sábado, 12 de janeiro de 2013

O Torpedo Lacuxia.

 
            O dia de domingo, sendo límpido, venerável e reverencial, está predisposto aos cultos, às celebrações que fortalecem o espírito. Mas, igualmente, é um dia mágico e devotado à arte do futebol como um banquete de noventa minutos sem deixar de ser religião, tornando-se uma questão de fé, flamejando em nosso espírito como uma bandeira poeticamente bíblica.
            Quando a multidão, absorta a um pontinho esférico esvoaçando no tapete verde de um estádio, se levanta e grita em uníssono o seu canto de esperança e guerra, em ato de vida e morte, obriga aos poetas a declararem que o domingueiro esporte bretão não se joga somente nos gramados, nas praias, nas várzeas ou nas ruas, se joga também na sacrossanta arena da aguerrida alma, por uma animosa sujeição que trazemos amarrada ao peito, desde a remota infância!
             Naquele domingo, em que o sol já amanhecera escaldando o tempo nas primeiras horas do dia, o Senhor Moacir Machado, treinador do Botafogo, uma equipe de talentosos garotos que prometiam ser o Dream Team  do futebol crateuense, mostrava-se apreensivo.  Estavam de saída para um jogo amistoso na vizinha cidade de Ararendá, mas um importante desfalque na lateral direita o afligia.  Moacir lembra que o goleiro do seu time lhe falara de um menino que batia um bolão na Rua Farias Brito, no campinho ao lado da cadeia pública.
             - Nicolau, vamos buscar o lateral que você me falou?
             - Vamos sim, treinador, sei onde ele mora!
             Deparam-se com o pai do menino, na porta da casa: - Seu Francisco, cadê o Lacuxia?
              - Sei não! Aquele menino só quer saber de bola! Provavelmente vocês o encontrarão jogando na beira do Rio.
              Dito e feito! Lá estava ele correndo atrás de uma quicante “Bola Pelé” no campinho improvisado, se divertindo numa “pelada”. Demoram-se um pouco, só observando como o talento que buscavam “manejava” aquele organismo semivivo chamado pelota. O convite, que fora aceito de imediato, não o surpreendeu, pois já era um espírito amadurecido para a pouca idade que tinha. Sim, uma alegria brotou no peito, visto que era o primeiro degrau para um grande sonho e sabia que fazer parte do quadro da estrela solitária crateuense era um grande privilégio.
             Todo time que joga em casa tem uma primazia, mas quando na equipe adversária sobram talentos, a vantagem do outro é como fogo de palha...  O jogo, em Ararendá, não foi fácil e já pertinho de terminar o segundo tempo, num angustiado aperto de 1 x 1, o time adversário comete uma falta, um pouco afastado da meia-lua. O Moacir ordena de longe “Deixem o Lacuxia bater!!!”. Todos, que estavam ao redor do campo de terra batida, ouviram uma pancada seca, como um coco caindo das alturas e se estalando no duro chão. O torpedo descreveu a precisão geométrica de uma parábola, raspando o ângulo de 900 da trave ararendaense, estufando a rede. A festa da vitória foi regada com muito aluá na praça da estação, em frente à casa do experiente técnico Moacir.
             Os holofotes só necessitam de um foco, e a luz daquele jogo acendeu as lâmpadas, ligadas em série, que abrilhantaram a trajetória desportista do João Lacuxia. O Futebol de salão lhe aprimorou as armas poderosas que já tinha: a habilidade, a explosão, a velocidade e a potência do chute que aplicava na pesada bola, em explosão tão violenta que a bila partia como um “pombo sem asas”, a mais de 100 Km/h e com 80 kg na pancada.
            Desde o Futebol de Salão na quadra do colégio Regina Pácis, cujo técnico era o Prof. Eurides, que partiu para jogar em quase todos os outros times: do União do Deromir ao Palmeiras do Dr. Almir, participando de todas as seleções crateuenses que se formaram na sua época.
        O palmeiras jogava com uma equipe de Independência, na quadra da cadeia pública, quando o juiz marca um pênalti a favor do verdinho. Lacuxia prepara-se para bater, mas antes avisa bem alto ao goleiro, como sempre avisou, acho que se lembrando do irmão, que também era guardião: - Saí do gol!!!  O incauto atleta afoitou-se em encaixar a bola, mas o torpedo o jogou para trás, como um coice de uma mula. Alguém da arquibancada gritou, ao perceber que arqueiro não se levantava: - Morreu! Foi quando o Dr. Almir e o Dr. Camurça correram para socorrer o coitado. Foi direto para o hospital e para a mesa de cirurgia.
         O futebol proporciona tantos os bons momentos como àqueles instantes em que se arrisca a vida. Um poeta já disse uma vez que a morte é uma curva na estrada e isso costuma ocorrer, literalmente. A equipe de Futebol de Salão do Regina Pácis ganhara um jogo na cidade de Nova Russas, deram um show no placar de 5 a 3. De volta, o motorista Demontier que pilotava uma velha pick-up, demonstrava pressa de chegar e se esquecera da perigosa curva fechada que alguém avisara na ida. Em um átimo de segundo uma perversa tangente puxou o carro para fora da estrada, que tombou diversas vezes. Desnorteados, pelas pancadas recebidas, o Lacuxia e o Paulo Estefani conseguem sair do carro e arrastam os colegas que estavam machucados e sangrando para beira da pista. Do Luciano Ciferal, eles sabiam que estava vivo, o Fenelon se desesperava com o rosto cheio de fragmentos de vidro, mas o craque Nenen e o motorista Demontier não davam sinal de respiração. Saem a ermo, pela estrada poeirenta e só depois de correm uns 4 km conseguem socorro. O sete de setembro em Crateús, daquele ano, foi de uma total comoção pelas vítimas.
              Com insistência tenho ouvido de meus concidadãos que só tivemos futebol de qualidade na época em que os times do São Vicente e do Petróleo se intercalavam no pódio de campeão, promovendo belíssimas contendas, jogos históricas nos gramados do Jumelão.
             Para alegria dos torcedores do São Vicente do Zé Bezerra — a irrequieta Graça Nascimento, a jovial Silvia Régia e o impaciente Ticuá  querendo entrar em campo para jogar —  enquanto tinham o Lacuxia, eram sempre campeões. Mas o Petróleo do Marcelo, que era o time das elites e do dinheiro, arrastou a peso de ouro o João Lacuxia para os seus quadros. No primeiro confronto entre os rivais, o jogo empatado e no finalzinho da partida, marcam falta para o Petróleo... Os torcedores vicentinos, com o coração na mão imploram clemência, mas o torpedo não teve piedade, riscou o ar como um foguete e cumpriu sua missão, a de profissional, que João sempre soube ser, como cidadão integro.
            Naquelas saudosas e disputadas pelejas podíamos ver jogando os craques: Zé Maria, Nicolau, Eliezer, Gilberto, Chico Calunga, Almir, Marconi, Ary, Coscata, Pirrita, Henrique, Paiva, Zé Ivan... Era arte pura em futebol harmonioso regido por um grande maestro: o João Lacuxia, que recebeu muitos convites para jogar em outras equipes, como Guarani de Sobral, o Fortaleza, o Ceará e teve um convite para fazer um teste no time da vila Belmiro, o Santos de Pelé, mas resolveu ficar na sua terrinha natal, engrandecendo nosso esporte, como  um dedicado e eficiente professor!
            A seleção crateuense, num amistoso bem disputado, jogava com o Ceará Sporting Clube, o querido Vovô.  O Jogo também estava 1 x 1 e o Lacuxia, inexplicavelmente, sentado no banco. O técnico Zé Bezerra o convoca a entrar, atendendo ao pedido dos torcedores.  A zaga do Ceará atrasa uma bola displicentemente para o goleiro Lulinha que não conhecia a explosão do torpedo Lacuxia.  Ele se antecipa chutando a bola, a mão e a intenção de defesa do velho arqueiro, no lance que lembrou o espetáculo de um dos maiores artilheiros do passado: “E novamente ele chegou com inspiração, com muito amor, com emoção, com explosão e goool!” Foi tanta a emoção que seu Adalberto jogou a sua bengala dentro do campo!
            Hoje, Lacuxia ainda tem disposição de sobra, tem coragem para emprestar a muitos dos jovens que ele ensina e uma energia de fazer inveja quando o vemos passar correndo, se preparando para mais um grande jogo da sua vida.
           Um dia, um duende mágico do futebol crateuense chamado Manurim lhe deu de presente o primeiro par de chuteiras, e só se via o menino João treinando chutes, sozinho, no estádio Juvenal Melo. E se você precisar falar com o Lacuxia e não o encontrar na Rua Farias Brito, ou nos colégios ensinando futebol e cidadania aos jovens alunos, pode se dirigir ao Jumelão, que ele estará lá, todas as terças-feiras, com as velhas chuteiras mágicas, treinando  um potente torpedo!
Raimundo Cândido    

José Alberto de Souza disse...    
        Ah, mas que coisa fantástica, até parece que o espírito do saudoso Nelson Rodrigues andou baixando nesse notável cronista crateúsense!                                                         


Morbus, o grotesco


Alguma dúvida de que ele é um sujeito normal, ancorado firmemente em seu cotidiano monótono, abraçado à sua monótona mulher com a resignação de um Sísifo moderno? Alguma dúvida de que ele ri e bebe e fuma igual a todos os outros, que também lhe são iguais, e ama e faz sexo como se fosse ele um ser especial e superior, especialmente melhor do que seu próximo? Alguma dúvida de que ele sonha e faz planos, e os acumula todos na pasta do "amanhã", e sente-se feliz por não ser o mais infeliz de todos? E enche o peito a cada manhã e se magnífica com a vida! 

Ele paga suas contas. Ele ajuda velhinhas a atravessarem a rua. Ele mastiga de boca fechada. Ele em nada difere do que há de mais digno, puro e sincero em sua raça. Ele inclusive se vangloria de ser humilde. 

Principalmente, ele acha que gosto é um negócio muito particular. Cada um tem o seu. É uma coisa que não se pega, não se aprende, está a léguas de ser "um fenômeno social de primeira categoria", como dizia o centenário Gadamer. Então, esquecido de seu próprio argumento, ele esmera-se em esfregar seu gosto na vida dos outros, dizendo mesmo que o seu é melhor e superior. Talvez, quem sabe – pensa ele magnanimamente –, deixando o seu gosto à mostra, expondo-o aos quatro ventos, não influencie aos "sem gosto". Ele se acha tão bom! 

Daí, tome paredão! Haja reality show! Valha-me deus que é religião!... E todos absolutamente certos, é claro. Na verdade, ele não ver a hora de salvar o mundo e as pessoas do mundo dividindo com todos a sua sabedoria. 

Então, ele compra uma câmera fotográfica e arregala os olhos, doido por uma desgraçazinha básica, para postar na sua rede social. Depois, senta em frente ao monitor e espera ansioso e ofegante a admiração geral: oh! 

No escuro do seu quarto, quando chega o momento de contar os grãos bons e ruins de sua vida medíocre, ele calcula todos os dias quantos dias lhe restam no mundo, e secretamente torce para não ir sozinho, e sonha em ser o último a partir. Ou melhor, nunca partir. E, sem que ninguém se der conta disso, ele encara você toda manhã... no espelho. 

Ainda bem que tem futebol. 

Lourival Veras

Raimundo  Cândido disse...
Velho amigo Lourival, como o meu espelho caiu e  quebrou, vou me contentando com o futebol e algodão doce mas só quando me enfio numa carapuça que algum poeta astuto deixou nas entrelinha da vida...

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Caminhos do Sol


A exposição fotográfica Caminhos do Sol objetiva apresentar cenários, cenas e vivências no semiárido cearense, presentes, em específico, em alguns territórios da zona rural dos Sertões de Crateús, Ceará.

A referida exposição é parte integrante do projeto de mesmo nome, aprovado pela Funarte, órgão vinculado ao Ministério da Cultura do Governo Federal do Brasil, dentro do programa Bolsa de criação literária, 2010. Sendo objeto primordial da investida, a confecção de um livro de contos ambientados em parte do polígono das Secas.

O projeto surgiu do desejo de tentar compreender de maneira crítica o modo de viver, representações, signos e significados das ações e conflitos ligados ao cotidiano do sertanejo, em seu convívio e relações consigo mesmo, seus semelhantes e não semelhantes, bem como com a natureza e o meio ambiente. 

A exposição é do professor, escritor e fotógrafo Luciano Bonfim. As fotos postadas fazem parte das 30 que o público poderá apreciar durante a exposição.

Onde? Espaço Nordeste - Tamboril, Ceará
Quando? 11 de janeiro a 11 de março de 2013