O cearense,
com sua irreverência nata, inventa cada nome estrambólico para as coisas que ocorrem
e que existem nos quatro cantos do sertão: Arre-égua, capoeira, coivara, cangapé,
desembestar, embiocar, frivião, gurgúi, mutuca, pixilinga, talagada... Vixe!
São tantos os neologismos que aparecem no dia-a-dia do sertanejo que até ajuntaram
todos esses vocábulos incomuns num magote só, e chamaram de Dicionário Cearês.
Minha admiração maior é de quando, nós, ispritados cabras-da-peste, unimos numa
única designação uma série de palavras, como a genial expressão “B.R.O brós” só
para indicar os meses mais quentes do ano, de setembro a dezembro. Dizem que o
mundo, uma vez, findou-se com muita água e que, agora, vai se acabar é nas
labaredas de fogo e o foco é no sertão cearense.
Os B.R. O
brós são uns dias tão quentes, mas tão quentes que ainda tem crateuense que
fica sentado na calçada, até altas horas da noite, em cadeira de balanço,
esperando o Vento do Aracati chegar para amenizar o mormaço que abafa o mundo e,
só assim, ter uma noitada tranquila de sono.
Ventilador,
na minha meninice, era coisa muito rara e só existia nas casas dos ricaços da
cidade que dormiam embalados por uma frescurinha artificial. O Povão ficava era
nas calçadas, nas noites quentes dos B.R.O brós, de abanador na mão, fofocando
da vida alheia e esperando a friagem do Aracati chegar.
Os mais
velhos diziam - e eu piamente acreditava - que o vento do Aracati partia de um gigantesco
moinho que ficava assoprando da praia, onde nasceu o Dragão do Mar, e sem falhar
um dia sequer, no rumo à fornalha do sertão. Era até um motivo de empurrar,
mais cedo, as crianças para dormir nas suas baladeiras, na ameaça da tal de
cruviana, que estava, sorrateiramente, chegando.
Alguém, de
imaginação muito fértil, tentava explicar a demora do Aracati em chegar ao
sertão: - Ele vem de muito longe, lá do fim do mundo, onde o Rio Jaguaribe se
despeja no mar e vem muito devagar, vem se arrastando, se entretendo, ora aqui,
ora ali e é por isso que demora. É um vento muito invocado, embioca de lá prá
cá, fazendo estripulias pelo mundo. Boa parte sobe pela calha do velho Rio Jaguaribe,
passa por Russas, Limoeiro e vai bater na terra abençoada do Padim Cíço. O
restante do sopro do mar, que parte da praia de Canoa Quebrada, dos verdes mares
de Majorlândia, pega o rumo do sertão brabo, encrespa as penas da Galinha Choca,
em Quixadá, e tira, numa linha reta, por cima da cidade de Boa Viagem, até
chegar nos Sertões de Cratheús e nos cumprimenta com um refrescante boa noite. O
Aracati é um vento muito brincalhão, mas vem amenizando as altas temperaturas
por onde passa e, às vezes, escaramuça que nem potro selvagem levantando poeira
pelo chão. Quando muito cansado, desce pelos povoados, assovia nos telhados e, só
de brincadeira, levanta o vestido das moças fogosas ou então assanha os cabelos
das senhoras de respeito, que se balançam nas cadeiras, nas calçadas. O bonito
é quando ele faz um cansado cata-vento, todo enferrujado no reumatismo agudo, girar
sua ventoinha e, só no susto, entoar uma canção de saudade, no meio da noite
que, lentamente, vai se esfriando. O
vento do Aracati é como o sopro de Zéfaro, faz a Caatinga criar vida.
Por aqui,
nos Sertões de Cratheús, “existiu” outro Vento do Aracati, um outro vento bem diferente
daquela friagenzinha que sempre vem do mar, mas que também alegrava quando passava
pelas esquinas dos bairros da cidade ou pelos povoados do interior. O eleitor
ficava sentado nas calçadas, só aguardando a passagem “da brisa” e, quando
chegava a alegria era geral. Se o vento, das notas de cruzeiros, fosse em Rui Barbosa tinha que ser, no mínimo, de
umas dez cédulas, duas de Osvaldo Cruz já serviam ou então um JK brilhozinho e
se confirmava o acordo de um quadro endêmico que, por muito tempo corroeu, e ainda corrói a honradez e o brio do glorioso
Brasil: Uma corrupção mútua e safada entre políticos e eleitores, entre
eleitores e políticos.
Há quem
diga que o verdadeiro Vento do Aracati nunca consegue chegar por aqui, nas
lonjuras deste nosso imenso sertão, como um rio que voa, trazendo a rajada da
brisa do litoral. Mas quem assim diz é porque não sabe da coragem do Mar que um
dia animou a alma do jangadeiro aracatiense Chico da Matilde para se tornar o
herói que fez do Ceará o Pioneiro na Abolição.
Há quem
diga que não é o Aracati que vem amaciar o rosto do rude sertanejo com sua
brisa que acalma a alma, nas madrugadas frias. Mas quem assim pensa é porque
não sabe da fluência da poesia do mar, não sabe que o Vento do Aracati recita
no ar o doce odor das maresias e nos oferta flores marítimas na inalação, em
plena sequidão do sertão.
E quem
somos nós para contradizer o grande escritor José de Alencar quando afirmava:
“O doce Aracati chega do mar e derrama a deliciosa frescura pelo árido sertão.
A planta respira e um doce arrepio eriça a verde camada de capim, pelo chão.” É
isso mesmo, o vento do Aracati resvala no sopé da Serra da Ibiapaba, nas
beiradas da Bica do Ipu, onde a escultural índia Iracema se banhava, toda
vestida de graúna.
E no mormaço
brabo do meu querido sertão, aqui na calidez da Ribeira do Poti, só me resta
colocar uma cadeira de balanço na calçada e esperar, esperar e muito esperar que
a Brisa do Aracati chegue trazendo o desafogo das rajadas de poesias do
belíssimo mar de Canoa Quebrada, nos ofertando o frescor dos ventos de
Majorlândia que aumenta a esperança de vida de quem só sabe viver no clima quente
do sertão. E, como os poetas ribeirinhos, aguardo a eólica inspiração, espero,
espero e muito espero o sopro do Vento do Aracati para aliviar este imenso
calor que me sufoca e, também, para suavizar a viva fornalha de onde flameja a
sequidão desses meus rudes pensamentos.
- Ah! Que alivio
e que vento bom, está chagando a brisa do Ara Katu!
( Através
do poeta crateuense Dideus Sales, o nosso abraço e agradecimento à Aracati
pelos seus 173 anos que nos manda a suave brisa do Aracati)
Raimundo
Cândido