O Distrito de Ibiapaba, estendido
ao sopé da grande Serra Azul, é merecedor de uma diversidade geoambiental magnífica,
a serra e o sertão, com riquíssimas paisagens, tudo como uma prestigiosa dádiva
do Rio Poti. O Povoado foi surgindo com a construção da estrada de ferro, que
corre paralela ao rio, penetrando no boqueirão escavado no seio da serra, por
capricho das Eras e das águas. Quem vem do sertão, e vai chegando à Ibiapaba,
admira-se do quase inacessível morro, ao lado direito, chamado Picôte, o mais
alto dos Sertões de Cratheús, mas também não deixa de contemplar, do lado
esquerdo, o extenso Mambira, uma colina com um patamar horizontal quase no espinhaço,
local em que vivem uns índios modernizados, que se dizem descendentes dos tapuias
karatius. Mambira é o portal para um Jardim do Éden, onde começa o altiplano recortado
por grotões pedregosos e cobertos por uma alta flora, muito bem copada, num
clima deslumbrante. A bonita chapada é formada pelas regiões de Preguiça, do Nazário,
de Mirindiba e pelo suntuoso Ininga, espalhado até o limite com o Estado do
Piauí. É um imenso planalto, trilhado pelos “índios”, por destemidos caçadores
e pelos aventureiros de uma turma corajosa chamada Ribeira do Poti, que vivem a
procura das belezas da Caatinga, de aventuras e das lendas do sertão.
Constatamos, em Ininga, que até as pedras criam vida!
Um premiado poeta crateuense, hoje residente na
selva de pedra da Pauliceia Desvairada, o Chico Pascoal, havia escrito uns
versos afirmando que foi o homem pré-histórico da Ibiapaba que inventou a
prancha de surfe e não os havaianos como sabemos, pois seus antepassados
falavam de uma gruta no Ininga que tinha umas figuras rupestres de pessoas navegando
no Poti, equilibrados em cima de toras de Mulungus: “ Nadar é ato inconsciente,
inconsequente / Resquício ancestral / Fuga de si, do homem ilha / Complexo
fluvial / E na
tosca tábua do mulungu – o cavalete / Espraio-me réptil”. E não por menos, outro grande
escritor crateuense, o Dr. Paulo Nazareno, corroborou as afirmações dizendo que,
há muito, visitara o local e, por lá, conhecera a Lenda da Pedra do Vaqueiro, uma
bela história que vem lá do Ciclo do Couro. Súbito, atiçou-me uma curiosidade sem
par, que me ficou remoendo, como bichinhos do frivião. Tinha que ver,
pessoalmente, a Pedra do Vaqueiro, na Ininga.
Foi como caçar agulha num palheiro, pois ninguém conhecia
mais a lenda, nem a tal gruta. E tentativas foram muitas, durante um ano. Só na
mística Furna Quarenta e Sete fomos duas vezes, andamos por todo Vale do
Ininga, um dia inteiro, olhando os paredões, e nenhum vento assoprou aos nossos
ouvidos aonde poderíamos achar o que procurávamos. Não era hora do
desencantamento do lugar. Marcas de nossas passadas ficaram na subida íngreme
de Mambira, nas trilhas fechadas de Mirindiba, onde sentíamos os olhares da
mata nos espreitando e figuras de animais petrificados, ao redor da Pedra do
Castelo, a nos vigiar.
Foi quando apareceu o caçador Edilson, com o apelido
sugestivo de Capitão do Mato, dizendo que conhecia o local exato da Pedra do
Vaqueiro. Ajustamos preços do serviço de guia e partimos para mais uma excursão,
abrindo caminho por dentre o mato espesso, no gume do facão, com muito cuidado aonde
pisávamos, com medo das cobras e receio dos espinhos. Após três horas, de difícil
caminhada, descortina-se na nossa frente um enorme bloco Pétreo, prismático, de
uns vinte metros de altura, que se soltara, em época remota, do talhadão da
serra, era a famosa Pedra do Vaqueiro.
E a história da pedra, saída da boca do caçador, mas
contada como se fosse por um duende do mato, chegou aos meus ouvidos: - O
vaqueiro, no seu cavalo veloz, vinha correndo atrás da rês, lá em cima do
chapadão. Pega, não pega, pega, não pega e já abaixado, quase segurando no rabo
do animal para o derrubar, vê o abismo do talhado, aberto a sua frente. Puxa,
com desesperada força na rédea do alazão e os cascos do animal riscam no
carrascal, parando na beira do precipício. Só deu tempo a ele jogar o chapéu de
couro para acompanhar a trajetória da rês que pulara para o enorme bloco de
pedra, a uns dez metros na frente. Só os mistérios da Caatinga presenciaram
quando tudo, subitamente, se encantou, no exato instante em que o chapéu de
couro se petrificou e está aí, em cima da Pedra do Vaqueiro, para comprovar toda
a história.
Ali, na chapada selvagem, depois de ouvir a
belíssima lenda da Pedra do Vaqueiro, fiquei olhando para o chapéu pétreo, lá
no topo do enorme monólito, onde milagrosamente sementes germinaram em árvores
frondosas e me vi irmanado com o local, então, ergui os braços sentindo o vento
passar pelos meus dedos, como uma harpa tocando a sinfonia da natureza, ouvi a
luz do sol vibrar nas folhas das árvores como nas teclas de um piano,
pressentindo que o encantado Ininga é um belíssimo templo dos deuses.
Só consegui sair do arrebatado êxtase, após o
caçador muito insistir em me perguntar se eu queria ver uns riscos avermelhados
numas pedras, que há muito tempo tinha visto. Meus olhos brilharam de alegria e
fomos ver o que era aquilo de que falava. Depois de outra dificultosa
caminhada, abrindo trilha, chegamos a um abrigo rochoso, no sopé da serra,
repleto de representações artísticas do homem pré-histórico, nas paredes e no
teto da furna. Com certeza são os traços rupestres mais aperfeiçoados que já vi
e não sei bem o que representam, mas vi desenhos, em pigmentos, de peixes,
mandacarus e outras figuras como se fossem um homem navegando no rio, sobre
toras de mulungus, exatamente como na poesia do amigo Chico Pascoal. Já se percebe,
nitidamente, que o calor do fogo fez ceder uma parte do teto, que a urina de
mocós e as casas de maribondos estragam os desenhos na furna, mesmo estando
isolada do convívio humano.
Publiquei, por ingenuidade e displicência, fotos da
Furna nas Redes Sociais e nunca imaginei que receberia severas críticas,
principalmente dos doutores da Universidade Estadual pelo descuido que tive,
pois, vândalos já chegaram a destruir valiosos tesouros por mera estupidez e bruta
ignorância. Redescoberta a enorme riqueza arqueológica, só resta a Universidade
fazer a sua parte, na pesquisa, na catalogação e no estudo, porque proteção é
obrigação de todos nós. Mas, talvez, após os estudos, “os sabidos doutores” não
percebam que esses artistas do passado longínquo eram inspirados poetas, pois um
deles deixou, no teto da furna, um recado contundente para uma namorada, um
falo exageradamente grande como um poema profano e como convite para uma calorosa
noite de amor. Pois é, a fama de um Cratheús alegre, brincalhão e mundano já
vem de muito longe, desde a época em que os primeiros seres humanos por
aqui perambulavam e viviam feitos devassos faunos e alegres ninfas, desenfreados
na beira do rio.
Raimundo Cândido