terça-feira, 31 de julho de 2012

O Ipê e Colibri


Palmilhava, no desfecho da tarde - a moda dos poetas, passos leves, silhueta cabisbaixa - uma trilha poeirenta de minha rejuvenescida caminhada, quando, num súbito alento, percebo ao longe uma árvore toda desfolhada com um banquinho de madeira ao lado.


Mais de perto, inspeciono melhor aquele monumento solitário na beira da estrada.


Não tenho uma boa capacidade de identificar plantas, mas logo reconheço aquele esgalhado vegetal sobre um grosso tronco escurecido, era um velho e majestoso pau-d’arco que agora hibernava.


Embora sem folhas, sem flores, havia um doce perfume de pétalas de rosas e um colorido beija-flor que por entre os galhos secos revoava. Um vento suave soprava sobre o meu rosto suado, mas não remexia com as folhas secas que jaziam no chão.


Percebi que sentados no rústico banco de madeira enegrecida, em conversa animada, dois simpáticos velhinhos, indiferentes a quem por ali passava. Um senhor de fronte calva, cabelos brancos escorridos sobre os ombros, alva barba bem cuidada e um grande óculos de aro fino sobre um olhar profundo explicava, em didática explanação, como se fizesse uma avaliação de uma obra efetuada no mundo:


- Pois é, minha senhora, de tanto tentarmos educar os outros, agora nós é que nos educamos, para uma nova missão.


Percebi então uma idosa senhora, também de cabelos brancos e um olhar cansado, mas com feição firme de implacável rigor e coragem. Replica a declaração do ancião:


 - Com certeza! Deixamos as sementes plantadas, e mais do que nunca percebemos o valor daquela sua proposição máxima: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. Lembra-se!


Enquanto caminho, percebo que o frondoso Ipê, subitamente, desabrocha em flores brancas como a neve, para êxtase do alegre beija-flor, que em rejubilo festeja.  


- Senhora, eu confesso que me emocionei quando disse em tom de despedida: “ Dei tudo de mim pela educação”.  A senhora criou um belo amanhã nas cartilhas amareladas do ontem!            


- Sinto-me lisonjeada por sua opinião. E revelo minha admiração, por um intelectual ser tão amoroso. Aquela sua explicação do amor incondicional, muito me emocionou: “E é porque amo as pessoas e amo o mundo, que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade”.


Eu não sabia em qual espetáculo me concentrar se no diálogo dos afetuosos velhinhos ou na copa amarelada das flores do mágico Ipê, para delírio do beija-flor.


Prossigo no meu caminhar da saudade, deixando pegadas no fim de trilha, e escuto, já distante, a voz da terna senhora ainda a falar: “... não só ensinei as crianças a ler ‘Eu vi a uva’, mas abri um olhar essencial para a janela da alma daqueles pequeninos que começavam a decolar para à vida...”


Minha surda audição capta os últimos sons de um distinto senhor a asseverar:


- Minha senhora, seu educar foi um ato de amor!


Viro-me, naquele exato momento, como que compelido e vejo o frondoso Ipê – que não me é estranho – com os galhos, repletos de flores arroxeadas, revolteando como a me dar um abençoado adeus. Só não entendi porque aquele simpatico colibri insistiu em me acompanhar.


Raimundo Candido

José Alberto de Souza disse...
Extraordinária poética, ternura no mais alto grau, cada vez admiro mais suas crônicas, sempre impregnadas do mais puro sentimento.

segunda-feira, 30 de julho de 2012


                                                       A FILHA

Abely detesta o seu nome de batismo. Numa fria manhã de raiva abrasiva, ela pede explicação aos pais. A mãe: “O seu nome é o da sua filha que você matou em outra vida”.

Silas Falcão

domingo, 29 de julho de 2012

Zé do Povo



 Enquanto a professora e cantora Fatinha Marques passa na rua, em seu carrão, como um cintilante pássaro a gorjear melodias, lembro-me dos meteoritos errantes. Ela dá uma lição de como alcançar sucesso: trabalho insistente, sem nunca perder o entusiasmo. Essa estrela ascendente exibe-se em programas de televisão, na internet e até mesmo em jornais e revistas. Seus videoclipes, no Youtube, superaram a faixa de 500.000 acessos servindo como efetivo termômetro da repentina fama, a descontentamento de invejosos.
Pensando na ascensão dessa incontestável estrela musical, é inevitável que me venha à mente os astrólitos catastróficos e os meteoritos apocalípticos. De acordo com a NASA, a chance de um asteróide atingir a Terra é de 1 para 625, e vai diminuindo a medida que o tempo passa. As bolas de fogo, que riscam o céu, são uma ameaça constante sobre as nossas cabeças mesmo que a imaginação os transforme em momentos de crendices para solicitar que desejos sejam realizados. A grande ameaça anunciada é um asteróide de 137 metros de diâmetro catalogado como 2011 AG5, que passará bem próximo do nosso planeta em 5 de fevereiro de 2040, com remota probabilidade de choque.
E, por estranho que pareça aos crateuenses, já estamos acostumados. Em 1909, numa caatinga de inóspito carrascal arbustivo, com ramos duros e esguios, repleto de seixos roliços, um atento sertanejo vê uma pedrinha de uns 350 gramas, bem diferente, avermelhada como ferrugem e como se alguém tivesse deixado marcas de dedos impregnadas. Guarda-a, na algibeira. Nem imagina que vale uma fortuna. Mas já havia caído outra, bem maior. Foi achada em 1914, riscou o céu da cidade como uma enorme bola de fogo e foi se consumindo pelo atrito atmosférico, até restar somente um bólido de uns 27 quilos e meio quando estrondou nas margens do Poti, assustando a tudo e a todos que por ali passavam, como uma explosão de mil dinamites. Os dois tesouros fazem parte, agora, da Relação de Meteoritos Brasileiros que estão no Museu Nacional de Meteorologia do Rio de Janeiro, catalogados como Meteoritos Crateús.
Já nem mais se ouve a cadência musical retumbando no ar e fico a relembrar de outros meteoritos humanos que brotaram da mágica Rua Frei Vidal da Penha. Quando a virtuosa Dona Saluzinha, criando sua prole numerosa com duro labor e muita oração, reclamava carinhosamente da danação das crianças: – Ó Tadeuzinho de Nossa Senhora, você quer uma pisa ou um pedacinho de rapadura? Daquela abençoada família surgiu um meteorito reluzente que se dignificou pelo trabalho e enfrentou os ardis da arte política. Chama-se José Marques de Alcântara, vulgo Zé Maria Pedreiro, tio do meteorito Fatinha.
A necessidade é uma das grande lei da natureza, mesmo que a Organização Internacional do Trabalho homologue o contrário. A privação é mestra e guia, inspira e obriga. E um guerreiro-menino, aos 7 anos de idade com a barra do tempo por sobre os ombros, pega um caixote de bombons com tira perpassada no pescoço e vai trabalhar no Trem encantado chamado Maria Fumaça, num divertido vai e vem, entre Crateús e Oiticica. Mesmo tendo acreditado que, naquele dia, o mundo iria se acabar com a visão inesperada de aviões que soltavam fumaça pelo rabo em assustador sobrevoo rasante e com a população de Oiticica que correu desesperada. O sobressaltado menino sentiu uma súbita necessidade de comer os pães que levara da Padaria do Sr Ferreirinha, com a proximidade do fim do mundo. Pensou “é melhor morrer de barriga cheia” e desde aquele dia que uma coragem brotou no coração de um menino-homem temperado com a doçura de criança que sobrevivia vendendo pão e guloseimas.
Zé Maria é uma dessas poucas pessoas que pode afirmar literalmente: ”Meu nome é trabalho e o sobrenome é hora extra”, pois biblicamente come o pão com o suor do rosto. Trabalhou no Cartório Eleitoral com o Dr. Desembargador Olavo Frota. Estava na turma de cassacos que construía a estrada de ferro Crateús-Independência, época de grande seca e renhida clemência por bom inverno. Vem as chuvas e o sertanejo larga tudo e corre para lavrar as roças e a incompleta estrada de ferro vira um fantasma. Já exímio nas obras de pedra e cal, vai trabalhar no Distrito de Poti onde conheceu a digníssima amada e se soubesse de Fernando Pessoa teria dito, no auge da paixão: Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo? Mas havia o enérgico pai da noiva.  Com uma boa talagada de pinga lagoa do barro todo frouxo cria coragem. Ele criou e foi pedir a mão da eleita:
– Seu Zé, o que me trouxe aqui foi pedir...
– Pedir o quê?! O corpulento pai da donzela já estava com a mão sobre um revolver que repousava, manso, sobre a mesa.
– ... pedir um jumento emprestado para tirar uma carga de lenha.
Quem pediu mesmo a mão de dona Maria de Lurdes foram as cordas de um violão, quando o Zé Maria Pedreiro dissimulava-se em fino seresteiro das madrugadas.
Em Crateús houve uma briga muito estranha. Diz, um desses tolos poetastro de imaginação fértil, que os galos da torre da Matriz têm nomes, o da esquerda é o Macedo, o da direita é o Bonfim que conspirou com uma rabugenta coruja cara de beata, e degringolam o coitado do Macedo que cai do alto da torre. O único a ter coragem de entronar novamente o velho e caduco galo é o pau para toda obra, o pedreiro Zé Maria.
Segundo o filósofo grego Aristóteles, o homem é por natureza um ser político. E para quem vivia sintonizado nas ondas de rádios, procurando informações de Cuba, de Moscou ou ouvindo com fervilhante ânsia as notícias de Heron Domingues, a testemunha ocular da história, no Repórter Esso, a única vereda possível era a política mesmo. O brio e a fascinação que se depreendem espontaneamente da alma deste pedreiro mostra uma simplicidade ímpar e uma habilidade social acima da média, qualidades que o indicaram com candidato ideal a prefeito tremulando mais uma vez a bandeira das esquerdas (dizem os entendidos que houve a mão do Marcos Melo, filho do Luiz Mano, um corajoso socialista de utopia cabocla). A primeira disputa para prefeito, onde adquiriu experiência, foi contra uma máquina governamental em época da cruel ditadura. O Zé conseguiu vencer Dona Leonete Camerino por 138 votos na zona urbana, mas os sufrágios interioranos chegaram, tangidos como o estouro de uma boiada, esmagando o Pedreiro da esperança, seu slogan político. Sentiu o primeiro revés financeiro, mas nada que trabalho duro e honesto não pudesse refazer.
                A política é uma guerra sem derramamento de sangue. E nas boas guerras tem-se que agir como os tigres: mostrando eficiência e muita lábia astuciosa, como na campanha de 1996 contra Paulo Nazareno. O Candidato do Povo encontra o Dr. Paulo em rota de campanha e o cumprimenta cordialmente. Diz: – Doutor, já é coisa líquida e certa, eu vou ganhar esta eleição e quero que seja o senhor seja o meu secretário de Saúde. Paulo descerra um sorriso sincero nos lábios, pois sabe de suas reais possibilidade, e arremata: – Meu amigo Zé do Povo, você está iludido, mesmo assim eu estou lhe convidando para ser meu Secretário de Obras, aceita?
                Com certa antecedência, o PMDB decide fazer o comício de encerramento da campanha. A Praça da Matriz estava lotada que nem sardinha em lata. Foram discursando: os vereadores, com muitos sonhos e promessas vãs estampadas no ar, depois o vice, João Aguiar, que soltou o verbo alado revoando sobre as cabeças dos milhares de eleitores conscientes do que estavam fazendo ali. Um microfone, vigorosamente, anuncia: – Agora, com vocês, ele, o nosso querido prefeito, Zé do Povo!!! O inesperado, o inacreditável, é bom que se diga, aconteceu. Escuridão total em plena praça. Supõe-se, conjecturam-se e esperam, pois a esperança é o sonho do sertanejo que vive sonhando acordado. Há um rumor quase que silencioso e lá no final da multidão alguém acende um isqueiro e bem alto, quebrando o silêncio sepulcral, iniciando um refrão como um doce hino: – Zé do Povo!!! – Zé do Povo!!! Numa emoção que instantaneamente contagiou, um a um, de repente a multidão clareia a praça com fósforos, velas, isqueiros e esperanças em suas almas como pequenos asteróides uníssonos e em coro a bradar:  – Zé do Povo!!! – Zé do Povo!!! – Zé do Povo!!! Por vinte longos minutos, sem parar, até que o sol da consciência voltasse a brilhar na praça.  Então o povo ou(viu) um cintilante meteorito no fim da escuridão, ele fala: – Olhem, eu sei que eles detêm o poder nas mãos e por isso fazem o que querem! Eu sei que eles trouxeram ministro, governador, senador e deputados para ajudar na campanha. Agora, só falta trazer o Papa. Mas que tragam, pois o Santo Padre vai é rezar por esse proletário que vive derramando suor pelo bem do povo. Ele vai é dizer assim: – Levanta Zé, a pobreza de Crateús precisa de tua proteção e de teu trabalho!
E o Pedreiro Zé Maria é levado nos ombros de uma multidão ensandecida, dando voltas olímpicas na praça, com o mundo todo a gritar: Já ganhou!!! Já ganhou!!!
                É bom saber que o cidadão Zé Maria é novamente candidato nestas eleições, agora a vereador (12222) pelo PDT do carismático e saudoso Leonel Brizola. É bom também que se tome conhecimento de que continua uma pessoa aguerrida e que as asperezas de um homem, lapidado na luta, não amargaram a doçura do menino que vendia bombom na saudosa Maria Fumaça.
Zé Povo!!! Zé Povo!!! Zé Povo!!! É o que ainda ouço, sempre que vejo este meteorito passar!

Raimundo Candido
Jose Alberto de Souza disse...
O universo de Crateús brilha no firmamento das letras com essa comovente crônica de uma comunidade que se projeta no cenário estelar qual um cometa a perder-se no infinito.
 
João Silas Falcão Soares disse...
Poeta Raimundinho, as suas crônicas são leituras de lugares comuns a muitos leitores. Você sempre resgata um passado que nos pertence. Zé Maria Pedreiro é outra lembrança de minha adolescência na rua da Cruz. É inesquecível o momento em que meu pai, Pedro Severino, contratou a competência profissional do pedreiro Zé Maria para fazer a “puxada”, como se definiu a época, da cozinha e sala de jantar da nossa casa. Minha mãe queria ambos os espaços mais amplos e arejados. E em outras contratações ele executava com muita responsabilidade o seu ofício de Mestre de Obra muito conhecido e respeitado. O Zé Maria tem o andar do povo. Simplicidade do povo. Palavras do povo. Expressões corporais do povo. Trabalhador como o povo. Zé Maria Pedreiro é o povo. Há muito tempo ele devia estar dinamizando uma vaga na câmara municipal ou prefeitura. Ele merece por ser um batalhador incansável. Sendo eleito, tenho certeza que o Zé do Povo, mesmo sendo vereador e não prefeito, construirá novos caminhos para Crateús. Espero que Crateús não esqueça dois candidatos que pertencem ao dia a dia do povo: Zé do Povo e o Louro da Cruz.