sábado, 31 de março de 2012




            Hoje: 48 anos do golpe militar no Brasil. Não há motivos para comemorar. Pelo menos do lado de cá. Os reacionários, conservadores, ultra-direitistas, fundamentalistas de idéias conservadores devem estar saudosos.
        Foram 20 anos de trevas sobre o país até os primeiros raios de luz das Diretas Já. Da "ditadura técnica" do abjeto Collor até a esperança de Lula chegamos a uma democracia. Não é a democracia que queremos, que sonhamos, mas é uma democracia, e mesmo com os defeitos, que precisamos combatê-los, o país é uma república federativa presidencialista.
        Vivemos duas décadas de arbitrariedades, de prisões, de torturas, de mortes, de "suicídios", de corpos em valas comuns, sumidos, jogados ao mar. Há mais de quarenta anos que pais não têm seus filhos de volta, que filhos não conhecem seus pais, que brasileiros perderam o passado em cárceres e ainda ecoam em seus ouvidos a ira de seus carrascos. A tortura como instrumento do Estado, e não da lei, foi uma marca registrada do governo militar.
         Em 1998 realizei um filme curta-metragem, "O último dia de sol", ambientado nesse período. Com roteiro a partir de lembranças minhas sobre o meu pai e histórias que ouvia, o filme se passa na madrugada de 1º de abril de 1964, quando um militante político foge com a mulher e o filho pequeno numa pequena cidade do interior cearense. Filmei em preto-e-branco, em película 35mm, com atores e técnicos de Brasília, Fortaleza e Rio, na pequena cidade de Baturité, a 100 quilômetros de Fortaleza, reconstituindo a época e revisitando as emoções. Foram dois anos entre filmagem e montagem, e junto a alegria de fazer cinema, de ouvir o toque da claquete e gritar "ação!", as dificuldades inerentes, principalmente de orçamento.
         Neste 31 de março, a minha homenagem aos que lutaram contra a ditadura escancarada.


(NIRTON VENÂNCIO, escritor, poeta, cineasta crateuense radicado em Brasília, autor de Um cotidiano perdido no tempo, curta, ficção, 1988 - http://www.youtube.com/watch?v=zJei8g7I50g)
Lançamentos fazem parte das comemorações dos 50 anos de existência do poeta e compositor
Fortaleza. O CD "Entre amigos, poemas e canções" e a reapresentação do livro "Nos Cafundós do Sertão", do poeta e compositor Dideus Sales, foram lançados, ontem, no Museu Jaguaribano, em Aracati. O evento integra as festividades dos 50 anos de vida do artista cearense.
Ambas as obras têm como temática o regionalismo e forte inspiração no cordel, especialmente o livro "Nos Canfundós do Sertão", que teve o lançamento de sua 13ª edição, revista e ampliada. A publicação é composta por um só poema, feito em homenagem ao também poeta Patativa do Assaré em vida, e cada estrofe recebe ilustrações do artista Audifax Rios.
Já o CD é composto por 12 poemas, que foram musicados por Rogério Franco, Claudio Ferreira e Tião Simpatia. Também assimilam a temática regional, à exceção de Estação Perdida, cantado por Lorena Nunes, que aborda o mundo existencialista vivido pelo autor.
Segundo Dideus, a homenagem que aconteceu no Museu Jaguaribano foi uma forma de comemorar o meio século de existência e ainda difundir mais a poesia e a música nordestina. Na ocasião, a apresentação coube ao membro da Academia Cearense de Retórica, Barros Alves.
"Para mim, é uma alegria imensa essa iniciativa cultural, porque estou expandindo minha produção criativa e tornando-a mais próxima do povo", disse o poeta.
Inspiração
Dideus nasceu em Crateús, no sertão dos Inhamuns, e vive há 16 anos em Aracati. Desde cedo, teve grande inclinação para a manifestação artística.
"Tive uma convivência muito próxima com Patativa, em sua casa em Assaré. E viajávamos juntos, aumentando ainda mais sua influência sobre meu trabalho", disse.
Além de Patativa, outros autores que influenciaram Dideus foram Ivanildo Vila Nova, Pedro Bandeira e Hernandes Pereira. Para o autor, cada um desses poetas contribuíram para sedimentar sua vocação e persistir numa carreira, onde sempre foi permeada pela observação, contemplação e exaltação dos temas sertanejos.
Dificuldades
O autor reconhece que há um certo mito quando se fala em dificuldade para se prosseguir na carreira artística, especialmente como poeta popular.
Lembra que é autor de 13 livros, todos com edições esgotadas. Além disso, salienta que sua obra tem um reconhecimento que lhe é muito caro pela relevância cultura, que é fazer parte da Academia Brasileira de Literatura de Cordel. "Acredito que quando um artista tem uma obra consiste, ele não deve se preocupar com o fracasso. No meu caso, sou feliz pelo êxito obtido", afirmou o escritor.
Tanto o CD quanto o livro foram vendidos por R$ 30,00, durante a noite de lançamento no Museu Jaguaribano.
Hoje, haverá ainda o lançamento de mais uma edição da revista Gente de Ação, também como parte das festividades do aniversário de Dideus. Para ele, é um tempo de muita alegria e satisfação, que compartilha com amigos e com os amantes da poesia popular.
Mais informações:
Contatos com o autor dideussales@bol.com.br
Telefones: (88) 9612.7384 e (88) 8802.7595
                                                

                                          III DIMENSÃO

Ela, na praça do centro da cidade, ao lado da filha. Menina loura, olhos azuis, sorriso inflexível.
Todo dia, o dia todo, ela senta ao lado da filha de 6 anos, desaparecida há quinze anos.

quinta-feira, 29 de março de 2012


Harley, o Palhaço Cara-Melada

Desde quando a feiticeira Circe, a filha do sol, transformou os companheiros do herói Ulisses em porcos saltitantes, ao desembarcarem nas areias quentes da Ilha de Eana, que já se falava em circo, pois foi quem cedeu o nome a este anfiteatro de delírio e encantamento.
A partir dos monumentais espetáculos de arenas no Circus Maximus, em Roma, onde as multidões se juntavam para assistir as corridas de bigas, os duelos de gladiadores e os estrondosos rugidos de animais selvagens, onde os atônitos espectadores se impressionavam com os engolidores de fogo, foi que se provou que a humanidade necessitava, desesperadamente, de panem et circenses.
Hoje, as organizações teatrais modernas iniciam um espetáculo com um mantra que invoca à deusa da alegria, Eufrosina, a quem chamamos Oxum, para presidir todo evento de diversão e arte: Alegria! Como um raio de vida...  Alegria! Como um palhaço a gritar... Alegria! Como uma faísca de vida brilhando...
Tudo em nome de um sublime e medicinal sorrir, essa fina flor que vai brotando em nosso rosto, regada pelas lágrimas de um refulgente palhaço e que o iluminado poeta um dia sentenciou: Sim, vale a pena sorrir, pois o mundo é um espelho, se sorrires para ele, ele sorrirá pra ti.
Quando os saltimbancos passaram a viajar, de cidade em cidade, levando suas pilhérias cômicas, suas surpreendentes pirofagias, seus inacreditáveis malabarismos e os comoventes teatros, foi que o circo começou a viver os seus dias de glória, capaz de unir crianças e adultos, nobres e plebeus, neste grande momento universal.
Mas o mundo do show business, girava apressadamente, explorando com gulosas pedras mós as performances criadoras e só para lhes arrancar uns cobiçados tostões, numa indústria que visa unicamente o vil metal. O que não sangra como borbulhante lucro, cedo morre. Como o maior espetáculo da Terra, com seus anfiteatros de malabaristas, de contorcionistas, de equilibristas, de mágicos, dos maravilhosos palhaços, este encantador circo, que hoje exala seus últimos suspiros.
Se o circo é alegria, o palhaço é o verdadeiro mágico deste espetáculo, arrancando risos de uma imensa platéia como fizeram os Carequinhas, os Arrelias, os Torresmos, os Piolins e o nosso queridíssimo Cara-Melada, o acrobata da alegria que, mesmo sem mascara no rosto, ainda sorria e seguia mentindo a sua dor...
Naquele remoto dia, o jovem Harley, encantado com um grupo de hippies “paz e amor” que passavam pela cidade, resolveu partir. Deliberadamente abandona os livros no colégio e de lá os segue numa fuga em busca de um tesouro perdido. E como ocorre com os velhos sábios, dentro de si mesmo o encontra: o divertidíssimo Palhaço Cara-Melada!
Quando alguém desperta para um grande sonho e sobre ele lança toda a força de sua alma, até o universo conspira a seu favor, como dizem, e foi o que ocorreu com o amigo Harley que depois de perambular como peão de diversos circos importantes deste imenso País, volta a sua terra natal para montar o Retalho Show Circo, lentamente erguido de pedaços de madeiras, retalhos de lonas, diversos materiais reciclados, mostrando que tudo que é feito de coração a luz do amor o reveste.
O palhaço Cara-Melada, como o eterno Carlitos, foi um comediante nato, espontâneo, de alta criatividade cômica e um imenso repertório clownesco ( Você pensa que eu sou besta? Eu sou muito é otário! O publico delirava com suas tiradas). Quando entrava no picadeiro com uma bicicleta dançante, as crianças davam o primeiro tiro de gargalhadas. Além de artista completo, fazia todos os serviços do circo, desde enfincar as estacas e montar a lona retalhada, até a apresentações de números perigosíssimos, quando uma daquelas vibrantes música, a moda power, preenchia o ar anunciando o “Hércules” para entortar grossos vergalhoes de ferro no peito descoberto e rasgar pratos de ágata nas calejadas mãos de um fino artífice.
 Já o cidadão Francisco Harley, como o Charles Chaplin, era o produtor, o diretor, o humorista, o comediante, o roteirista, o pai e a mãe como ele dizia, um simplório de uma versatilidade e uma naturalidade que chagava a dormir no chão ou dentro de um lenhoso féretro que havia no circo, idêntico ao Zé do Caixão.
Eram duas personalidades fortíssimas, ambas muito talentosas, mas o palhaço Cara-Melada saía facilmente, com água e sabão.
                No relacionamento amoroso também seguiu os passos do gênio do cinema mudo, que dizia: O amor perfeito é a mais bela das frustrações, pois está acima do que se pode exprimir. Muitas mulheres passaram pela vida do Mister Harley e os frutos destes imperfeitos amores, foi brotando, um a um.
Um dia, Harley pede ao Professor Acácio, seu cunhado, um nome artístico para um filho e vem o incomum Sunshine, o brilho do sol ou o palhaço Caramelo, depois o LettheSunshine, deixe o sol brilhar, em seguida StarofTheTime, estrela do tempo e finalmente o Skylight, luz do céu, formando de um simples elenco familiar uma habilidosa trupe de circo.
O vate Fernando Pessoa, além de indispensável poeta(s), tinha lá seus dotes de palhaço, pois quando pronunciou o verso: Tenho em mim todos os sonhos do mundo, se referia também aos palhaços que riem, choram e sonham. E um dos desejos de Cara-Melada era deixar de remendar a lona do circo, já toda retalhada, e dispor de uma lona nova era seu grande sonho. 
Com o Prêmio Funarte/Petrobrás Carequinha de Estímulo ao Circo, o arteiro Harley vislumbrou a felicidade de uma reestréia debaixo de uma nova lona, mas o destino não quis, pois nem sempre a insensata sina está de acordo com nossos méritos.
Às vezes de uma simples banalidade gera-se uma grande fatalidade. Um idiota que surrupiara o filhotinho da baleia, a cachorrinha que só obedecia a comandos em inglês, ainda volta despejando infortúnio no fio da navalha. O poeta Edilson Macedo assim resumiu a tragédia no Último Ato: Harley Harley, o palhaço/ Morreu/ Após ser chicoteado,/ Com uma facada/ No abdômen   //  Na platéia/ O filho Let The Sunshine/ (o palhaço Lengo Lengo)/ Como único/ espectador .
Morrer é somente uma imprevista curva na estrada e na próxima esquina haverá sempre um novo reencontro. Por isso, a família Cara-Melada tem a satisfação de convidá-los para a reestréia do Circo de Retalho, agora num novo show feito um Circo Escola, tão logo chegue a nova lona para confirmar que o que é belo não morre, sempre se transformará em outra beleza e os aplausos atribuídos à trupe de Cara-Meladas abra os nossos corações e os risos a brotarem debaixo da coberta nova, sejam como as estrelas, iluminando a nossa intimidante escuridão.  

Raimundo Candido

José Alberto de Souza disse...

Eta, Grande Cronista do Sertão de Crateús:
De tanto acarinhar - "mundinho, mundinho" - esse crânio privilegiado, Dª. Delite deve ter preparado a sua glândula pineal para que por ali se adentrasse um espírito de luz que o guia e conduz ao pináculo da extrema sabedoria: você está a um passo da genialidade!
João Silas Falcão disse...
Bela crônica, Poeta Raymundinho. Assisti ao vídeo Harley, o Palhaço Cara-Melada. Senti saudades. Muitas. Eu e você fomos amigos de infância do Harley. Crianças, nós percebíamos a desenvoltura jocosa do menino Harley em nossas brincadeiras, como se a Rua da Cruz fosse o seu primeiro picadeiro. Não tenho memórias de tristezas em Harley. Sempre o recordo com seu sorriso ininterrupto. Muitas vezes ficamos à sombra dos fícus vizinho à casa do meu avô Severino Dias, vivendo nosso mundo infantil quando Harley arrematava qualquer assunto com uma “palhaçada”. Um dos últimos momentos de nossa infância foi a inauguração de um “circo” no quintal da casa de dona Estelinha, mãe do Luizito e José Artêmio, que eram do nosso grupo. Advinha de quem foi a ideia do circo? Poeta, esta crônica merece um arquivo especial: o do coração. Parabéns!

quarta-feira, 28 de março de 2012

Saldo da vaidade e da politicagem: decepção

 
Fim da segundona 2011: tudo era festa. O Crateús surpreendentemente ascendera à elite do futebol cearense. Ali não se viram adversidades políticas, divergências entre gestores. Parecia um todo harmônico, como uma orquestra de anjos. Loas de todos os lados para os “verdadeiros desportistas” que galgaram a façanha.
Início do campeonato cearense 2012: novamente festa: o Crateús se revela forte e guerreiro. Empata com o Guaraju em 2X2 e perde para o poderoso Horizonte de 3X2 fora de casa. No Jumelão parece imbatível: ganha do Ferroviário, do Icasa, do Trairiense... Recebe da grande mídia a alcunha de “caçulinha abusado”. Comentaristas da Verdes Mares vieram conferir se o “o bicho papão” era realmente feio, no empate com o Ceará. Dorme no G-4 por duas noites, chama à atenção da Imprensa até mesmo nos Estados vizinhos...
Aí tudo começou a mudar: oportunistas politiqueiros que nunca haviam pisado no Juvenal Melo viraram porteiros. Neodesportistas de ocasião querendo tomar os microfones dos dirigentes e posar como interlocutores dos “Guerreiros do Poti”. Até que enfim veio o recado dos “home”: ou saem os três indesejados, ou não tem mais o repasse dos R$ 45.000,00. E mandam um dos prepostos dar uma desculpa qualquer à opinião pública.
Vem a primeira goleada: 4X0 para o Fortaleza e a queda para a sétima posição, derrota para o Icasa, cedida nos últimos minutos. O alívio em três vitórias, no sufoco, inclusive contra o lanterna Itapipoca, que se não fosse o Véi... e por fim, a goleada em casa para o Guaraju de 4X1e a volta à sétima posição, de onde não sobe mais.
Pois que restam ao Crateús cinco jogos, três dos quais fora de casa; quatro dos quais contra as equipes do G-4. Se jogar bravamente, consegue, na melhor das hipóteses, dois ou três pontinhos, dos 15 a disputar. Com dez pontos apenas à frente da zona de degola, podendo ser ainda alcançado por Icasa, Guarassol e Trairiense. Não fosse a fragilidade dos adversários da parte de baixo da tabela, decairia mais ainda na classificação.
A campanha já não inspira o mesmo entusiasmo do início e a presença de público no Estádio mingua. A renda, que já ultrapassou os 40 mil, cai para cerca de 10 mil, nos jogos comuns. Correm boatos de que, com as novas contratações (Fabio Saci para que?), a folha teria ficado muito pesada e transcorre alto endividamento do clube. Tomara que verdade não seja.
Tudo por causa da exclusão dos três dirigentes? Provavelmente não. O Crateús tem um elenco modesto e recursos parcos, se comparados aos da maioria dos demais clubes do Cearense. Os resultados positivos até então são, de fato, heroicos. E heroísmo em futebol, sabe-se bem, se consegue com motivação e harmonia do grupo.
Motivação e harmonia, porém, somente verdadeiros desportistas podem proporcionar a um elenco. Neste aspecto, os três que foram “tirados”, por certo, ajudariam muito. Têm eles envolvimento político-partidário? Sim, mas quem não o tem? Retornemos ao passado deles e os veremos presença marcante nas principais conquistas do esporte de Crateús, seja nas boas campanhas do futsal, inclusive um terceiro lugar no campeonato cearense; seja nos títulos da terceirona do Cearense de campo.
Que agora os politiqueiros, oportunistas e neodesportistas de ocasião tenham a hombridade de tomarem para si a responsabilidade, não diria pelo fracasso – pois poder permanecer na elite do futebol cearense é um grande feito – mas por frustrarem a expectativa que os próprios dirigentes e treinador plantaram de levar a equipe ao quadrangular decisivo do Campeonato. Era muito? Talvez. Mas o torcedor acreditou, eu também acreditei.
Elias de França - Escritor
 

segunda-feira, 26 de março de 2012


Em Memória do velho meu pai, Chico Pinto, cearense de Ibiapaba 
( *Crateús, Ceará , 1923-  +Barreiras, Bahia 2009)

 CEGO DOS ÓIO

"Sabe quem sou eu?", ousou desafiar meu pai.”Então diga lá!”

O cego inclinou levemente a cabeça branca para a esquerda, descansou a velha sanfona num tamborete, enxugou o suor do rosto de feições fortes com um lenço de flanela, e pediu a meu pai que se aproximasse um pouco mais. Com suas mãos grandes de dedos mágicos ele apalpou os sulcos da face do meu pai, percorreu toda a extensão da fronte larga, passeou pelo nariz afilado de onde pendia o bigode cheio, se estendeu pelo queixo, seguiu a barba rala até as orelhas; e sentiu o volume do crânio como se fosse um oleiro a modelar um pote em argila.

"É Chico Pinto, não é?"

Era. acertou de primeira.

"Conheci pela cabeça, num sabe? Pelo formato. Pois é. Cabeça de cearense é diferente. Eliminei oito estados duma vez. Depois tem essa cicatriz no pé do ouvido... Foi coice de jegue, não foi? Foi estripulia de menino, não foi?"

Ambos acharam graça e folgaram. E eu fiquei ali, sorrindo, sem entender muito bem aquela conversa.

O cego, que se chamava Dantas, meu pai me contou depois, era uma lenda viva do Nordeste. Prosearam: Dantas falou das suas andanças tocando pelas feiras do sertão, e meu pai contou como fomos parar naquele fim de mundo. Então Dantas lhe disse: " Olha, Chico, eu não dou de me queixar não, mas estou ficando velho; e é de velho mesmo reclamar. Antes, era só ouvir a voz, o sotaque,  para eu identificar o cabra. Agora, tenho que assuntar bem, seguir o tato, passar a mão, descobrir as marcas, o sinais, que nem quem compra cavalo de cigano. Fosse moça nova, meu amigo, eu não me avexava. Fazia inté questão."

Riram de novo, com gosto.

Satisfeito pelo reencontro, meu pai se despediu deixando uma nota de dez na cuia do cego que o agradeceu dizendo até logo. Lembro ainda que aquele dia, de qualquer ponto da feira em que estivéssemos, podíamos ouvir o solo triste do "Assum preto cego dos óio" que o sanfoneiro cego extraia do fole. Meu pai, que o conhecia desde bem antes de eu nascer, disse-me que, assim como o pássaro da música do Gonzagão, o seu Dantas, cego dos olhos, tocava cada vez melhor.
  Raimundo Candido disse...
Chico Pascoal é um escritor cearense, crateuense em formação, com contos publicados em antologias e sites mundo afora. E leitor apaixonado. (Segundo ele, mas sabemos que é um dos crateuenses mais premiados literariamente neste mesmo mundo afora!)