sábado, 4 de abril de 2015

Arribação



Uma ave pousou na minha mão!
     Emplumou, exibida e ostentosa
          como a seda nas flores.
               Cativou-me! Tanto canto triste e doce
                    e até no gorjeio de Sol Maior delirei!
                         A avezinha medrou, o ânimo cresceu,
                              mas seu olhar mirava um horizonte...
                                   Sofria na invocação dos crepúsculos!
                             Não trinou seu canto de despedida
                        e, num voo rápido, sem adeus, partiu!
                  Liberdade, enfim, desprendida
             de minha triste e inútil mão!
       Um peso enorme ficou no vazio,
   com meu olhar a buscar o  infinito,
e não vi chegar a hora de arribação!

Raimundo Cândido

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Poeira



Da realidade poenta:
  Eu sou, tu és,
    nos somos impuro pó!
      Atila, os Papas,
        as putas, as freiras,
          as santas intensões,
as tramas do capeta,
a claridade do dia,
o breu da noite,
as lamurias, as orações,
a esperança que nos guia,
o fútil, o essencial,
                          e o cruento tempo
                          é, fundamentalmente,  
                          impudico pó.
Toda existência, por fim!
Mas só a dor no peito,
atada ao pó que sou,
ainda não pulverizou!


                   Raimundo Cândido

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Tintinha, a Poetisa da Ribeira do Poti.

                                                                                                              
O Sertão de Cratheús, mesmo se despindo do manto verde de esperanças nas raras quadras invernosas e se revestindo de um desalento, quase sem vida, numa paisagem repleta de gravetos secos e de brancos ossos espalhados pelo chão, ainda é um dos mais belos e puros poemas que compõem as plagas nordestinas.
Desde a época áurea do Ciclo do Couro que o Distrito de Curral Velho é uma terra bárbara, de estradinhas tortuosas e tristes, esmaecida pelos raios escaldantes do sol, mas nunca cessou de brotar poesias na alma esperançosa do rústico sertanejo. Povoados dispersos pelas margens dos Riachos Serrote e do Meio, que desemborcam no leito Rio Poti, sobrevivem à custa do esforço incomum do homem do campo, num heroísmo inimaginável.
A Lagoa das Pedras dos Rodrigues, um local cheio de pequenos lagos que ficam repletos de marrecos e patos nos invernos abundantes, é a morada de homens e mulheres de uma estirpe sólida e obstinada. É onde residem alguns laboriosos Bonfins, leitões e Rodrigues que plantam as sementes de esperança em suas roças, ao som do mugido do gado, do balido dos carneiros, do relincho dos jegues, do berro dos bodes e depois ficam aguardando as providências divinas.
Da produtiva terra do barro, e seus arredores, emergiram grandes poetas como Bastiãozinho, Datin Bonfim, Lucas Boquady... E, aqui e acolá, assim de repente como quem não quer nada, outros vates vão aparecendo: o Junior, o Luciano... Todos, gerados no seio da enorme família Bonfim.  
Habita na Lagoa das Pedras dos Rodrigues, entre a Vaca Morta e a Ipueira Cercado, uma eficiente Palas Athena, a deusa que rege a sabedoria, símbolo da inteligência, da educação e até da sublime poesia! E no meio do inóspito sertão crateuense, reina a poetisa tintinha, sim senhor! Uma pupila preparada pelas orientações da Mestra Dona Delite Menezes para lecionar nos Sertões de Cratheús, desde a época do Mobral. Além de Professora, é versada nas rimas e canta as coisas do chão e as lidas diárias de sobrevivência do homem do campo. No grato poema: “ Dona Delite minha Mestra / Como posso esquecer / Pois o pouco que sei / eu aprendi com você” percebemos a dignidade de uma poetisa que reconhece quem lhe deu a mão. Uma prova de dignidade. E celebra os acontecimentos de seu lugar com o lirismo simples da sua poesia de rima popular, alegria, dor, esperança e o amor que é um tema constante de seus versos: “Amar é coisa divina / veja que tenho razão / Se amar me faz sofrer / Antes dá satisfação / amor para mim é tudo / Ele é a minha inspiração.” Este “ele” é o Abdias, seu esposo há 35 anos, e fiel companheiro de vida. A poetisa assistia aos jogos de futebol, nos campinhos do interior, só par gritar com emoção o nome do atleta preferido: Abdias! Abdias! E aí surgiu o entusiasmado namoro e logo marcara o grande casamento. Outro companheiro inseparável da poetisa da margem do Riacho do Meio é um elegante e velho cachorro chamado Leopardo. Protetor só até ali, ninguém toca em nada de Tintinha, ele diz logo o porquê do nome, mostrando os caninos finos e as garras afiadas. Os cães aliviam a nossa solidão e são elos com o esperado paraíso, dizem os poetas.
Francisca Leitão Rodrigues Pereira, a doce Tintinha, ex-professora, inspirada poetisa, passa o dia sentada numa cadeira vendo televisão, ouvindo o rádio, captando o som da natureza que o vento joga para dentro de casa. Um velho galo que canta, as galinhas que cacarejam, o balido das cabras, o trinado do galo campina que chega misturado com o farfalhar das folhas nas árvores do terreiro. Tintinha está doente. A poetisa perde aos pouco os movimentos das pernas, a visão vai diminuindo à medida que uma ataxia degenerativa toma de conta de seu sistema nervoso. Uma doença hereditária embutida no DNA de uma ramificação da família Bonfim que aos pouco vai deformando seu cerebelo e a sua retina, tornando-a quase cega. Mas ela não se entrega: “Eu queria está sadia / Para mais tempo durar / Pois viver é muito bom / temos que aproveitar / até quando Deus quiser / Só nos resta esperar...” A Palas Athenas crateuense tem consciência de sua situação e se esforça para não deixar perecer o que tem de mais belo dentro de si, o dom da vida e a vocação para a poesia: “Minha vida é um romance / Dos que todo mundo cria / Não sou triste nem alegre / Nem vivo de fantasia...”  
Sentado ao lado de Francisca Leitão, a poetisa da Lagoa das Pedras dos Rodrigues, sob os olhares vigilantes do cachorro Leopardo, o seu anjo leal e guardião, lia os versos de Tintinha, em dezenas de cadernos, rabiscados com as mãos trêmulas, as palavras já escapulindo das linhas e sobre os mais variados motes: A festa do Barro em Curral Velho com suas olarias fabricando tijolos e telhas, o embuste da construção do Lago de Fronteiras, os políticos descarados e sem palavras, os elogios à Rádio Camponesa, no Assentamento Palmares, onde de vez em quando o locutor declama um dos seus versos para os ouvintes do sertão, o desequilíbrio ecológico trazendo seríssimas consequências para o nordeste, como a falta de água, a chegada do terceiro bispo à Cratheús e os constantes louvores a Nossa Senhora, a quem pede proteção para sua família, pois já tem uma das filhas molestada pela irrevogável e perversa barreira que o destino impõe no caminho da gente e então me lembrei do poeta Manoel Bandeira, com sua doença estigmatizante, forçado a viver na solidão, mas nunca deixou que isso fosse o fim de seus sonhos, descobriu, como a poetisa Tintinha, que a sua salvação era assumir o compromisso com a maravilhosa e divina poesia.
Ganhei, de Tintinha, um verso pela visita que lhe fiz, intitulado Surpresa: “...O Raimundinho da Dona Delite... / Comigo muito conversou / E mais poderia ser / pois minha voz atrapalhou / dava pouco para entender / Mas é assim que estou / E nada se pode fazer...”
Despeço-me da poetisa da Ribeira do Poti, prometendo outras visitas para terminar de ler o restante da montanha de versos em seus cadernos, e volto para casa pensando que, se não podemos mudar o nosso destino, podemos mudar nossa atitude para com a vida, para com a outra vida que poderiam ter sido e que não foi.
O canto poético, na pouca voz da poetisa, me arrebatou. O sorriso sincero que mostra uma fortaleza de espírito, é como uma flor que o belíssimo Sertão de Cratheús tem a nos presentear. E pensando na Paz, estampada no rosto tranquilo, afirmando que poesia é vida, é epifania e salvação, silenciosamente rezei: "Concedei-me, Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar aquelas que posso e sabedoria para distinguir umas das outras".
Obrigado, doce poetisa Tintinha, tu és uma esplendorosa flor poética que o Sertão de Cratheús me mostrou!


Raimundo Cândido

terça-feira, 31 de março de 2015

Quimera



A ilusão, astuciosa, num rígido gesto,
interpelou-me: - O que tens, amigo?
Vãs promessas vi, nos olhos dos sonhos.
- Não tenho nada, não! Deixe-me

em paz, oh, malvada ilusão!
- Tem sim! Categórica, ela insistiu:
- Até as sombras da noite estão
irrequietas, por tua apreensão!
- Está certo, dir-te-ei, mas não
me perturbe depois, Oh danação!
E então, cochichei ao seu ouvido:
“Senti o cheiro das rosas mortas
corrompendo o ar e vi o vago tempo
orvalhando um doloroso abandono.
E no divã da irrequieta madrugada
não pude deixar minhas insanidades,
as minhas rugas, as minhas dores
e um mar de água salobra escorreu
para a imensidade do nada!
Nem a voz do divã soube
prenunciar o que sobrevêm,
ou algo além de meu destino
sequer o que restou, por hora, de mim!
Porém, ela disse-me: - O ermo é tua sina,
triste poeta da Ribeira do Poti.
E meus olhos se afogam na longa solidão.”
Estás satisfeita agora, Quimera?
A ilusão abraçou-me, meigamente,
e consolou-me: - Não acredites
neste adivinho não, poeta!
Recomece... Se puderes. E não descanse,
não se desespere nas trilhas do mundo.
Fim é só para quem não vê um recomeço.
E segui, caminhando ao lado da ilusão,
que ia borrifando, nos ímpios,
os seus predominantes capricho
s!

Raimundo Cândido

Boaventura Bonfim disse...
Quanta poesia, meu Deus, haurida de um ímpeto do poeta em contato com o Divino, que os mortais denominamos de "momento de inspiração". Parabéns, Professor Raimundo Cândido. Continue plasmando seus momentos com Deus, que os poetas chamamos de instantes de "loucura". Um forte abraço do amigo Boaventura Joaquim Furtado Bonfim, velho parente e conterrâneo radicado em Fortaleza.

domingo, 29 de março de 2015

Carrapicho

Na ocasião,
como os carrapichos,
grudo-me ao vento,
e ao brilho da luz.
Pelas circunstâncias,
tal preciso velcro,
entrelaço-me às brisas
e ao silêncio das noites!
Exigência de vida,
pois apeteço seguir-te,
agarrado ao teu vulto!

Raimundo Cândido