Estamos em pleno mar.... A lua, uma doirada borboleta, admira-se do
brigue veloz que cruza as vagas do oceano e, em palidez atônita, indaga: - Por que debandas, infame barco ligeiro? Por
que foges do pávido poeta? Assim, o
vate Castro Alves, inspirado albatroz de incisivos versos, nos denuncia os
horrores da escravidão! A força do vento assopra na proa e estufa as velas
coladas nos mastros do navio impuro rumando às praias do Novo Mundo,
levando em seu bojo uma abominável aberração. A musa, que revela o pavor
arrepiante nos porões dos mares ilícitos, em desesperada aflição, lamenta e
chora... Só se ouve o tinir de ferros... O estalar de açoites, ecoando dos Tumbeiros.
Oh, padecimento atroz! Os vivos, os moribundos e os mortos amontoados em
uma única massa. A varíola, contagiosa bexiga, corrói as peles negras dos
acorrentados e alguns já completamente cegos, esqueletos vivos, não suportam o
peso de seus míseros corpos. Mães com crianças dependuradas em seus peitos, incapazes
de lhes oferecer uma única gota de alimento. No compartimento inferior, o mau
cheiro é insuportável. Parece inacreditável que seres humanos possam respirar
tal atmosfera e viver! Sobre o convés, de um minúsculo porão, 400 negros
convivem com a fome, a sede, a imundície, a peste e, lentamente, morrem. Alguns
já descansam, os corpos quietos, hirtos!
Em terra, a história da brutalidade humana continua. Aos que escapam da
infernal viagem, os nobres senhores, proprietários dos corpos aniquilados e
daquelas almas quase apagadas, lhes ofertarão novos martírios, em nome do
progresso de uma nação colonial chamada Brasil.
A Vila Imperial, um povoado piauiense, gerado da Fazenda Piranhas,
encravada nas margens do Rio Poti, antiga propriedade da baiana Luiza da Rocha Paços, prospera com uma modorrenta vidinha agropastoril e, mesmo assim,
necessitam da mão de obra escrava.
Os sesmeiros transformam o capim mimoso, que abunda no sertões de
Crateús, em ambicioso lucro pela engorda de gado, que multiplica-se pelos
inúmeros currais nas ribeiras
do Poti. Nas fazendas dispersas é comum a posse de meia dúzia de escravos, para
a labuta diária. Bem antes dos bafejos libertadores da Lei Áurea, um mapa
estatístico da Província do Piauí, de 1854, preceitua a população da afamada
Vila crateuense que tinha então: 9707 homens livres para 1020 escravos e dois
enigmáticos estrangeiros.
A localidade de Poti, que um dia chegou a ser trocada por uma quarta de
fumo, pertenceu a Joana Mereré. Ela recebeu, de herança, as extensas terras e
os inúmeros escravos da Coroa Portuguesa. Um dos descendentes de Joana, patrão
da escrava Felícia, mandava castigar os servos de diversas formas. Por
queimaduras propositalmente localizadas ou com chicotadas nas costas e nas
nádegas até rasgar a carne e nas feridas, aplicava-se um coquetel de sal,
pimenta e urina, que inflamava, doía, mas a agudeza do sofrimento era mais
intensa na alma do que no dorido corpo.
Todos os dias Felícia levava o
gado da fazenda Quirino para as soltas verdejantes do povoado de Poti, nas
margens do rio, onde os bovinos ruminavam o viscoso capim mimoso. Uma infecção,
uma tristeza, uma doença no casco de uma rés era um motivo sério de
punição. Enquanto ela pastoreava,
sentada embaixo de uma imensa imburana, riscava a areia com um graveto, como
uma oração, a pedir a Deus que amenizasse seu sofrimento, que realizasse o
desejo de ser enterrada ali, na quietude assombreada da esgalhada árvore da
caatinga brejeira. Felícia, sangue e alma dos negros africanos, seres humanos
que padeceram no estalar dos chicotes nos porões dos tumbeiros sobre o mar,
continua a receber o mesmo merecimento injusto em terras crateuense. Certo dia,
devido aos inúmeros maus tratos, adoeceu. E o sádico dono não cuidou da
enferma, que logo morreu.
Naquela época as pessoas enterravam seus mortos na Vila, hoje cidade de
Crateús. O cortejo fúnebre caminha pesaroso, mas resolve parar para descansar
debaixo do velho imbuzeiro em que Felícia pastoreava o gado. Colocam o varal,
com a rede e o corpo da escrava, no chão. Recuperada as forças, resolvem seguir
viagem, pois ainda tinham que atravessar um rio, que estava em alta cheia.
Surpresos, percebem que a rede ficara pesada demais e não podia ser
transportada. Um dos escravos volta, para avisar da inusitada situação. O
patrão manda uma junta de bois para continuar o restante do percurso. As cordas
se partem, a rede não saí do chão. O fazendeiro, com raiva, dá ordem para que a
escrava fosse enterrada ali mesmo, embaixo da sombra do imbuzeiro.
Inexplicavelmente, para surpresa de todos, o peso do féretro volta ao normal. A
história correu de boca em boca, por grande extensão. Os sertanejos passaram a
invocá-la em suas necessidades e eram prontamente atendidos.
A sepultura de Felícia passou a atrair as pessoas das mais longínquas
regiões. Famílias passaram a enterrar as crianças que morriam e o local, aos
pouco, foi se transformando num cemitério. Só a família do rico fazendeiro
desfazia da crença do povo, pois não acreditava nos milagres de Felícia. O
local vivia cheio de símbolos de curas, de rosas, de ex-votos. Já era um Sitio
de Peregrinação!
Como os milagres de Anastácia, a bela escrava de olhos azuis sentenciada
a usar máscara de ferro, por inveja das mulheres dos Senhores feudais, e mesmo
assim conservou a altivez e a dignidade no rosto, no distrito de Poti, a Santa
Felícia também manifesta maravilhas inexplicáveis.
Um dia, a família do menino José
Alves de Paula – predestinado advogado, futuro Gerente de Recursos Humanos da
Vale do Rio Doce e um dos mediadores na criação do MERCOSUL, no acordo de
Assunção entre a Argentina, Paraguai, Uruguai e Brasil – caminha da Fazenda
Morro Alegre, propriedade do Pe. Juvêncio, para o lugarejo de Poti, passando
pelo Cemitério de Felícia, quando sua irmã, Raimunda, ver um boné muito novo e
vistoso que havia sido deixado por alguém em pagamento de uma promessa de
enfermidade contagiosa. Pegou o boné e colocou na cabeça de José. Outra irmã,
bem mais velha, percebe a violação da coisa sagrada e devolve o ex-voto ao
lugar de origem, mas o contato foi o suficiente para contaminar com coceiras e
feridas a cabeça do menino, que só foi curado com muita infusões de Jaramataia
e emplastros de Mastruço.
Quem também peregrinou pelo
Cemitério de Felícia foi a família de Norberto Ferreira, Seu Ferreirinha. Sua
esposa, Dona Lurdes, na iminência de ver o filho preso pela famigerada Ditadura
Militar chilena, se vale de Felícia. A fuga das cruéis garras afiadas de
Augusto Pinochet foi uma ação cinematográfica, engenhosa artimanha preparada
num quarto de hotel. Quando João de Paula volta, são e salvo da Alemanha, a
família inteira vai ao Cemitério de Felícia pagar a promessa.
O Campo Santo de Felícia fica no
meio da caatinga aberta, cercado por um alvo muro de alvenaria de onde se ver o
eito de um roçado, no qual um heroico sertanejo, que muito crer e muito espera,
semeou um campo de milho e feijão na esperança de colher uma boa safra, numa
das piores secas no sertão. Confiará em Santa Felícia?
Outro dia uma professora do Ceja, a Sandra
Ximenes, levou sua digníssima mãe naquele lugar santo, para pagar uma promessa
alcançada. As professoras do Ceja Prof. Luiz Bezerra não chegam a ser beatas
mocinhas, mas são piedosas, devotas extremadas de religiosidade a flor da pele.
Quando não estão angariando mantimentos para distribuir na comunidade carente
da região, programam uma peregrinação ao Cemitério de Felícia para a paga de
mais uma promessa alcançada, agora pela Senhora Jovelina, tia da professora
Socorrinha Rodrigues, e aproveitam para se despedir daquele Lugar Santo que,
brevemente, será encoberto pelas águas do Lago de Fronteiras.
A paz repousante do campo
sagrado do Poti, onde se ouve o cantar dos passarinhos e até a seriema vem
saudar o visitante com seu grito estridente de alegria, está com seus dias
contado, pois a profecia de Frei Vidal se cumprirá, um mar abafará, de vez, o
estalo dos chicotes e os gritos de dores das injustiças cometidas no eito do
sertão onde repousa o corpo de uma milagrosa negra, uma escrava Santa. Felícia
é um nome que depois de amargar tanto sofrimento, imposto pela covardia humana,
aflora, hoje, em pura Felicidade.
Você
acredita?
Raimundo Cândido
Chico Pascoal disse...
Quando íamos de trem, de Ibiapaba para Crateús, ao passar pelo Poti minha mãe e minha avó mostravam o cemitério e contavam a história da escrava santa.
Chico Pascoal disse...
Quando íamos de trem, de Ibiapaba para Crateús, ao passar pelo Poti minha mãe e minha avó mostravam o cemitério e contavam a história da escrava santa.