao esquecido Vale do Itaim-açu (Planície do Poti) pelo sertão de dentro, via Piauí, onde os bravios tapuias Kara-thi-us perambulavam com o único objetivo: sobreviver.
Muito antes da baiana Luiza Coelho da Rocha Passos conseguir a posse das terras abandonadas para uma fazenda de criar, os 180 km de comprimento e 120 de largura comprados por 4000 cruzados por Dom Ávila Pereira já viviamrepletos de sesmeiros com suas famílias, agregados e escravos. Os índios tapuia tinham que desocupar, fosse como fosse, se renderiam como escravos ou findariam morrendo nos disparos estrondosos dos bacantes ou no gume das afiadas espadas portuguesas. Foi a primeira ordem de despejo, sem decisão judicial, sob os raios fúlgidos da liberdade, salve, salve!
Desenvolveram as técnicas de extermínio logo no massacre de Paraguassu(BA), em 1558, onde um exército, 4000 soldados portugueses, destruiu 130 aldeias de uma só vez: “Pela manhã ao entrar numa aldeia, vi que nenhum tupiniquim ficou vivo e os trouxeram e colocaram ao longo da praia por ordem que tomavam os corpos perto de uma légua” trecho da carta de Mem de Sá, ao seu Rei em Portugal.
No nordeste, a expansão pastoril da Casa da Torre não conhecia limites e com audaciosa ganância, às avessas ao mar, Domingos Jorge Velho e Diogo Afonso Sertão, dos Ávilas, vinha desbravando o Piauí. E os Kara-thi-us, tapuia, índios brejeiros, estavam sempre dispostos a se levantarem. De lanças e arcos nas mãos, matavam, pilhavam, roubavam o gado e por todos os meios se vingavam dos colonos, seus atrozes inimigos que queriam tomar suas terras.
De Pernambuco, filial de Torre de Tatuapara, o Governador expediu uma severa ordem ao capitão-mor do Ceará: façam guerra cruenta de extermínio à todos os tapuia: Kanindés, paiakús, Genipapos, Arariús, Anacés, Karariús e kara-thi-us! A lei foi executada de forma a dar orgulho aos piores bárbaros da humanidade: “de 400 índios aprisionados, mataram logo 95 a ferro frio” pág 117 do livro Esboço Histórico sobre a Província do Ceará, de Dr. P. Thenberge. Indígenas, sem números, foram mortos em nome da caridade cristã, já que eles não aceitavam a catequese e a civilização do novo mundo, foram perseguidos e caçados como feras pelas brenhas, nos eitos das matas.
 No vale do Itaim-açu, primitivo nome do Rio Poti, os indomáveis Kara-thi-us resistiram bravamente até o fim. Foram os últimos moicanos a correrem livres por entre imburanas, aroeiras, angicos, mufumbos, marmeleiros, juazeiros e mandacarus da imensa caatinga cearense.  No distrito de Montenebo existe uma gruta encravada no paredão da Serra da Ibiapaba. É a Furna dos Caboclos. Por lá ouve a última carnificina imposta aos tapuia, uma parte da história que em nada nos orgulha. Os últimos índios da região moravam naquela caverna. Alimentavam-se de jacus, mocós, cutias, mas numa seca impiedosa foram obrigados a caçar o gado do Senhor José de Barros, na Fazenda Bebida Nova. Com arrogância de um Ávila, aquele senhor ordenou o extermínio dos índios. Antes, um Judas se fez de amigo e, na noite da traição, cortou as cordas dos arcos para que executores entrassem, livremente e desfechando balas para que ninguém escapasse. Mataram homens, mulheres e crianças. Não se sabe como, por milagre ou sorte, uma menina karati fugiu e se ocultou na mata. Só se ouvia a notícia de uma indiazinha correndo feito onça. Foi necessário o auxílio dos cachorros de caça para que o senhor Pedro pudesse capturá-la. Chamaram-na de Jovelina, a última tapuia, de onde descendem uns “índios” que “catequizados” andam por aí, mas com o mesmo sangue que ainda corre avermelhado nas águas do Tatuapara, pulsando com alguma esperança de liberdade, o último remédio que a natureza deixou para todos os males.
Como o povo dominador que gritava, quando em desespero, o nome de Sebastião, um Rei que jamais regressou, os descendentes tapuia devem, também,hoje emitir seu grito de guerra ou de honrosa exaltação, proclamando o nome dos heróis que um dia se foram e não mais voltarão: Karatis! Karatis!   
Raimundo Cândido
José Alberto de Souza disse...
Impressionante narrativa abordando o extermínio dos gentios no sertão nordestino que em nada difere do que ocorreu com outros povos ameríndios. O colonialismo europeu se impondo a ferro e fogo em terras do Novo Mundo para saquear e monopolizar riquezas, é bem o carma que carregamos através de tantas gerações.