sábado, 18 de abril de 2015

Mestre Erasmo – O Contador de Histórias.


A Rua Marechal Hermes é como um afluente do Rio Poti, caminha paralelo à linha do trem e desemborca numa pedregosa passagem que leva ao agitado Bairro da Ilha. Aquela trilha pétrea é usada somente por quem não quer se arriscar a transpor o leito do rio pela perigosa ponte de ferro, ali ao lado, suspensa na largura do rio.  Mas, na curta rua que leva o nome de um militar que nunca soube da existência da cidade de Crathéus, a casa de número 63, com uma imponente fachada adornada com frisos clássicos, em alto relevo, com duas árvores bem sombreadas na frente, é o lar do Senhor Erasmo Moraes Cavalcante, barbeiro de profissão e guardião das pitorescas histórias da cidade. Um privilégio que a natureza lhe concedeu, pois é dono de uma gigantesca memória. Ao meio dia, ou à noitinha, após uma sagrada caminhada, o mestre se deleita ao ouvir as suas músicas preferidas, as serestas de Carlos Galhardo, os grandes sucessos de Cascatinha e inhana, o afinado violão de Dilermando Reis, os boleros de Carlos José e a melodia “Naquela Mesa” na voz de Nelson Gonçalves: “Naquela mesa ele sentava sempre / E me dizia sempre o que é viver melhor / Naquela mesa ele contava histórias / Que hoje na memória eu guardo e sei de cor...” Nestas horas, na certa, lembra-se das histórias que ouvira dos mais velhos, como as que seu avô lhe contava, o senhor Raimundo Marques de Pinho.
Com paciente disposição, como se fosse a um prazeroso passeio, atravessa o pátio de manobras dos trens, na Praça da Estação e se dirige ao salão “O Mestre Belo” no velho Beco da Cachaça, recinto que pertencera ao barbeiro Anicéforo, ao mestre Mundoca, depois ao mestre Vicente, e em seguida ao mestre Belo, e onde trabalha agora, diuturnamente, desde 1969.
Nós, os fregueses do mais famoso barbeiro de Crateús, o procuramos não só pela eficiência no trato com a barba e o cabelo, mas para ter o privilégio de ouvir um dos melhores contadores de histórias da cidade, com narrações pitorescas recheadas de lances teatrais de bom humor, como excelente ator que ele é.
 - Raimundo, neste salão aqui, em 1938, aconteceu um crime horrível. Assim começa o mestre Erasmo uma de suas saborosas histórias.
- Quando pertencia ao Anicéforo, existiam uns sapateiros que trabalhavam encostado nesta parede, aí atrás. Mariinha, a bonita amante do senhor Amadeus Martins, insistia em cortar o cabelo com o Mundoca, mesmo já tendo sido advertida pelo seu enciumado dono: “Procure uma mulher para cortar o seu cabelo. Não quero ver o Mundoca lhe alisando os cachos, não! Dou-lhe uma grande surra e ainda mato aquele cabra sem vergonha!” A amante era corajosa e teimosa, sempre voltava ao salão para cortar o cabelo. Um dia ele perguntou: “Aonde foi que você cortou o cabelo?” Ela respondeu, sem medo: “Ora, você já sabe que foi lá no Mundoca!” O Amadeus deu uma pisa na amante e partiu para o Beco da Estação. Da esquina da casa do Senhor Jacó de Melo, ele gritou ao Mundoca, que estava na porta da barbearia: “Hoje é o teu dia, cabra!” O barbeiro entrou rápido e pegou uma navalha, mas o Amadeus já foi entrando no salão e os dois se atracaram. A faca e a navalha retalhavam facilmente os coros dos dois intrépidos cidadãos que o sangue escorria pelo chão, foi quando Amadeus escorregou num pau de sapateiro e a sua própria faca o perfurou, na virilha. Amadeus foi acabar de morrer em frente a cada de seu Benjamim Machado, e o Mundoca passou dias deitado numa rede, com o sangue pingando numa cuia.
Dali, da barbearia de Erasmo, se ouvia a algazarra de um comício político no Clube Sargento Hermínio, o que fez com que o Mestre Erasmo relatasse outras de suas histórias.
- Um dia chegou um Senhor de olhos claros, bem aí nesta porta, e perguntou: “Vocês conhecem o Carlos Jereissati? Pois está aqui ele! Vou só ali, comprar uma carteira de cigarros e já volto para fazer a barba.” De outra vez foi o Cel. Virgílio Távora, que viera assistir a uma missa celebrada por Dom Fragoso, estava hospedado na casa de Dona Leonete Camerino, e confidenciou: - A Dona Leonete me disse que é aqui que eu posso encontrar o melhor barbeiro da cidade. Respondi: – Pois entre Coronel, aqui está ele, Erasmo, às suas ordens! Ao terminar a barba do Virgílio, eu disse: - Senador, a barba do senhor agora está mais lisa que bunda de menina nova! 
O Barbeiro da Rua Cel. Zezé se empolga mesmo é quando fala do politico, advogado, grande orador crateuense e seu amigo João Afonso de Almeida Vale. “– O João Afonso, enquanto namorava a Dona mariquinha, filha do Cel. Tobias, perdia até as horas. Um dia, o relógio da parede marcou 10 horas da noite e ele sem dá sinal de que ia embora. Foi quando o Coronel, num ímpeto, disse para a filha: - Ó, Mariquinha, abra o baú e tire uma rede para esse rapaz dormir, pois já está tarde! O João aproveitou a deixa, e fez o que pretendia, há muito tempo: - Ó, Coronel Tobias, eu lhe agradeço a generosidade, mas já estou indo embora. Agora, aproveitando a humildade com que se mostra, peço a mão da sua filha em casamento.”
Erasmo conclui, mais admirado que o próprio pretendente a mão de Mariquinha: - E não foi, Raimundo, que o velho coronel deu mesmo a mão da filha em casamento ao João!!!
Quem quiser ouvir as histórias de um Cratheús antigo é só dá um mote, ou mostrar a ponta do fio que ele desenrola o novelo todo. Indaguei: - Com quem foi que esses políticos crateuenses aprenderam tantas raposices para usar num sertão brabo deste? Seu Erasmo mostrou um disfarçado sorriso de satisfação, como se tivesse a resposta do segredo e tinha mesmo. – Ora, ora Raimundo, a UDN vinha de quatro eleições seguidas que só apanhava. Dizem que a ideia foi do Cel. Giló, em mandar buscar uma raposa velha lá da cidade do Ipu. E chegou, na Maria Fumaça, o Major Auton Aragão. Foi como se contratasse o Pelé para um time de futebol, ele tomou conta de tudo, tinha o faro político, sabia tramar para que as coisas acontecessem.
Erasmo conta a história percebendo a interesse dos fregueses, ali sentado, a aguardar a vez para o corte de cabelo: - O Major, após ensinar o pulo do gato para alguns políticos do seu partido, resolve voltar para sua terra, dizia para os amigos “Cumpri minha missão aqui, na terra do Rio Poti, e agora vou morrer no meu Ipu!” Os adversários ficaram sem acreditar que a raposa ia mesmo embora, diziam: - Ele vai lá nada, duvido que ele encontre uma terra melhor que esta aqui!”. Outros praguejavam: “Vai sim! Vai e vai mesmo! E o diabo é que o leve!”
No dia da saída, a alta cúpula da UDN estava presente na Estação, para a despedida e a oposição só espiando, de longe, para ter certeza da partida. Foi quando apareceu um coronelzão destes do interior, montado num cavalo fogoso, deu uma chicotada nos lombos do bicho, para chamar atenção mesmo e falou: - Mas compadre Major Auton, que desgraça vossa mercê vai fazer com a gente. Vai embora e não deixa um homem de bem para nos acudir!
 O Coronel da Guarda Nacional, comerciante arrojado e experiente raposa politica, respondeu: - Calma, Coronel, em Cratheús vai ficando uns homens de bem, sim! Olhe, quando você precisar arregaçar um, esquartejar outro, abrir as bandas mesmo, está aqui o compadre Zé Bezerra Farias; quando você precisar tomar conselho de um cidadão de bem, um cidadão pacato e honesto, está aqui o compadre Francisco Mariano Lins Cavalcante; quando precisar de um cabra sem vergonha, mentiroso, traficante, trapaceiro está aqui o compadre João Afonso de Almeida Vale. Está vendo como aqui fica gente boa? E se mandou, na lerda Maria Fumaça, para as bandas do Ipu.
De vez em quando me olho no espelho, para ver se o cabelo não está no ponto de um novo corte, então me dirijo ao Salão “O Mestre Belo”, com os ouvidos bem atentos, preparado para o encantamento da arte de quem vive a sua vida como se fosse a relatar um causo, o grande mestre Erasmo, o melhor barbeiro-contador de história dos sertões de Cratheús.


Raimundo Cândido

quinta-feira, 16 de abril de 2015

A Rua FM - ♫ A luz do cabaré .... ♪

                             
Ali, da nave da Igrejinha de São Francisco, ao lado do Mercado do Peixe, em pleno burburinho da Feira Livre, o venerável Padre Alfredinho enquanto rezava pela alma de Antonieta, a prostituta tuberculosa, via, nas duras missões e nas pesadas cruzes das pessoas que iam e vinham com suas incumbências transitórias, o velho mundo insano mesclando o sal do sagrado com o doce do profano, em plena luz do dia, para o clímax das noites.
                A noite dos cabarés que nunca findou, com os seus “paraísos” e as suas “fogueiras” eternas numa cama de um quarto qualquer. Eles nunca deixarão de existir, estão somente se adaptando aos novos dias. Os costumes e os comportamentos arrefeceram os bordeis que vão perdendo espaço, estão, lentamente, se turvando no bojo do tempo. Os estudiosos do comportamento sexual dizem que a sociedade incorporou, no seu seio aconchegante, o modo permissivo de uma vida liberada, até com forma de controle dos filhos. Uma jovem dormir com o namorado, na casa dos pais é, hoje, a coisa mais natural do mundo e com uma rotatividade digna das grandes raparigas dos velhos cabarés de antigamente. Com uma concorrência desta não há zona que aguente!
Não sei se o Pe. Alfredinho, com sua humildade santa, ao socorrer a puta Antonieta, salvou-a, mas algumas sementinhas dos históricos bordeis crateuenses estão a salvo. Da Rua Cel. Totó, na dinâmica Feira do Peixe, subindo pela Rua Francisco Mariano, a famosa Rua FM, até a Rua Tabelião Francisco Antero, é só um pequeno quarteirão que está repleto de lupanares com suas mercadorias ofertadas à luz do dia, enquanto as patacas das cirandas financeiras circulam pela cidade.
São casinhas simples, coloridas, discretas, com as meninas sentadas nas cadeiras da calçada. A sala da frente é um convidativo bar, uma mesinha e o propício som estimulando o solitário cidadão que está a precisar de um obsequioso e carinhoso serviço contratual.
O endereço é, também, adaptado aos novos tempos, nenhum é bordel, aparentemente: É a casa da Noemia com suas meninas, a casa da Helena, da Fransquinha, da Paulona, da Dona Lurdes, da Dilva, o Bar do Aldemir e outros recintos que se assemelham a aconchegantes lares.
A agitação é até a última hora em que os transportes do interior ainda estão circulando pela cidade, em plena luz do dia. A própria mãe de todas as prostitutas, a Semíramis, uma deusa que queria ser a própria lua, fundadora da cidade de Babilônia, estranharia esse hábito incomum, um circo dos amores à luz do dia! Até as meretrizes deixaram de ser esvoaçadas mariposas.
Percebem-se moças que circulam pelas calçadas, atravessam a estreita rua, como se em vitrines dos bordeis da Cidade do Amor, a Ilha de Florianópolis. Se não se conhece, passa-se por uma rua qualquer da cidade, com seu ardor e seu labor.
Mal o tímido cidadão senta-se na cadeira, uma andorinha se achega, e não perde tempo, pois, no brilho do sol, cada instante refulge como a dinheiro vivo e, nas buchas, o convida: - Vamos namorar? É assim, direto, e sem perda de um segundo a mais, dirigem-se a um quarto ali aos fundos do lupanar crateuense, em pleno liberal e socialista século XXI.
Ao abrir da porta do quarto um cheiro característico chega ao olfato, o odor dos supérfluos amores que fica no ar, num incitamento da deusa dos pecados e ainda mais o rigor do apetite sexual se aguça. Um quartinho com um pequeno banheiro no canto, uma surrada cama de casal com uma rota colcha a convidar à volúpia, à lubricidade, à lascívia. Ao instante fugaz e momentâneo, sim, ao amor e à paixão, não!
De uma caixa de som, dependurada na parede, a música Boate Azul, na voz de Bruno e Marrone vibra no ar: “Doente de amor procurei remédio na vida noturna / Como a flor da noite em uma boate aqui na zona sul / A dor do amor é com outro amor que a gente cura / Vim curar a dor deste mal de amor na boate azul.”  No exato instante em que a andorinha se prepara para o momento primordial da humanidade é o instante em que damos corda na vida. Ali, vendo aberta a máquina do mundo, ofertada, com todos os mistérios despetalados como uma melodia ovidiana, como uma poesia remota, sente-se que o coração é um bordel gótico onde se prostituem as ninfetas decidas. Dama da noite, cuja profissão é alugar a flor enraizada da vida, em consequência de uma vil miséria, de um cruel abandono, e ainda levar no corpo a culpa de todos os pecados, ó injustiça!   
Mas todas as mulheres, santas ou putas, sem exceção, são perfumes, são pétalas, são espinhos... Ofertadas numa taça repleta de mel e de fel, com o gosto do sagrado, com o sabor do profano onde perdemos o natural equilíbrio, pelo sublime inebriamento das paixões e por uma overdose de prazer e de vida.
E nem o santo Pe. Alfredinho, nem o rígido Coronel Francisco Mariano sonhariam, um dia, com a sobrevivência da rua dos amores no centro da cidade, a rua dos desejos profanos, do amor carnal, mas como uma firme coluna que a tudo sustenta, desde que o mundo é mundo.
E pelas esquinas da Rua Francisco Mariano, enquanto inocentes crianças brincam de bilas pelas esquinas e no malfeito calçamento transitam motos, bicicletas, caros num vai-e-vem constante, a FM cumpre sua sobrenatural missão na existência dos bordeis, com a força das brumas do passado trazendo a exuberância dos velhos lupanares para o presente na histórica cidade de Cratheús que de há muito tempo, além de recinto de prostitutas, é uma cândida urbe prostituída.

Raimundo Cândido