quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Dideus, o Poeta Andarilho.


                                             
Existe um tipo de humanidade que nunca se basta. Vive continuamente insatisfeita consigo mesma, com o mundo e, por descontente, na incompletude em si, alimenta uma infinda busca. Enigmático, misterioso, incompreensível: eis o poeta! Por isso só devia proferir uma opinião sobre ele, outro ser de mesmo naipe. O ipueirense Gerardo Mello Mourão, apropriadamente adotado como crateuense, a priori, já profetizando ser Patrono da Cadeira 22 da Academia de Letras de Crateús, assim definiu seu afilhado: ”... risca, riscaste, riscará roteiros de pássaros no ar... Os tempos ouvem, ouviram, ouvirão os passos de pedras que pisam, pisaram , pisarão rosas, lírios e jasmins ... Piloto de naufrágios, governador dos tempos, tetrarca dos milênios, tabelião das eras, só os dias e as noites te conhecem, sabem o teu nome e nenhum outro nome.” Sem ser da mesma categoria dos eleitos, ouso enunciar este nome: Antônio Dideus Pereira Sales, o Poeta Andarilho.
As teorias literárias são cientes : quem melhor capta a poesia do ar, das paisagens, das cores e dos sons são as crianças. Pouquíssimos meninos têm a felicidade de crescer sem perder o dom de ver, sentir e vibrar com as emoções da vida, para depois desenhá-las com os pinceis das palavras.
Dideus preservou esse privilégio, desde que andava com uma baladeira dependurada no pescoço pelas matas secas da Várzea do Canto, no município de Independência, atirando em desprevenidos passarinhos, correndo em cima de um cavalinho de pau, com os bolsos cheios de bilas, para mais tarde brincar com outros molecotes no Distrito de Tranqueiras.
O Senhor José Pereira, ao resolver morar na cidade de Crateús, traz umas vaquinhas para ajudar no sustento da numerosa família. E o menino-poeta teve que aprender as rijezas do labor bem antes de maturar os artifícios poéticos do louvor. Com uma cesta na cabeça sai, ainda de madrugada, vendendo pães pelas ruas da cidade, e quando não é com um isopor oferecendo picolés para aliviar o calor dos transeuntes no burburinho do centro comercial. Já estava bem adiantado no colégio quando, com uma caderneta na mão, angariava uns trocadinhos com o jogo do bicho e dando palpite para o viciado cidadão, que arriscasse na dezena do carneiro, pois o mesmo havia tido um sonho, brigara com o vizinho resmungão.
  Quando fazia o curso de contabilidade, na Escola de Comércio, o irreverente professor Dedé Loiola lança um desafio. Escreve um probleminha de matemática no quadro e propõe: Quem resolver esta complicada questão, ganha um dez na próxima prova, mas se errar tem um zero, bem redondinho, no boletim. Dideus olha para um assustado colega e diz: - Eu vou arriscar um olho! E responde. Acerta na bucha, garantindo o dez na ciência dos números, mesmo tendo o pendor acentuado para fino artífice das palavras, e por isso graduou-se em Letras pela Faculdade do Vale do Jaguaribe.
O oficio de poeta foi estimulado pelo cunhado, poeta Hernandes Pereira, que o leva para ser apresentador de um programa sertanejo “Quando as Violas se encontram”, na Radio Educadora, e o Embaixador do Sertão balançava um chocalho estridente para começar o programa. Da recitação dos belos poemas, das cantorias de viola nordestinas e da contação dos causos engraçados tornou-se um fino mestre na arte lírica do sertão.
 Geraldo Mello Mourão já o profetizara, então teve que riscar os roteiros de pássaros como ave de arribação, levando a sequidão nordestina para conhecimento do mundo, pela única maneira que sabia explicar as coisas, a poesia, e do velho patuá de menino escapam os gritos de alerta: “ No Sertão ressequido sem pastagem / não se ouve o trinar de um passarinho...”
O tempo, que tudo ouve, tudo revela e tudo realiza, confirma o filho de dona Cordeira, o vendedor de picolé, a se transformar no radialista, no folclorista, no produtor cultural e no poeta telúrico que assim cantou o chão onde está enfincada a sua raiz, um hino de amor à Crateús: “Eu conheço o teu intimo, tua senda, / teus detalhes, teu chão, tua poeira, / o silêncio, o reclamo e cada lenda, / despejada no colo da ribeira...”
A Academia de Letras de Crateús tem a honra de guardar um tesouro em imagens, uma copia de um vídeo em que o Dideus Sales trás o poeta de Assaré para receber o título de cidadão crateuense, como parte da programão dos inúmeros Festivais de Violeiros que promoveu na cidade. É emocionante ver o velho Patativa sendo levado pela mão do poeta andarilho, como um filho conduz a um pai.
Honrarias não lhe faltaram nesta vida corrida, a prateleira da memória já está repleta, fora as que estão reservadas na morada do deus Pan: cidadão crateuense, tauaense, aracatiense. Magnífico Trovador e Comendador da Cultura popular pela Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel – em Salvador, Troféu Centenário, outorgado pelo programa Gonzagão da Rádio Cidade, do radialista Pedro Sampaio, Comenda pelo Dia Literatura Cearense pela Assembleia Legislativa do estado do Ceará. É membro da União Brasileira de Escritores (SP), Casa do Poeta Lampião de Gás (SP), União Brasileira de Trovadores (RJ), Academia de letras de Crateús, Academia Camocinense de Letras, Academia Tauaense de Letras, Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza e por ai vai...       
E hoje, nem só os dias, e as noites, sabem o teu nome. O Brasil inteiro sabe e se alegra ao ler os versos sublimes e espontâneos que representam, legitimamente, a nossa cultura popular. Se membro da arcádia máxima da literatura do sertão, a Academia Brasileira de Literatura de Cordel, não é para qualquer mortal não, mas ele não se vangloria disso: “... escultor de versos simples / sem pedantismo e laurel / para afugentar martírios / os meus poemas são lírios / orvalhados no vergel”.
Contemplei, com esses olhos de apreciar poetas, a uma espetacular aula sobre versos e rimas, ministrada por Dideus aos alunos de um colégio crateuense, no apertado salão da Academia de letras de Crateús. E com certeza o poeta Geraldo Mello Mourão viu, como eu vi, a poesia resplandecer no ar e despertar poetinhas adormecidos.
Ouvi, com minha audição de atentar harmonias, os mais belos versos do poeta Dideus musicado pelo duende Genildo Costa, entoado no templo sagrado da AlC: “ A Canção da Liberdade eu aprendi com os passarinhos e a estrada dos sonhos tem muitas pedras e espinhos...” E Vi, de relance, no umbral da porta uma avezinha sorrindo em confirmação. Achei aquele pequeno pássaro, bem parecido com o poeta Geraldo Mello Mourão!  


Raimundo Cândido




A CARTA

Há décadas que o velhinho senta a cadeira na calçada e pacientemente espera o carteiro.

Do livro de micro contos O colecionador de dedos

Silas Falcão


segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Beija-flor



                                                                                                       De súbito...
                                                                                                  Memorável
                                                                                   encanto, admirável,
                                                                                   em plumas e asas,
                                                                         nas fráguas invisíveis
                                                                         de afeição multicor!
                                                                           A sugar o fulgor,
                                                                      o néctar e o amor
                                                                  das pétalas doces,
                                                                      até das lábias
                                                                 de galho seco,
                                                                  já sem flor.
                                              Esquiva-se, repentino,
                                          como raio de luz no ar!
                                                     Ser insaciável
                                            a buscar afeições,
                                         onde possa achar:
                                no incomum espanto
                            de meus olhos duros
                                     e no silêncio 
                  invulgar do esplendor!


                                                     Raimundo Cândido