Mesmo a Quinta Avenida da Big
Apple, cidade de New York, magnífica e badalada com um redemoinho de ianques
margeados por imponentes prédios de aço e vidro, ou a majestosa Avenue des Champs
Élysées, na cidade luz chamada Paris, com o Arco do Triunfo bonapartiano grudado
ao Museu do Louvre onde se esparrama um sorriso enigmático da Mona Lisa, e até mesmo
a curitibana Rua das Flores, enfeitada de girassóis e de curiosos turistas que assistem
diariamente ao encontro dos Cavaleiros da Boca Maldita, não valem o meio fio das
calçadas da Avenida Frei Vidal da Penha.
Desde a época em que nas
bodegas, uma em cada esquina, os fregueses chegavam fiando açúcar e farinha em
raquíticas cadernetas, até o dia em que um nigérrimo tapete cobriu a poeira do
tropel dos cavalos que passavam rumo ao centro, a Rua da Cruz foi, e sempre
será, uma consonante artéria do meu coração.
A meninada se divertia urdindo
travessuras. Éramos pássaros sem plumas aprendendo a voar. Curumins alumbrados
entre duendes, magos, mães-d’água e ilusões diluídas no ar. Um duende-menino,
disfarçado de gente, ia à escola. A professora, Dona Delite, já o preferira
como a um eleito, pela perspicácia e impetuosidade em aprender. Sabatinava-o no
3º ano primário, como exemplo
para o restante da turma: — Juracy, responda bem rápido, Sete vezes oito? Ele
nem pestaneja: — Cinquenta e seis! Oito vezes sete? Nove vezes quatro?
Metralhava-o. Às vezes respondia quase antes da mestra formular uma pergunta. (Eu
era um bom aluno... Um bom aluno! Recorda-me saudoso, o próprio Louro da Cruz,
dentro de um corpo sofrido pela demolição acrimoniosa do tempo.)
O magricelo vivaz, que apontava
para um futuro promissor de uma meninice esperta, tinha um sonho: ser padre. Esteve
no seminário de Baturité, dando textura e forma a esse desejo, mas como disse o
p(r)o(f)eta Augusto dos Anjos: Vão-se os sonhos nas asas da descrença e voltam
nas asas da esperança. Um vírus lhe enche o corpo de contagiantes erupções que
se espalham por toda escola eclesiástica. O sarampo diluiu uma aspiração e a
transformou em revolta. Foram longos os dias em que vivia da raiva de viver, de
não poder mais voltar ao seminário. Deixou de estudar, desentendeu-se com a
incompreensível família e foi dormir no mato, como um triste Gmono das árvores.
Da mesma forma que o mundo enferma, o tempo também cura. Logo um rebelde e cabeludo
Juracy estava vendendo o apetitoso Bauru, o primeiro sanduiche peculiar da
cidade, para uma seleta clientela, na Lanchonete Jovem Guarda: vinham os doutores,
os ricos comerciantes, os oficiais do 4º batalhão e quando chegava um cidadão
comum, tinha que trazer uma boa porção de moedas para saboreá-lo e com direito a
ouvir o Louro cantar, “ E que tudo mais vá pro inferno” ou “Olha o brucutu,
bru-cu-tu!”, tudo proveniente de uma caixa de bananas verdes, herança de um bodegueiro
falido chamado Luizinho Filó, onde o Louro costumava dormir, no chão frio
forrado com palhas de bananeiras.
Juracy prospera, pois os
ventos da boa sorte o bafejava. Ele sempre soube acautelar-se e pensa em todos
os pormenores. Adquire um imenso terreno onde pretende construir uma Casa de Shows
e trazer nada mais, nada menos, que o Rei da Juventude, Roberto Carlos. O 4º
Batalhão, de partida para Barreiras, na Bahia, o presenteia com abundante
material de construção. O único obstáculo, como pedra no meio do caminho, era
um imenso e antiguíssimo cruzeiro de aroeira assentado sobre um grosso pedestal
de bentos tijolos de 27 quilos, e o único jeito era a demolição. Rapidamente,
alavancas e picaretas o degringola. Uma multidão se aglomera no final da Frei Vidal,
descrente no que via. O Vigário da cidade, Pe. Bonfim, chega no seu motorzinho
e constata o grande perigo: — Mas seu Juracy, como pôde fazer isso? Este
cruzeiro foi enfincado na entrada da cidade pelo santo Pe. Juvêncio para nos
proteger e nos livrar da tentação do demônio e você o derruba! Pois está
amaldiçoado!
O verde Jeep da polícia, um willys
51, leva-o para a cadeia publica, mas logo é solto. O delegado não ver
legalidade naquela despropositada prisão. Juracy tomou o devido cuidado de
enterrar os mastros de aroeira no chão da boate encoberto pelos trilhos de
ferro do batalhão, para que a maldição daquele dia nunca viesse à tona. Foi uma
indispensável prudência do conhecidíssimo Louro da Cruz, como passou a ser
chamar, a partir de então.
O Rei da Jovem Guarda nunca deu
o seu ar da graça por aqui, mas o empresário Juracy trouxe, entre outros, para
soltar suas veludosas vozes a cantora e musa pornô Gretchen, o cigano Sidney
Magal ameaçando "Se Te Agarro
Com Outro Te Mato", o axé music de Chiclete com Banana, Roberta Miranda
cantando que nem A Magestade o Sabiá, a voz potente de Gessé, Biafra celebrando
o Sonho de Ícaro e Martinho da Vila que desfilou pelas ruas da cidade com um
grupo de mulheres a festejar a Rainha de Iemanjá.
Comprovando sua predisposta
felicidade para a sorte, na véspera de uma das piores agressões ao cidadão brasileiro,
quando as pessoas perderam dinheiro em contas bancárias pelo famigerado Plano
Collor, Louro da Cruz retira todo seu money da poupança e compra a sede da
AABB, onde hoje guarda a sua novíssima galinha dos Ovos de Ouro, o animadíssimo
Trenzinho da Alegria.
Ali, naquele valorizado prédio
que é hoje a sua casa, Louro passou por uma das mais horríveis experiências
humana. Devido a um aperto financeiro, entra em crise de depressão. Isolado,
achando-se no abandono total, aprofunda-se cada vez mais numa imaginária toca.
A ajuda de repente chega e o levam para Fortaleza em busca de cura. Na sala de
um psiquiatra, subitamente dois seguranças o agarram e jogam no bojo de um
horrível manicômio. Amarga o desespero dos desesperos, entre dementes de todas
as espécies, mas o susto trás sua sanidade de volta e um dos guardas percebe
que aquele paciente, de conversa equilibrada, não é louco, e faz tudo para tirá-lo
daquela situação. (O cidadão Louro da cruz, com os olhos lagrimejando, disse-me:
”— Raimundo, hoje eu sei que só o inimigo é que nunca nos trai.” Ali, em
sincera confissão, eu vi uma longa dor e uma grande mágoa escoarem da alma de um
incansável e honrado trabalhador). Matutando seriamente no que me disse Juracy,
lembrei-me de um velho amigo que nunca me traiu, meu inseparável silêncio.
Aproveito a ocasião e faço uma
pergunta para matar uma curiosidade: — Juracy, o povo diz que você, quando não
mais existir, deixará todo seu patrimônio para a Igreja, é verdade?
Solta um disfarçado sorriso
que lhe escapole da face e me esclarece:
- Não, eu nunca disse isso,
mas quando eu morrer pretendo deixar tudo que tenho numa organização para
promover o bem-estar e a alegria das crianças pobres da minha cidade!
Despeço-me deste grande
promotor da felicidade e antes que parta, ele ainda me diz:
— Raimundo, eu sou candidato a vereador nessa
eleição, pelo Partido Verde, e conto com seu voto!
Afirmo como seria bom termos
um vereador daquela qualidade nos representando no legislativo municipal, ele que
já faz muito pelo povo, fomentando alegria. E me vem à mente a criança sonhadora
que ia à escola da dona Delite, mostrando agora uma serenidade de padre, mesmo
sendo um animador de festas, de danças e de músicas. Sempre acreditei no
significado dos nomes próprios que corroboram nossa existência, pois Juracy que
dizer aquele que faz o bem e mesmo assim eu lhe acrescentaria um Duney, o
Duende da alegria. Que a Consciência Eleitoral de Crateús te coloque sentando
numa cadeira da câmara dos vereadores, Juracy Duney do Partido Verde, uma
associação de duendes, propícia aos espíritos fortes, honestos e trabalhadores
como convém ao Mago da Alegria, chamado Louro da Cruz.
Raimundo Candido
José Alberto de Souza disse...
José Alberto de Souza disse...
Silas Falcão disse...
Parabéns, poeta. Belíssima crônica. Já guardei nos meus arquivos.
Silas Falcão, membro da Academia de Letras de Crateús.