quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Fazenda Ponciano

                                               Fazenda Ponciano

Uma robusta aroeira revestida de casca cinzenta e escamosa, com nós no tronco a mostrar o cerne incorruptível de uma madeira imputrescível, resistiu aos vendavais do tempo, ao crestar de raios impiedosos e ao perverso machado da mão dos homens. Escapou de ser uma mera estaca, uma singela viga ou um roliço mourão de cerca nas fazendas dos Sertões de Crateús.  Hoje é um longevo ser, indivíduo lenhoso, leal e centenário que, firme e de pé, guarda as histórias e os segredos que se passaram nos terreiros da Fazenda Ponciano.  Sente a ausência dos antigos companheiros, uns velhos mulungus copados que degringolaram, não resistiram à corrosão das eras, e eram aonde se amarravam os animais que chegavam às terras do rico fazendeiro João de Melo Matos.
Em frente ao conservado casarão, e olhando aquele honrado tronco de aroeira, fiquei a captar suas histórias, como que absorvendo por uma estranha e vegetal osmose. Sussurro de vento foi o que me pareceu a voz daquela árvore anciã, relatando-me o passado. Ouço, atentamente, aquelas confissões arbóreas e me dispus a transpô-las para um papel, como me solicitou a velha guardiã do Ponciano.
“Houve um tempo de muita fartura, uma época de abundância por aqui. E o que faltava, era só o que não era necessário!”. Bem atencioso fiquei, do começo ao fim, àquela história! E a falante planta prossegue, relatando-me as suas memórias:
“A Fazenda Ponciano foi assentada no topete deste pequeno morro para fugir das cheias do Rio Poti. Nas chuvas torrenciais, aquela vigorosa grota que tem o mesmo nome do local, ajudava o inconstante rio a isolar o casarão do resto do mundo. Bem aí, onde você está parado, estendia-se uma movimentada trilha por onde passavam os transeuntes, a pé ou a cavalo, rumo ao longínquo Curral Velho. Quem passasse, fosse quem fosse, em frente ao casarão do Ponciano de Seu João de Matos, tinha direito a uma tora de rapadura e a saborear um naco de queijo, expostos num cepo de madeira, enfincado perto do calçadão.”
“Olhe ali, para o alpendre da fazenda, naqueles armadores ficavam descansando os arreios, as peias, as cordas, os cabrestos, as rédeas, os brides, as esporas, os baldes, as esteiras, os gibões, as celas, as cangalhas e tudo que um vaqueiro precisa para começar o traquejo do dia, bem cedo, ainda no escuro da manhã.”
“Sob as ordens do Senhor João de Matos, que participava de tudo, desde a ordenha matinal das vacas no curral, até o tanger de ovelhas no entardecer e todas as atividades agrícolas eram realizadas por um batalhão de pessoas que residiam no Ponciano. Quando se deitava numa rede estirada na varanda, para fazer o balancete do dia, a Dona Maria Rezende de Matos Melo, sua esposa, vinha lhe servir uma xicara de café quente.”
Eu via somente os ressequidos galhos da aroeira contrastando com o céu azul, e ficava a imaginar de onde poderia vir aquela voz: Seria dos rombudos nódulos do tronco?
“O quintal era enorme e fazia gosto de se ver: Os perus, os capotes ariscos, as gordas galinhas e até os exibidos pavões desfilavam, ciscando no terreiro. Mais afastado, devido ao aroma característico, havia o chiqueiro de  sujismundos porcos. No curral de gado, construído com caules das carnaúbas, que ficava ao lado direito da casa, estava a vacaria que produzia a principal mercadoria da fazenda e ainda sobrava leite para a gostosa coalhada e para tantos queijos, que chegavam a petrificar na tábua da dispensa. Vi um queijo de quilos, já pedrento, servir de escora para uma porta. Mesmo com Seu João de Matos, cutucando com um gravetinho de madeira o vão entre dois tijolos do piso, só para tirar um carocinho de feijão perdido e retorná-lo aos tambores da despensa, ali era a casa da fartura.”
A velha aroeira, percebendo minha admiração por suas histórias, continuou: “Quem sabia contar realmente historias, e das boas, era o negro João Mariano que vinha do Quirino de Cima para cá, em época de matutagem.”
Incrível, mas aquela velha árvore estava mesmo lendo meus pensamentos, captando meus sentimentos, sem que eu perguntasse, e como que debochando de minha ignorância, explica-me:
“Matutagem é como se chama a matança de gado nas fazendas do sertão. Toda semana se matava um boi no Ponciano. Vinha gente dos outros locais, que também eram propriedades do senhor João de Matos: das Melancias, da Grota, do Quirino de Cima, do Lago, da Cana Brava e da Taboa. A animação durava o dia inteiro, e o melhor era ver a lua prateada no céu estrelado, ouvindo o negro João Mariano, sentado num tamborete, contando as suas assombrosas histórias, até a meia noite.”
“Uma multidão, o Seu Júlio, o Milton, o Wilson, o Manoel Joaninha, o Antônio Filó, a Janoca, o Vicente Damião, o Manoel e o João Palhano, o Cosmo Viana e alguns fazendeiros que moravam por perto, faziam um círculo ao redor do negro contador de lorotas. Alguém, lembrando-se das suas gabolices anteriores, ia logo perguntando: — Mariano e aquele marruá preto, ainda tem aparecido no Quirino? O negro, um individuo alto, que pela aparência se dizia logo que era um pelejador de roça, mas o vivo olhar denunciava a inteligência fina, respondeu: — Nem me pergunte por aquela assombração desgarrada, meu amigo. Quando eu vinha andando pra cá, estranhei o silêncio da mata. Parei e fiquei atento aos vultos nas veredas. Nada! Mas meus cabelos continuaram de pé, eriçados! Quando olhei pra trás, vi as duas tochas de fogo no breu do escuro. Era ele me farejando. Eu corri, da beira do rio até aqui, mais rápido que um mocó em loca de pedra. Outro dia, o touro endiabrado, acompanhou o Trem de cargas que passa na madrugada, até tangê-lo para fora das suas pastagens, a gente só ouvia os cascos dele pisando o chão duro, misturado com o som do mastigado das rodas de ferro nos trilhos.”
Quis perguntar algo a mais sobre o negro Mariano, mas lembrei-me que a aroeira usava da telepatia, tinha poderes extra-sensoriais. Respondeu-me:
“O Negro Mariano morava, com duas irmãs, na propriedade do Senhor João de Matos, chamada Quirino de Cima. Era uma época em que não existiam esses aparelhos mágicos que relatam fatos para as pessoas. E no Ponciano, o contador de história, deu um espetáculo de fabulação. Disse que foi pescar de linha, já tarde da noite, no poço assombrado na beira do Rio Poti. Já estava irrequieto, pela ausência do peixe. E na impaciência gritou, assim: — Tomara que eu pegue um peixe, nem que seja pelas artes do diabo! Neste instante algo começou a fisgar no anzol. Morde firme. Ele dá um puxarão pra fora d’água e o bicho se estatala no chão. Quando olha, vê um tiçãozinho de gente, mais parecido com um macaco, dando umas rasteiras na areia e convidando o Mariano: — Vamos Jogar capoeira, meu negro!”
“As histórias de João Mariano continuariam pela noite adentro, se a plateia não lembrasse que no Ponciano não havia dias de folgas. Logo de manhã cedo estão todos no batente, na labuta novamente. Os arreios, as rédeas, a cangalha e as esporas trabalham de domingo a domingo”
Já estava me sentido como um daqueles velhos mulungus, nos seus dias de fim, com suas raízes aparecendo no ar pela erosão das águas e do vento, quando olho para o casarão e não mais vejo aquilo que existia outrora, o bucólico Ponciano do Senhor João de Matos, o Pudidi, avô da Dona Delite. Tudo agora é outro tempo, outro lugar, outra vida. E a velha aroeira que me pareceu mais triste, mais desiludida, ainda consegue me dizer, num choro implorado: “Amigo, escreva no papel que o meu passado não quer se calar!”


Raimundo Cândido

domingo, 16 de novembro de 2014

O Mulungu



Sorvi, uma a uma,
eras agridoces
da amplidão:
e vi o  teu caminhar,
enleado ao do teu bisavô,
velejando no ar
desta longa solidão
que nuca findou,
e verei, no mesmo ermo,
rijo, de um sem fim, 
o teu assombro aceso,
a me avistar, com anseio,
no contemplar incrédulo
do súbito espanto  
dos que ainda virão
com um olhar idêntico
ao teu avoengo enleio.


Raimundo Cândido