Como abstraído coração, a
natureza deve ter suas razões que a própria razão desconhece, mas não precisava
ser tão cruel! A dosagem de fel que nos impôs em amargor, nos últimos três
anos, em muito superou o mel que nos fez degustar, pelos anos anteriores ao
2013. E mesmo beneficiada em fontes perenes de água cristalinas, as mágicas
árvores do Buritizinho sabem, pressentem e obedecem, fielmente, às ordens da
mãe Terra, pois suspenderam até as floradas das árvores, por toda lombada da
serra. As abelhas, jandaíras, irapuás, tubibas, manduris e até a valente
italiana, em exames revoltos, debandaram levando consigo a arte do suco das
flores.
Na
garupa de uma potente moto, pilotada pelo poeta do Tatu-bola Edmilson
Providência, subimos a Serra da Ibiapaba, dois aventureiros incansáveis, rumo à
terra dos Urbinos. Avista-se uma beleza ímpar à medida que se percebe a
dificuldade em chegar. As rampas íngremes, as colinas deslizantes que, ano a
ano, são consertas para melhorar o acesso, mas uma temperamental ambiência, guardiã
da região, destrói tudo, pois um rico tesouro é para ficar isolado mesmo, bem
resguardado, firmemente protegido. Contradizendo o alerta de abandonar a
região, detonado pelas esquivas abelhas ao pressentirem uma escassez feroz,
paramos para apreciar um colorido Beija-Flor construindo um frágil ninho, como
a nos dizer: - Este é meu torrão! Não abandonarei meu lar, mesmo padecendo de
seca atroz! Pacientemente, num esforço hercúleo, ruflando 80 vezes por minuto,
o impensável malabarista alado gira em torno do corpo, fazendo um oito com as
asas, hora parando no ar, qual potente helicóptero, hora em macha à ré, para
depositar felpudas fibras coladas com salivas e costuradas com teia de aranha
na sua morada. Edificava uma tigelinha de brinquedo na ponta de um fino galho
de Jatobá. Foi a delicadeza sublime deste pequeno ser que despertou-me para a
imprescindível leveza do lugar... Então, intuitivamente, ousei afirmar: - Amigo
Edmilson, estamos pisando no ninho de um Beija-Flor!
Centenárias
figueiras vigiam os córregos de águas potáveis, que nascem das fontes perenes,
brotando das areias filtrantes nos troncos das Gameleiras e escoam por um
aclive de 800 metros. O precioso líquido que escorre não chega ao ressequido
sertão, pois os animais, as plantações e o talude natural da Serra o absorvem
de volta, uma forma de recomposição.
Caminhamos
por uma convidativa, mas árdua, vereda repleta de enormes jatobás, angicos,
sabiás, pau-arco, aroeiras. Pulamos arruinadas cercas de madeiras, passamos por
sonoras grotas, desviando-se dos galhos caídos, subindo e descendo morros e já
achávamos que não chegaríamos a lugar nenhum. De repente, o autor da música
Rola bola Tatu-bola, aponta para chão e mostra a marca de uma pata, como a de
um grande cachorro, e me avisa: - É recente, e está aqui por perto!
Tenho
a impressão de que o cansaço espanta o medo da gente. Seguimos em frente,
temerários aventureiros desprotegidos de tudo, sem botas, sem armas, sem
bússola e sem rumo, só com a cara e a coragem. A surpresa boa é a que chega
quando a gente menos espera. E quando o inesperado lhe sorri, descortinado o
Jardim do Éden, você sorri de volta, em êxtase! Estávamos na Casa de pedra e
não sabíamos para onde olhar, pois tudo é belíssimo! Resolvemos subir os
paredões de pedras, no mais alto dos picos ali existente, para nos
deslumbrarmos com a revelação do altar da natureza. Mandacarus, coroas de
frades e diversas bromélias espinhosas brotam das pedras avermelhadas,
queimadas pelo puro oxigênio do ar. Nota-se a presença de muitos roedores,
chamados mocós, e supomos a presenças das perigosas cascavéis, pois são partes
inseparáveis de uma mesma cadeia alimentar.
Uma
visão esplêndida, no meio de uma floresta intacta, tínhamos uma pincelada da
obra de Deus na nossa frente. Imensos blocos de pedras inacreditavelmente
equilibrados sobre um dedo pétreo, como um jogo de malabares, que se fixou no
espaço e no tempo. A Casa de Pedra do Buritizinho é o lar dos Duendes e dos
Magos, que nos vigiavam com seus olhares de espreita. Chagávamos a ouvir os
seus silêncios perscrutadores no rico santuário repleto de liberdade e paz!
Descemos
pela mesma trilha que subimos e uma serenidade nos acompanhou, diria até, uma
completude de existência que faltava em nossas vidas: a saciedade do belo e do
esplêndido na obra de Deus!
Urbino
é uma famosa cidade italiana, situada no topo de um morro e que possui o maior
conjunto arquitetônico de casas antigas da história mundial, preservadas dentro
de suas velhas muralhas. A cidade que descende dos extintos povos úmbrios é o
lar do famoso pintor Rafael, Rafael Sanzio de Urbino, um dos grandes mestres do
Renascimento Italiano. Portanto, não é de se estranhar que o Buritizinho, do
patriarca Urbino Fecundes Menezes, seja uma das mais bela obra de arte da
natureza.
O Miguel Menezes, guardião e
protetor, um ramo verde do velho tronco dos Urbinos, o antigo Senhor das terras
de Buritizinho da Serra e da fazenda Roma no sertão, nos levou para conhecer
uma fonte jorrante de água mineral, sob a copa de uma centenária Gameleira, cercada
por raízes aéreas, a qual me pareceu a cabeleira cintilante da Árvore das Almas
no filme Avatar. Admirados, olhávamos o precioso líquido jorrar do seio da
terra, borbulhando, gota por gota, para dar vida àquele ambiente sagrado, numa
época de seca histórica no Estado do Ceará.
O velho Urbino Menezes criou
oito filhos entre as viagens do sertão a serra, de Roma a buritizinho, de
Buritizinho a Roma. O José, o Júlio (meu avô!), o Cícero, o Pedro, o Urbino, a
Mariquinha, ana Joaquina e a Maria José que cresceram e ganharam o mundo com o que
assimilaram nas experiências do topo da serra. Viver e conviver, ciência e
sabedoria que se adquiria ali, pelo
olhar, pela magia do lugar.
Da despensa, onde Pedro Urbino
guardava o que se fabricava no velho engenho à bolandeira, as rapaduras estavam
sumindo. Notou um pequeno orifício entre os tijolos da parede e resolveu pegar
o gatuno. Selou o cavalo e avisou: - Meu povo, eu vou para o Sertão! Não andou
muito, amarra o cavalo na sombra de um Jatobá e, na surdina, volta ao depósito
com uma corda enlaçada. Fica de prontidão. Não demora na tocaia quando vê os
cinco dedos de uma mão penetrando vagarosamente por um orifício, tateando na
penumbra, em busca da doce rapadura. Rapidamente prende aquele braço sorrateiro
nas linhas do telhado e sai para o ver o Zezinho, seu amigo larapio, se
estrebuchar como um bezerro amarrado.
Um dia Pedro selou dois
cavalos e foi a cidade roubar a Maria Mathias e galoparam até Castelo do Piauí,
para a lua-de-mel. Os irmãos da moça raptada, também à cavalo, seguem no
encalço, deixado pelas trilhas do Piauí... Ou Pedro casa ou morre. Cícero
Menezes, o mano protetor, corre em seu socorro. O encontro ocorreu no
coqueiral, onde haviam armado umas redes. Cícero, arguto e corajoso, notando
que o confronto estava no empate, dois irmãos para cada lado, toma a frente e
faz a negociação: - Aqui, ninguém vai morrer, mas também ninguém vai casar!
Chegaram a um acordo, o dote pelo rapto da donzela seria o cavalo em que a
virgem fugiu e foram todos, tranquilamente, para suas casas. Depois de Maria,
depois de Rosa, e depois de muitas outras, Pedro resolveu se casor com Nelsa e
até penso que poeta Drummond se inspirou para o poema Quadrilha nas artimanhas
de Pedro Urbino. (O Fazendeiro Milton Menezes, em tom de brincadeira, disse-me:
- O Tio Pedro recorda-me um professor que conheço, um tal de Raimundinho! Fiz
de conta que não ouvi.)
Um dia, todos levantaram voo
do patamar encantado do Buritizinho. Pedro rumou ao Piauí, pois já havia feito
veredas por lá. Cícero e suas irmãs pousam na Fazenda Roma, nas margens do
Poti, que estava a precisar de um “Papa” entendido nas artes agropecuárias.
Júlio Urbino Menezes sela um cavalo com cochonilha acolchoada e ruma para a
Fazenda Ponciano. Há muito estava de olho na baixinha Maria de Matos, filha do
próspero fazendeiro João de Matos, pega na mão da eleita e se aconchegam na
fazenda Pereiros, para que esse escriba de linhas tortas pudesse lhes escrever
esta historinha sobre o Buritizinho.
A tarde se esvai, sonolenta e
triste, e os dois aventureiros descem a ladeira dos Tucuns. Olho para trás e
vislumbro, na aba da serra a imagem da Casa de Pedra que adormece, como os
beija-flores que, à noite, também hibernam, para retornar amanhã revestida de
sagrada luz, em todo seu esplendor.
Raimundo Cândido
Ivens Mourão disse...
Parabéns pelo artigo e pela sensibilidade sobre a realidade do Sertão. Você e o Edmilson teriam que ser criados, caso não existissem.