( Um conto do professor/poeta André)
Acordara por
volta das 6:30, minha mãe já estava com o café que fora torrado em casa, na
panela de ferro, pronto no bule de águida, azul. Aquele cheiro de café donzelo
invadiu minha alma e as salas, corredores, alcovas e cozinhas das casas vizinhas.
A tapioca, fiel companheira, completou a minha primeira refeição simples como a
minha vida de criança de 12 anos.
Peguei meu saco
de plástico que servia de embalagem de leite em pó oriundo da Aliança para o
Progresso, uma espécie acordo que nos anos 60, o Brasil e os Estados Unidos
mantinham, entre si.
Aquele saco era
o espaço onde eu guardava meus materiais da escola. Peguei o livro de
geografia, não me lembro mais quem era o autor. Era um livro que apresentava
conceitos e definições de aspectos e acidentes geográficos, como rios, lagos,
golfo, cabo, ilha, montanha, depressão, planície, entre outros.
Lá estou eu
estudando, estudando não, decorando. Ora, em 1966 a pedagogia praticada nas
escolas era a tradicional, onde o aluno era apenas um banco para serem depositadas
informações sem questionamentos. Aluno inteligente era aquele que conseguia
decorar o ponto, ou seja, a lição delineada pelo professor.
Tinha chovido
muito na noite anterior e o sol resolveu dar as caras, talvez com o propósito
de sofisticar a embrejada rua Baturité, hoje, Gustavo Barroso, onde vivi minha
infância, adolescência e iniciado na vida adulta.
Pois bem,
naquela manhã de inverno e de sol o tal livro de geografia foi meu companheiro.
Era dia de arguição na escola a temida aprova oral. Li, estudei, decorei. Especializei-me no rio
Amazonas a partir de sua nascente e em seus afluentes da margem esquerda e da
direita até sua rota de colisão com Atlântico.
Por volta das
9:30 fui tomar banho no rio Poty. Naquele tempo era um rio piscoso. Bom para o
banho e em suas margens surgiam cacimbas de águas cristalinas e um pouco
azulada que abastecia a cidade de Crateús, transportadas em lombos de jumentos,
em pequenas âncoras denominadas também de canecas feitas em madeira. Pelos
caminhos que nasciam das margens do rio, mulheres desfilavam com latas de água
na cabeça, adolescentes e homens diversos conduziam a água pura em baldes e
distante de coliformes, em carrinhos ou em pedaços de varas grossas, tendo como
base o ombro, cantando canções da época.
Onze horas eu já
estava a caminho da escola. Da Rua Baturité até o externato Nossa Senhora de
Fátima, era uma viagem. Uns dois quilômetros e meio. Venci a Central, estrada
construída pelo 4º Batalhão de Engenharia e Construção, que terminava na via
férrea, hoje, Avenida Sargento Hermínio. Segui Pela Rua Coronel Zezé, conhecida
como Beco da cachaça, toda pavimentada de perfeitos paralelepípedos, cruzei a
praça da matriz codinominada de Avenida, vislumbrei o palácio do bispo, uma
bela arquitetura, O Dom Fragoso tinha chegado há pouco tempo em Crateús.
Já próximo da
escola, sentei-me na calçada do capitão Eduardo, farmacêutico e bioquímico do
4º BEC e fui acolhido com uma deliciosa sombra de um pé de castanholas. Retirei
da sacola o livro de geografia, fiz uma revisão da lição, estava tudo na minha
cabeça de adolescente.
Às doze horas,
eu já estava na sala de aula, sentado, apertado no banco de madeira comprido,
próprio para acomodar cinco alunos. Entretanto, a demanda por vagas para o
Externato era tamanha que de sete a oito alunos se acotovelavam naquele assento, tendo como apoio de escrita,
na sala de aula, mesas de madeira maciça já rotas de tanto uso e o castigo do
tempo. Todos os alunos ainda davam aquela olhada final no descritivo livro de
geografia.
A mestra entra
na sala. Todos se levantam. A professora era a saudosa Dona Delite. A sua
escola era, também, o seu lar doce lar dividido entre seus filhos que a ajudava
no exercício da docência. O Júlio, era o professor de matemática. Tanto dava
aula como fumava. Um excelente professor. Nunca tive muita efetividade com a
disciplina de matemática.
Sempre antes do
início da aula, Dona Delite invocava fluídos positivos aos Deuses do
conhecimento, através de Pai Nosso e Ave-Marias. Mas parece que naquele dia os
deuses não estavam muito a favor de muitos alunos. Como meu nome é José, não
fui um dos primeiros a ser chamado e, assistia o desenvolvimento daquela prova
oral como também a alegria dos que respondia corretamente às questões que não
eram muitos e a tristeza e dor dos que erravam. O silêncio na sala era tão
profundo que nenhum ruído externo era capaz de quebrar tal quietude.
Finalmente,
chegou a minha vez. Na minha caminhada para o palco da arguição unilateral com
a cabeça cheia de acidentes geográficos
vieram as fatídicas perguntas: “Descreva o rio Amazonas com todos os seus
afluentes da margem esquerda e direita a partir de sua nascente?” Fiz bonito.
Dona Delite olhou-me com seus olhos
mansos e cheios de satisfação com minha resposta. Ela ainda não tinha realizada
esta questão completa para os outros. A segunda pergunta, talvez como prêmio
por ter sido brilhante na primeira, fez uma com resposta curta: “O que é um
Cabo?” A minha resposta foi imediata: “uma porção muito grande de mar que avança
sobre a terra”.
Naquele momento,
aquele mesmo olhar sereno e manso pega minha direita como se fosse
cumprimentar-me por tal feito. Olha para alguém perto e pede a Maria Bonita. A
Maria Bonita veio em minha direção, com a cor vermelha da aroeira, rígida,
forte, com o corpo bem trabalhado, talvez por um perfeito escultor. A sua
cabeça redonda, parecida com uma abóbada geometricamente bem distribuída e bem
torneada, pairou no ar. Desceu vertiginosamente em queda livre como se fosse um
foguete a aterrisar no seu alvo bem calculado: A minha mão. Confundira os
aspectos definidores de golfo com cabo
que são acidentes geográficos contrários.
A princípio em
não entendera o motivo daquela dor que tomou conta de minha mão de adolescente
em formação, ante o olhar da turma entumecida pelas minhas lágrimas que não
caíram na minha alma nem regaram o chão das minhas caminhadas. Apenas ouvi da
grande mestra que a minha resposta estaria correta se tivesse indagado a
definição de golfo. Aquele foi o meu primeiro último bolo construído com os
ingredientes dolorosos da Maria bonita.
Com o passar do tempo
os conceitos de pedagogia foram se transformando e a Maria Bonita, aos poucos, foi sendo esquecida pelos seus mais
diversos namorados.
Reza a lenda que
a Maria Bonita ainda vive guardada a expiar seus pecados em algum lugar do
Externato Nossa Senhora de Fátima em função das transformações educacionais que
envolveram o século XX e permeiam o XXI.
Conto produzido por José Soares
André (prof. André)
22 de julho de 2016
Vocabulário.