quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Dona Iracema, a Cancionista do Sertão.

                                     

Mal despertada a noite das tempestades, na Revolução de 64, pelo medo dos rastros de fumaças subvertidos que se alastravam por toda América Latina, e o militarismo brasileiro dissolve os partidos políticos e impõe uma férrea censura prévia, fazendo com que as canções, de magoa e dor, fossem as únicas flores a brotar no solo desta aridez imposta. A crise impulsionou uma inventividade musical como nunca se viu antes: proferir sem dizer, protestar pelo grito abafado na garganta que feriria os ouvidos infames, como incisiva faca amolada. Do cantor-poeta Chico Buarque jorrou “Apesar de você” afrontando os brios autoritários de um tirano chamado Médici e do poeta-cantor Geraldo Vandré brotou “Pra não dizer que não falei das flores” o hino de resistência do movimento civil e estudantil contra a ditadura militar.
Em Cratheús, um pouco antes de se deflagrar “O último dia de lua cheia” como ficou conhecido o 30 de março de 1964, que deu inicio às trevas brasileiras, no ano de 1958, a poeira das ruas subia pelos redemoinhos dos dias secos, de mais uma grande estiagem que assolava o sertão. A cidade estava quente pelo clima e pela alma do sertanejo, que nunca se entregou, nunca perdeu o ânimo. A administração municipal, do prefeito Raimundo Resende, ficava a desejar, com um velho motor a óleo iluminando insuficientemente as ruas, sem o auxilio necessário para os agricultores que sofriam os efeitos da seca. E o partido da situação, UDN, se desgastava.
 Das situações difíceis sempre surge a criatividade dos bons artistas, dos poetas sensíveis aos momentos, como Chico Buarque, como Geraldo Vandré ou como Dona Iracema Martins, uma poetisa crateuense que, inspirada na corda do seu violão, criava repentes e grudentas vinhetas sobre os personagens folclóricos e políticos da região, para suas campanhas politicas. Sua casa era frequentada por pessoas que vinham encomendar jingles sobre candidatos das cidades vizinhas. A fama de cancionista já se espalhara, pela eficiência dos humorados versos, que causavam ímpetos rancorosos na oposição.
Um amigo, o Samuel Lins, fundador da Escola Técnica, afirmava:
- Oh, Iracema cabeçuda! Porque fazes essas cantigas, se só dão em confusão? Se tiver que fazer, faça, mas cobre, pelo menos!
No dia em que o Dr. Antônio Catunda retornou, jovem recém-formado, as moças casamenteiras da sociedade ficaram em alvoroço e na expectativa. Um médico nos cafundós do sertão, solteiro, metido a bonitão e todo pintoso...  A festa seria no Crateús Clube e as colegas avisaram para dançarina Iracema, que já estava de vestido novo: - Oh, Iracema, não te metes no meio não! O diabo atentou (São palavras de Dona Iracema!) e a primeira que ele tirou para dançar foi a poetisa. As outras ficaram só roendo! Mas o escolhido de seu coração foi o Antônio Coriolano, com quem teve 13 filhos.  
Iracema sempre foi uma jovem vivaz, de espirito aceso, que contagiava os ânimos daqueles que a rodeavam. E aos 96 anos não perdeu esta nobre característica.
A campanha politica do ano de 1958 foi um fogo aceso, com sopros em brasas de lado a lado.  A UDN, mesmo desgastada, mas com a máquina administrativa a seu favor, apresentou o Dr. Gonçalo Claudino Sales como candidato oficial. A coligação PSD, PTB, PSP candidatou, novamente, o Sr. Raimundo Bezerra de Melo, o Patriota de respeito. O Prof. Luiz Bezerra assim escreveu sobre essa disputa: “Foi uma campanha violenta de parte a parte e a opinião pública se dividiu. O povo sentia a força da coligação galvanizada por José Bezerra de Melo, que incontestavelmente foi a alma da vitória dos coligados.”
Dona Iracema havia feito algumas vinhetas, que eram cantadas pela irmã do Zé Bezerra, a Maroquinha Mano, nos palanques e repetida pelo povão, que puxa cordão: “O Encarnado correu com medo / Da grande festa que vai haver / Agora viva o Partido Azul / E o Encarnado é que vai roer!”
O povo lotava a grande quadra do Barrocão para ouvir o discurso do candidato a prefeito, mas principalmente a oratória inflamada de Zé Bezerra que tinha o dom mágico da palavra fácil. Ali perto, pela Rua Poti, o Dr. João Afonso já dera ordens para soltar um touro bravo e que fosse tangido para o meio do povo. Enfezado, o animal correu e abrindo caminho entre os eleitores, dispensando todos para suas casas. Só ficou uns corajosos afoitos para descobrirem de quem era o Touro raivoso que acabara com o comício.
  Dona Iracema não se deu por rogada. No outro dia uma vinheta já estava na boca dos eleitores, sendo cantada em cada esquina da cidade: “Façam outra passeata, meu povo / Samuel tornou a voltar/ Mas se soltarem o touro de novo / Sei que nós vamos matar!”
No novo comício, na mesma Praça do Barrocão que estava mais lotada que antes, só se via o povo olhando para os cantos, esperando o touro meter os chifres na esquina, para abatê-lo à bala, como abateriam o candidato da velha e viciada UDN, mas no voto.
Os políticos e cabos eleitorais da UDN, sentindo o braço da derrota, lhe aberturando o pescoço, tentaram viciar as urnas depositadas na sede dos Correios e Telégrafos. O 4º Batalhão de Engenharia garantiu a fiel e legal apuração. Mesmo se detectando uma das urnas totalmente viciada, a comissão apuradora deu o resultado, estava eleito o Sr. Raimundo Bezerra de Melo, o Patriota de Respeito.
No dia 25 de março de 1959 toma posse o novo gestor da administração municipal. O Prof. Luiz Bezerra, narra novamente: “Foi uma coisa triste a entrega dos despojos da prefeitura. Era como se ali houvesse passado um tufão sujando, quebrando e carregando tudo. Não houve prestação de contas, não existiam arquivos, não apareceram os livros contábeis. Os Udenistas haviam sumido.”
  No dia seguinte o bancário Edson Martins, que era também um afamado locutor, iria ler a crônica do escritor Luiz Bezerra, nos potentes altos falantes da Rádio Educadora. O professor lhe dissera que a crônica daquele dia seria assombrosa e o povo poderia entrar em alvoroço, pois falaria sobre o satanás que esteve, recentemente, visitando a cidade de Cratheús! Edson não se conteve, foi buscar pessoalmente a crônica na Tipografia Central, uma das empresas do professor.
              Vai logo cumprimentando o tipógrafo e lhe pergunta: - Oh Nene Coriolano, o seu patrão, Prego dourado, está?
               - O Professor está sim. Entre aí no escritório dele!
O locutor entra cantarolando uma animada marchinha: “Soluçando vou deixar minha prefeitura / Adeus amigos para nunca mais ver / Adeus minha mamatinha / Sou obrigado a ti entregar ao PSD / Adeus, adeus minha prefeitura / Isto é sina de um ordinário prefeito / Adeus, adeus minha mamatinha / Adeus amigo para nunca mais eu ver / O amigo que encontrar minha caveira / peço que leve e entregue a outro alguém / Diga a ele que eu morri foi de desgosto / envergonhado porque nunca paguei a ninguém...”
Luiz Bezerra cai na gargalhada e pergunta de quem é aquela preciosidade.
Edson responde: - Ora, professor, de quem poderia ser? Só pode ser de Dona Iracema Martins, a mãe de seu funcionário Manoel Nene Coriolano! Não é ela quem sempre faz as marchinhas politicas de nossa querida Cratheús!
- A veia poética de Dona Iracema não deixa passar nada! Conclui o professor.
Findou-se o ano de 1959 e as noites horrorosas das tempestades se foram, para alívio nas nossas esperanças, mas sinto a falta de uma canção que profira o meu grito, ainda abafado na garganta, e que faça com uma musical faca amolada ferindo os ouvidos dos incautos de agora.  Acho que eu vou à casa de Dona Iracema ver o que ela tem a me dizer. Vambora?   
 

Raimundo Cândido

domingo, 24 de agosto de 2014

Resignação



O dia,
luz leviana gotejando
dos beirais da longa demora,
tal penitente resignação,
anuvia o viver.

A noite,
fingida nodoa,
desdouro de ausências
e esperança ressuscitada,
apazigua o morrer.

Raimundo Cândido