segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Cine Poti


 

Na década de 60, quando o cronista e professor Luiz Bezerra, num de seus passeios vespertinos pelos arredores de Cratheús, deu, ingenuamente, carona ao capeta, o dissimulado satã pediu-lhe para que arranjasse um emprego como fiscal do Mercado Público da cidade, pois estava a fim de mudar de vida e que fizesse o favor de levar um recado para o Dedé do Cinema: - Diga a ele que a sala 195, no inferno, é mais fresca que o cinema dele.  Ele não estranhará muito, quando estiver hospedado no meu hotel!   
O Cine Poti, do Dedé do Cinema na Rua Dom Pedro II, foi um marco e por muito tempo proporcionou lazer na cidade.  Embora as fitas, na sua maioria, fossem recheadas de pólvoras dos violentos faroestes, das estripulias de kung Fu ou do mais (im)puro e picante sexo explicito, aqui e acolá exibia um choroso melodrama como “Dio, come ti amo”, em preto e branco e um sucesso estrondoso de bilheteria. Assisti, logo na estreia, acompanhado da Eva Neide, no final do salão e em pé, pois a fila de entrada dobrava quarteirão e ficamos sem cadeira para sentar. Quando Gigliola Cinquetti cantou: Deus como te amo / Não é possível / Ter entre os braço / Tanta felicidade..”  olhei, de soslaio, para minha querida namorada e  vi lágrimas escorrendo no seu rosto! O calor naquele salão era insuportavelmente agoniante, e acho que o capeta tinha razão em separar uma sala no inferno  só para o Dedé!
Na “Belle Époque” do Cine Poti foi quando assisti aos filmes do Tarzan, com a Jane e a macaca chita sempre ao lado, gritando como se tivesse uma caixa de ressonância no peito: - Oooooooohhh Oooooh Ooh! E há quem diga que foi o único triângulo amoroso do cinema que deu certo!
Quando o cinema era a principal diversão do crateuense, o Cine Poti vivia de casa cheia, todas as noites. Em 1974 o Dedé alugou um Kong Fu de sucesso, Shaolim vence Dragão, em dois rolos de filme de 16 mm. Foi quando o inverno isolou a cidade do resto do mundo, cortou todas as estradas. Depois de uma semana de pancadaria, de socos, de golpes, chutes e rasteiras entre os dois lutadores a bilheteria caiu e sem a possibilidade de pedir um filme novo. Dedé teve, então, uma feliz ideia, inverteu os rolos, colocou o segundo no lugar do primeiro e mudou o título do filme: “Dragão vence Saolim”. Foi outro grande sucesso, mas teve gente que saiu do cinema comentando: - Hai vai, eles fizeram um filme parecido que aquele que nós já assistimos!
Infelizmente o cine Poti fechou. Fatores diversos provocaram o seu fim, bilheterias fracas, exigências descabidas dos empresários que alugavam as fitas. Não havia lucro que suportasse as despesas! Foram mais de dez anos de portas cerradas.  As cadeiras empoeiradas foram as únicas espectadoras de um filme de abandono e solidão!
Mas, em toda cidade há um grande empreendedor com uma visão de oportunidade aguçada e, em Cratheús, esse honrado cidadão chama-se Osvaldo Melo, que além de empreendedor é um cinéfilo apaixonado e resolveu dar vida ao Cine Poti. Adquire o direito de usar o velho prédio com toda “infraestrutura”. 
O projetor de 35 mm com geração de luz a bastão de carvão, grafite coberto com cobre, manipulado pelo carequinha Zé Antônio que aproximava a barra positiva da negativa, gerando um potente arco voltaico, incidindo uma luz fortíssima num espelho côncavo refletida para a película, dando a impressão que uma leve fumacinha levava a imagem para o telão.
Foram diversos títulos de sucesso no novo Cine Poti: Dio, come ti amo, Lua de Cristal com a Xuxa, O Dia Seguinte, mas o povo continuava gostando era de Faroeste, kong Fu e sexo explicito.
Houve espectador que chamou mais atenção que os atores na tela, como o Louro da Ilha, ninguém sentava perto dele com medo de suas reações ao imitar os golpes dos lutadores, grita alto “Uuuuiiaá! Hiiiihá!” em cada acrobacia, pulo ou voo dos lutadores. Num determinado filme um chinês, de um salto só, atingiu o topo da árvore e o Louro se levantou da cadeira e gritau: Huuuura!!! Oh fela da gaita escrrroto!
O Seu Artagnan gostava era dos Faroestes, sentia-se um Bat Marteson com pistola no coldre, carabina winchester pendendo no ombro e, na volta para casa, cantarolava “No velho oeste ele nasceu e entre bravos se criou e uma lenda se tornou: Bat Marteson! Bat Marteson!
Mas, sem dúvida alguma, quem marcou época nas duras cadeiras da sala quente do Cine Poti foi Seu Doura.  Só assistia sexo explicito e do puro.  Era ele quem sugeria os títulos dos filmes que queria assistir: Moças com creme 1, 2 e 3, A mulher e o cavalo e os filmes com as atrizes Vera Fischer e Nicole Puzzi. Quando a fita tinha uma história comprida, uns falatórios sem fim, sem ir logo para os finalmente, Seu Doura ficava impaciente na cadeira e resolvia reclamar do dono do cinema, batia com o cabo do guarda-chuva na escadinha de ferro e gritava alto, chamando Osvaldinho pelo apelido: - Oh, Somalinha!!! Isso é filme para baitola!
Seu Doura gostava de sentar na sétima cadeira da sétima fila e chegava bem cedo para pegá-la desocupada. Algumas vezes encontrava um gaiatinho sentado na sua cadeira e pedia para que saísse, mas se fosse o Lulu Melo a briga estava feita: - Saio daqui não, ora, ora! Tá pensando que aqui é um trem, que tem bilhete marcado? Naquele dia as cenas de pornô não satisfaziam a libido cinematográfica de Seu Doura. Na exibição de Moças com creme 3, Seu Doura se antecipou, foi bater na Loja Só Malha de Osvaldinho e exigiu: - Hoje quem vai abrir o cinema sou eu, quero ver se aquele cachorro se senta na minha cadeira. Lulu fica sabendo e vai antes ocupar a cadeira sete do Cine Poti. Seu Doura entra contente no cinema, pensando nas moças com creme e enxerga um vulto na sua cadeira predileta. O sangue sobe-lhe nas veias e arremessa o guarda-chuva no rumo do elemento que sempre perturbava a libido sexualmente cinematográfica de Seu Doura, que foi embora e nunca mais voltou.
Um dia encontrei um “estranho amigo” no Portão da Feira que me pediu para levar um recado para o Osvaldinho.  Fui logo cumprir a encardida missão.
Encontrei o Somalinha na sala de cinema particular da casa dele, ar condicionado, 52 cadeiras acolchoadas, projetor moderno como um belo título na entrada: Sala Charles Chapim. – Bom dia, mestre Osvaldo, que estás a pensar, tão solitário nesta sala?
- Bom dia, Professor. Estava rebobinando na memória os protestos de Seu Dora: -Somalinha, isso é filme pra baitola!
Depois de muitas gaitadas entreguei o árduo recado que estava incumbido de dar: - Você sabe, né Osvaldinho, quem só leva o recado não merece malho, mas o capeta mandou-lhe um convite  e disse que é sem direito a recusa, você fará companhia ao Dedé do Cinema na Sala 195 do hotel dele.
Tenho a impressão de que os dois empresários crateuense da sétima arte vão ter muito que relembrar, quando estiverem por lá!
Raimundo Cândido