quinta-feira, 21 de maio de 2015

Flor Negra



Ontem,
desenterrei um amor
que um dia foi vida
e brotou, em mim,
uma flor dorida!
Hoje, sepulto,
ainda vivo,
outro intenso amor
que me alucina,
e me envenena
em puro mel, sendo fel,
na branca ilusão
da flor que enegreceu:
Bestial Perfídia!


Raimundo Cândido         

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Da Furna ao Morro.

                                       
Época houve em que tive medo da vida. Um estranho acanhamento isolou-me do mundo e, de repente, vi-me mergulhado numa furna sem luz, abatido num triste ambiente de solidão. Somente os livros avivavam-me o espírito, diminuíam a melancolia, pois a boa leitura sempre trilha ao revés da solidão. Foi quando caiu em minhas mãos uma obra literária da escritora cega e surda Helen Kellen, onde ela dizia: “A vida é uma aventura ousada, ou, então, não é nada!” Neste exato momento resolvi derrubar as paredes que tolhiam a minha alma e me predispus, como audaz aventureiro, mas ainda insociável solitário, a trilhar, ao léu, os caminhos desolados do sertão.  Desde então, a passos firmes, ando pela Ribeira do Poti, em busca de mim, em busca de vida!
Percorri longos trechos nas margens do rio e até dos descampados da inóspita Caatinga, sem importar se tudo estava em cinza dos entorpecimentos ou do verdejante renascimento, mas era o que eu procurava e, o mais importante, foi descobrir que sou sertão, que nasci sertão e que viverei sertão! Percebi que corre, nas calhas de minhas veias, a seiva vivífica das catingueiras, dos angicos e dos marmeleiros! E que detenho, impregnado no faro, um aroma consistente de mufumbo a perfumar a vasta e desamparada Caatinga que se estampa ao meu olhar.
Quando em visita a uma comunidade indígena, na vertente da Serra da Ibiapaba, soube da existência de uma furna selvática chamada Quarenta e Sete, localizada entre as tribos de Nazário e Mambira, e o desejo de aventura, mais uma vez, disparou no meu cerne. A sorte é que não sou o único louco aventureiro deste sertão abençoado de meu Deus. Coincidentemente, ou não, o amigo Edilberto Araújo, esposo da benevolente vereadora Eva Vieira Barbosa, liga-me convidando para conhecer a dita caverna, há muito inexplorada. Rapidamente, como experientes espeleólogos, detalhamos toda excursão para explorar aquele sitio no subterrâneo da serra.
Os raios do sol ainda não acordara o dia quando partíamos na Toyota Hilux do Vereador Toré. E já na rampa da serra, com o carro tracionado nas quatro rodas, numa subida íngreme de pedras soltas da estrada cortada pelas enxurradas recentes, vencendo árvores caídas no gume do machado, e só a esplendorosa visão, que se tinha do amplo vale da Ribeira do Poti, compensou o sufoco do dificílimo trajeto. Paramos a meio caminho entre as duas aldeias, por ordem do nosso guia, o experiente índio Severino. Agora tínhamos que seguir a pé, numa picada que ia sendo aberta na mata, a golpe de facão, decepando os galhos de marmeleiros brancos e juremas de bode. Aqui e acola alguém apontava uma marca no chão e interpretava: - Esta pegada aqui, com certeza, não é da pata de um cachorro! Mesmo com os avisos de cuidado, as nossas mãos ficaram urticadas pelos espinhos de cansanção.
Após uma boa caminhada chegamos à rampa do declive da serra e encontramos um grande buraco no chão pétreo, de onde saía os galhos da copa de uma árvore, como uma ofertada escada para descermos para dentro da furna. O medo de cair gelou meus nervos, mas escorregamos, lentamente, uns três metros de altura, pelos galhos e tronco da árvore, como macacos equilibristas. E, já no chão da caverna, um fascínio tomou conta de meus olhos, pois o brilho refletido nas paredes da furna se espalhava no ar. Está ali, pisando no chão da famosa Furna Quarenta e Sete, 47 braças, mais de 100 metros de abertura na rocha, entrando no subterrâneo da serra da Ibiapaba, era inacreditável! Enquanto a luz descia pelas fendas superiores, víamos toda beleza e resplendor de uma furna virgem e, de repente, a caverna foi se fechando, foi se afunilando numa loca estreita, escura e tão baixa que não cabíamos de pé.
O Claudemir Moraes escaneou o chão negro da caverna com a luz de sua lanterna e viu que não havia rastros dos animais perigosos que ele temia. Então fez sinal para que o seguíssemos. Fui o único intrépido que o acompanhou naquela afoiteza, confiado na socadeira engatilhada que ele levava na outra mão. Até lembrei-me da furna da minha solidão! Mal as pupilas se dilataram no breu que engolia o facho de luz artificial, nos assustamos com milhares de morcegos horripilantes voando em disparadas em nossa direção e que passavam como balas na escuridão, rente as nossas orelhas. Foi o tempo mais longo que fiquei sem respirar. Acho que meu rosto era a cara do pavor, naquele crucial instante!
Os poucos minutos que passei mergulhado na escuridão da 47 ficaram, agressivamente, gravados na mente, e sempre que me lembro daqueles vultos me vem o desespero que só vi emergir do famoso quadro O Grito, do pintor norueguês Edvard Munch.
Despedimo-nos da Furna Quarente e Sete, assentada no mais inacessível recanto da Caatinga crateuense, isolada do mundo, com sua vida selvagem, misteriosamente bela, diuturnamente burilando por lá.
Na descida, ainda com espanto nos olhos, olhávamos para o provinciano povoado de Ibiapaba, estendido lá embaixo, tendo ao fundo um grande morro como uma enorme corcova de camelo. Para todo aventureiro, uma paisagem estimulante, assim, é motivo de sonhos, é motor de irrequieta excitação. Parecia até que o Morro do Picôte nos desafiava a enfrentá-lo! A ideia foi criando asas de tal forma que a escalada dos 650 metros de altitude estava com os dias contados. A última excursão tinha acontecido em 1963 para os dados altimétricos do IBGE. Histórias eram só o que se ouviam, de boca em boca, sobre o íngreme oiteiro da Ibiapaba: O povo, que ainda se lembra dos gananciosos americanos que exploram o Picôte, em tempos remotos, na procura de riquezas, conta dos descuidados caçadores de mocós que caíram dos princípios íngremes ou fala do espetáculo dos macacos-prego descendo a rampa, só para invadir as roças de milhos plantadas na base do morro.
Dos mistérios do subitâneo da Serra partimos para os pícaros dos céus da Ibiapaba. Edvaldo Costa, Secretário de Turismo, incumbido de promover o ecoturismo local, propôs que, antes da escalada, se abrissem uma trilha para o topo. Ideia, de imediato, aceita por todos os aventureiros. Um pick-up nos deixa na base do morro e começamos a caminhada, em decidida fila indiana. Água e alimento suficiente, nas mochilas, iam dependurados nas costas. A mata se fechava à medida que subíamos, e as copas dos angicos, das aroeiras, dos jucás, dos paus-brancos aparentavam atentos olhares a nos vigiarem. De vez em quando víamos um enorme mororó, todo ressequido, já sem vida, com a casca roída pelos mocós, como forma de escapar dos anos difíceis de seca. Mel de abelha é uma das farturas do Picôte, enxames que há anos produzem em abundância no mesmo local e víamos as abelhas nativas, sem ferrão, que entravam e saíam dos ocos de paus e até das locas de pedras. Um ninho de Nambu assentado no chão, com três ovos rosados, parecia desprotegido, num ambiente infestado de esfomeadas cascavéis. Com uns 300 metros de altitude, o fôlego já curto, as mãos é que iam ajudando as pernas a subirem, e se grudavam nos embuás, uns bichinhos compridos com mais de 100 pernas avermelhadas. Um vento frio no rosto indicou que o cume estava bem perto e mais uns passos chegaríamos ao topo. Ainda tivemos que subir um enorme bloco de pedra e a visão foi surpreendente. Todo o vale do Poti de descortinou na nossa frente, com o rio correndo, serpenteando feito cobra, passando ao lado da Ibiapaba e absorvendo o grande Riacho Oiti e seguem juntos, rumo ao Estado do Piauí.
A sensação de vencer uma montanha é indescritível. Ali, no topete do Picôte, sentido o vento da liberdade acariciando meu rosto, lembrei-me, mais uma vez, daquela escritora surda e cega a me dizer: “A vida é uma aventura ousada, ou, então, não é nada, amigo Raimundo!” E deixei no pico do morro da Ibiapaba o que ainda havia de medo na minha alma!
 Hoje, graças as aventuras pela Ribeira do Poti, das brandas margens do rio, tal qual um socó-boi, aos carrascais da inóspita Caatinga como os instintivos répteis, ou das furnas misteriosas, repletas de morcegos, aos morros íngremes replenos de incitante coragem, respiro um vento libertador chamado SERTÃO. O Sertão de Cratheús, onde me embriago ao aroma do mufumbo e, vou ao encontro de mim, ao reencontro da vida!


Raimundo Cândido.