O repique
de nove pancadas no sino do SS Sacramento: Dlão! Dlão! Dlão! Dlão! Dlão...
anunciava a hora do Angelus, quando um mensageiro trouxe a notícia do despontar
de Jesus Cristo, nosso Salvador. Pelas esquinas da cidade, uns temerosos
católicos faziam o pelo
sinal da Santa Cruz: Livrai-nos, Deus, nosso
Senhor, dos nossos inimigos. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Amém... Mas, nas duas torres da Matriz
com a tinta branca empalidecidamente enodoada, as vigorosas badaladas perturbavam um
bando de morcegos, que fugiam em louca revoada. O poeta, cronista e professor
Luiz Bezerra, aproveitava, mais um episódio citadino, para confirmar o humor
perspicaz: - Eles saem assim, feitos uns alucinados, porque não foram
batizados!
Os portãozinhos da longa mureta,
que davam acesso ao pátio da Matriz, já estavam abertos naquele crepúsculo
vespertino dominical de 1952, e o povo ia chegando para a retreta no belo
coreto circular que ficava no alto calçadão da Matriz. Até já se falava, devido
à polêmica campanha do rebaixamento das calçadas, em diminuir aqueles cinco
degraus dificultosos, mas o Padre Bonfim sonhava em, além de retirar a mureta erguida
pelo Pe. Juvêncio, construir as alas laterais da nave da catedral.
O Talentoso músico, Mestre Chico
sempre foi pontual. A banda começava,
exatamente, às 7 da noite, tocando o dobrado “Jaçanã na lagoa”, seguido de um
belíssimo roteiro musical que deleitava ouvintes de bom gosto, até na maneira
de vestir. Enterneciam-se quando a voz do cantor se diluía em Índia ”... seus cabelos nos ombros
caídos, negros como a noite que não tem luar...”. Precisamente às nove horas,
antes que apagassem as luzes dos postes, o sopro da flauta anunciava A Baratinha: “Chega,
chega, minha gente, que o choro vai começá, repara como é gostoso, este samba
de matá. A Baratinha, a Baratinha, a
Baratinha, bateu asas e voou.” Uma jovem Senhora de pele trigueira, olhos
vivos, mente ativa, e puro espírito de alegria, que todos conheciam por
Madrinha Francisca, rodopiava sem a mínima timidez por entre aquela gente requintada,
dirigindo-se para a saída do pátio. Convidava a todos para que, amanhã de
manhã, segunda-feira, não perdessem o 7 de Setembro, pois o Instituto Santa
Inês, mais uma vez ia desfilar.
Era
um espetáculo ímpar. Uma emoção que aflorava com a beleza dos colégios
desfilando em cores cívicas para equilibrar uma verde exibição das forças
varonis no entorpecido sentimento nacional. O povo ia se perfilando na linha do
meio fio da Rua Firmino Rosa, delimitada por uma grossa corda colocada pelo 4º
BEC. Alguns pais instalavam o filho menor no cocuruto para que este pudesse
“enxergar” uma pátria dentro do Brasil.
O
Instituto Santa Inês sempre foi o melhor a desfilar. E agora estava a capricho,
com as balizas ostentando elegantes vestidos brancos e mãos calçadas em luvas,
anunciando os motivos de cada bloco que passava: o cobiçado ouro de nossas
riquezas, os emplumados índios, a colorida fauna, a verde flora. As meninas
marchavam com jardineiras azuis, os meninos em calças caqui e engomadas
túnicas, os mais pequeninos simbolizavam o futuro da nação, metidos nas alvas
batas de médicos, nas togas de advogados ou nos capacetes de engenheiros. Ao
som dos tambores da banda, uma propriedade do colégio, iam marchando e
encantando o público para júbilo dos pais que acenavam orgulhosos para os seus
rebentos. A cavalaria trotava com os filhos dos fazendeiros, chamando atenção
para encerramento do show do Instituto.
Houve
um tempo, dizem os mais velhos, em que no planeta Terra reinava uma intolerável
melancolia e os duendes, por compaixão da raça humana, inventaram a alegria.
Saíram pelo mundo a ensinar a boa nova, como professores da arte do
contentamento e da emoção. Em Crateús, a fada chamava-se Francisca de Araujo
Rosa, que magicamente infundia, em seus alunos, um estado de extraordinária
satisfação e alegria.
Para
o Instituto Santa Inês, o ano fora de muitas atividades sociais, culturais e
cívicas, mostrando o empenho e a determinação da diretora em moldar seus
filhos, como fazia questão de chamar os alunos, em cidadãos prontos para
enfrentar o mundo com trato social, instrução e sabedoria.
Enquanto
se dirigia à casa do Prof. Luiz Bezerra, onde reside como hospede de honra,
relembra os momentos do carnaval realizado no mês de fevereiro, para seus queridos
alunos e das noitadas divertidas no salão do Crateús Clube. E vai cantarolando
baixinho: Oh! Jardineira porque estás tão triste? Mas o que foi que te aconteceu?
No mesmo instante em que lhe vem à mente o 24 de Junho,
dia de São João. Ela brinca mentalmente até com o santo: “Oh, cabra festeiro, esse joão!” Naquele dia,
fora madrinha de fogueira de tantos amigos que até perdera a conta. Só a
meninada no batismo na igreja superava em quantidade, para amadrinhar. Mas gostava
mesmo era de “passar fogo” nas noites estreladas do sertão, banhada pela luz da
Lua, ouvindo o pipocar de fogos. As brasas inda fumegando em vermelhidão e os
dois, madrinha e afilhado, caminhando em semicírculo até encontrarem-se para
então darem-se as mãos. Ela proferia: ” São João
dormiu, São Pedro acordou, vou ser sua madrinha que São João mandou”. O afilhado, imediatamente, repetia: “São João dormiu, São
Pedro acordou, vou ser seu afilhado que São João mandou”. Repetiam o
ritual três vezes, circundando as brasas vivas da fogueira. No final, o afilhado orgulhosamente
solicitava: - Beça, Madrinha Francisca! Deus te abençoe, meu afilhado! Eram
momentos de poesia e para toda vida!
Como a
trágica filósofa-matemática Hipártia,
Madrinhha Francisca andava um passo à frente de sua época. Usava as
artes diversas, a ciência, a natureza, a dança, o teatro, os jogos e
principalmente a música para o desenvolvimento sócio-efetivo das crianças,
tornado-as mais alegres e receptivas no processo de aprendizagem, criando uma
nova dimensão na vida dos seus privilegiados alunos, coisa que só aconteceu nas
antigas sociedades gregas. Criou a Orquestra Morais Rolim, integrada por
talentosos discípulos, em homenagem ao amigo comerciante. Sempre que a
professora retornava de suas constantes viagens, a orquestra ia esperá-la no
patamar da estação, e com o próprio Morais a comandar a orquestração inicial:
“Tum, Tum, Tum...tumtumtum... É Morais Rolim! Tum, Tum ,Tum...tumtumtum... É
Morais Rolim!”
De
longe, avista o Prof. Luiz Bezerra no portão da casa, como se já aguardasse
pela chegada dela e logo imagina “Isto foi bem coisa da Airan, que ordenou que
ele fizesse as pazes comigo!” Reclamara de uma pequena sova que o menino
Hermínio, seu afilhado, levara do pai e a reação do professor foi brusca: - Se
você está achando ruim que eu eduque meu filho,assim, está ali a porta da rua!
Mal se
aproximara da casa, o professor vai logo falando: - Chica, vamos acabar com
isso! Deixe de se antipática! Os dois titãs da educação fizeram as pazes, mas a
comemoração foi um longo abraço na sua grande amiga Airan Veras, esposa do Prof.
Luiz Bezerra.
Outra
curiosa amiga, um dia lhe perguntou: - Madrinha Francisca, a senhora gosta tanto
de festas, mas porque não casou? Ela pacientemente explicou: - Vou lhe dizer uma
coisa minha companheira, o Padrinho Totonho Rosa, que me criou, não queria que
eu dançasse, que eu me divertisse e não permitia que eu pegasse na mão de nenhum
homem, imagine namorar.Um dia, ele quis me casar, à força, com um motorista
dele, fiquei detestando casamento. Eu moro só porque é o jeito, mas nunca me
acostumei. Também... Ninguém aguentaria minha pisada, é para cima e para baixo,
neste mundo de meu Deus! Aprendi a dançar sozinha, gosto de festas porque eu sou
é Araújo!.
A
querida professora nos dá a impressão de ser a própria estrofe de um belo poema
da Cecília: “Adestrei-me com o vento e minha festa é a tempestade!”
E se hoje,
você andar pela Rua do Instituto Santa Inês, antiga Érico Mota e,
inesperadamente, ouvir um grito de “Anarriê, anavan tur... Olha o balancê!!!” com certeza é a digníssima e
saudosa professora Madrinha Francisca que adorava um exuberante viver, como uma
abelha venera o néctar das flores para elaborar o mais doce mel!