A Rua Marechal Hermes é como
um afluente do Rio Poti, caminha paralelo à linha do trem e desemborca numa pedregosa
passagem que leva ao agitado Bairro da Ilha. Aquela trilha pétrea é usada
somente por quem não quer se arriscar a transpor o leito do rio pela perigosa ponte
de ferro, ali ao lado, suspensa na largura do rio. Mas, na curta rua que leva o nome de um
militar que nunca soube da existência da cidade de Crathéus, a casa de número 63,
com uma imponente fachada adornada com frisos clássicos, em alto relevo, com duas
árvores bem sombreadas na frente, é o lar do Senhor Erasmo Moraes Cavalcante,
barbeiro de profissão e guardião das pitorescas histórias da cidade. Um
privilégio que a natureza lhe concedeu, pois é dono de uma gigantesca memória.
Ao meio dia, ou à noitinha, após uma sagrada caminhada, o mestre se deleita ao
ouvir as suas músicas preferidas, as serestas de Carlos Galhardo, os grandes
sucessos de Cascatinha e inhana, o afinado violão de Dilermando Reis, os
boleros de Carlos José e a melodia “Naquela Mesa” na voz de Nelson Gonçalves:
“Naquela mesa ele sentava sempre / E me dizia sempre o que é viver melhor / Naquela
mesa ele contava histórias / Que hoje na memória eu guardo e sei de cor...”
Nestas horas, na certa, lembra-se das histórias que ouvira dos mais velhos,
como as que seu avô lhe contava, o senhor Raimundo Marques de Pinho.
Com paciente disposição, como
se fosse a um prazeroso passeio, atravessa o pátio de manobras dos trens, na Praça
da Estação e se dirige ao salão “O Mestre Belo” no velho Beco da Cachaça, recinto
que pertencera ao barbeiro Anicéforo, ao mestre Mundoca, depois ao mestre
Vicente, e em seguida ao mestre Belo, e onde trabalha agora, diuturnamente,
desde 1969.
Nós, os fregueses do mais
famoso barbeiro de Crateús, o procuramos não só pela eficiência no trato com a
barba e o cabelo, mas para ter o privilégio de ouvir um dos melhores contadores
de histórias da cidade, com narrações pitorescas recheadas de lances teatrais de
bom humor, como excelente ator que ele é.
- Raimundo, neste salão aqui, em 1938, aconteceu
um crime horrível. Assim começa o mestre Erasmo uma de suas saborosas histórias.
- Quando pertencia ao Anicéforo,
existiam uns sapateiros que trabalhavam encostado nesta parede, aí atrás.
Mariinha, a bonita amante do senhor Amadeus Martins, insistia em cortar o cabelo
com o Mundoca, mesmo já tendo sido advertida pelo seu enciumado dono: “Procure
uma mulher para cortar o seu cabelo. Não quero ver o Mundoca lhe alisando os
cachos, não! Dou-lhe uma grande surra e ainda mato aquele cabra sem vergonha!” A
amante era corajosa e teimosa, sempre voltava ao salão para cortar o cabelo. Um
dia ele perguntou: “Aonde foi que você cortou o cabelo?” Ela respondeu, sem medo:
“Ora, você já sabe que foi lá no Mundoca!” O Amadeus deu uma pisa na amante e
partiu para o Beco da Estação. Da esquina da casa do Senhor Jacó de Melo, ele
gritou ao Mundoca, que estava na porta da barbearia: “Hoje é o teu dia, cabra!”
O barbeiro entrou rápido e pegou uma navalha, mas o Amadeus já foi entrando no
salão e os dois se atracaram. A faca e a navalha retalhavam facilmente os coros
dos dois intrépidos cidadãos que o sangue escorria pelo chão, foi quando
Amadeus escorregou num pau de sapateiro e a sua própria faca o perfurou, na
virilha. Amadeus foi acabar de morrer em frente a cada de seu Benjamim Machado,
e o Mundoca passou dias deitado numa rede, com o sangue pingando numa cuia.
Dali, da barbearia de Erasmo,
se ouvia a algazarra de um comício político no Clube Sargento Hermínio, o que
fez com que o Mestre Erasmo relatasse outras de suas histórias.
- Um dia chegou um Senhor de
olhos claros, bem aí nesta porta, e perguntou: “Vocês conhecem o Carlos
Jereissati? Pois está aqui ele! Vou só ali, comprar uma carteira de cigarros e
já volto para fazer a barba.” De outra vez foi o Cel. Virgílio Távora, que
viera assistir a uma missa celebrada por Dom Fragoso, estava hospedado na casa
de Dona Leonete Camerino, e confidenciou: - A Dona Leonete me disse que é aqui
que eu posso encontrar o melhor barbeiro da cidade. Respondi: – Pois entre Coronel,
aqui está ele, Erasmo, às suas ordens! Ao terminar a barba do Virgílio, eu
disse: - Senador, a barba do senhor agora está mais lisa que bunda de menina
nova!
O Barbeiro da Rua Cel. Zezé se
empolga mesmo é quando fala do politico, advogado, grande orador crateuense e seu
amigo João Afonso de Almeida Vale. “– O João Afonso, enquanto namorava a Dona
mariquinha, filha do Cel. Tobias, perdia até as horas. Um dia, o relógio da
parede marcou 10 horas da noite e ele sem dá sinal de que ia embora. Foi quando
o Coronel, num ímpeto, disse para a filha: - Ó, Mariquinha, abra o baú e tire
uma rede para esse rapaz dormir, pois já está tarde! O João aproveitou a deixa,
e fez o que pretendia, há muito tempo: - Ó, Coronel Tobias, eu lhe agradeço a
generosidade, mas já estou indo embora. Agora, aproveitando a humildade com que
se mostra, peço a mão da sua filha em casamento.”
Erasmo conclui, mais admirado
que o próprio pretendente a mão de Mariquinha: - E não foi, Raimundo, que o
velho coronel deu mesmo a mão da filha em casamento ao João!!!
Quem quiser ouvir as histórias
de um Cratheús antigo é só dá um mote, ou mostrar a ponta do fio que ele
desenrola o novelo todo. Indaguei: - Com quem foi que esses políticos
crateuenses aprenderam tantas raposices para usar num sertão brabo deste? Seu
Erasmo mostrou um disfarçado sorriso de satisfação, como se tivesse a resposta
do segredo e tinha mesmo. – Ora, ora Raimundo, a UDN vinha de quatro eleições
seguidas que só apanhava. Dizem que a ideia foi do Cel. Giló, em mandar buscar
uma raposa velha lá da cidade do Ipu. E chegou, na Maria Fumaça, o Major Auton
Aragão. Foi como se contratasse o Pelé para um time de futebol, ele tomou conta
de tudo, tinha o faro político, sabia tramar para que as coisas acontecessem.
Erasmo conta a história
percebendo a interesse dos fregueses, ali sentado, a aguardar a vez para o
corte de cabelo: - O Major, após ensinar o pulo do gato para alguns políticos
do seu partido, resolve voltar para sua terra, dizia para os amigos “Cumpri
minha missão aqui, na terra do Rio Poti, e agora vou morrer no meu Ipu!” Os
adversários ficaram sem acreditar que a raposa ia mesmo embora, diziam: - Ele
vai lá nada, duvido que ele encontre uma terra melhor que esta aqui!”. Outros praguejavam:
“Vai sim! Vai e vai mesmo! E o diabo é que o leve!”
No dia da saída, a alta cúpula
da UDN estava presente na Estação, para a despedida e a oposição só espiando,
de longe, para ter certeza da partida. Foi quando apareceu um coronelzão destes
do interior, montado num cavalo fogoso, deu uma chicotada nos lombos do bicho, para
chamar atenção mesmo e falou: - Mas compadre Major Auton, que desgraça vossa
mercê vai fazer com a gente. Vai embora e não deixa um homem de bem para nos
acudir!
O Coronel da Guarda Nacional, comerciante
arrojado e experiente raposa politica, respondeu: - Calma, Coronel, em Cratheús
vai ficando uns homens de bem, sim! Olhe, quando você precisar arregaçar um,
esquartejar outro, abrir as bandas mesmo, está aqui o compadre Zé Bezerra
Farias; quando você precisar tomar conselho de um cidadão de bem, um cidadão pacato
e honesto, está aqui o compadre Francisco Mariano Lins Cavalcante; quando
precisar de um cabra sem vergonha, mentiroso, traficante, trapaceiro está aqui
o compadre João Afonso de Almeida Vale. Está vendo como aqui fica gente boa? E
se mandou, na lerda Maria Fumaça, para as bandas do Ipu.
De vez em quando me olho no
espelho, para ver se o cabelo não está no ponto de um novo corte, então me
dirijo ao Salão “O Mestre Belo”, com os ouvidos bem atentos, preparado para o
encantamento da arte de quem vive a sua vida como se fosse a relatar um causo,
o grande mestre Erasmo, o melhor barbeiro-contador de história dos sertões de
Cratheús.
Raimundo Cândido