quinta-feira, 19 de maio de 2011

...............................Cem anos de melancolia.

.........Desperto na leveza de hoje, usufruindo o melodioso sabor da minha cidade que já se espreguiça na lentidão de quem carrega cem anos de melancolia. Pelas venezianas entram os primeiros ruídos de um dia que me traz em seus tons uma aragem de suaves imagens como num poético jornal matutino.
..........Distingo os mesmos passos leves que vem deslizando pela calçada, a caminho da padaria e que logo voltarão na mesma marcha ainda comentando um invariável futebol, bradando que seu time está sem brilho para se antecipar ao desdém que por acaso surja de algum oponente.
.........Ouço meu amigo Paulo com seu longo rosto triste, como se vestisse uma máscara, passeando em sua homeopática caminhada, arrastando seu eterno carrinho de dores. O Jardineiro, incumbido do zelo e brilho da praça, já despertou os pássaros com sua voz de malhar ferro em algazarra. Recordo-me que foram encravadas umas mudas de plantas como promessa de copiosas sombras para deleite de meu palpitoso coração, e até agradeço ao meu amigo Wanderley, protetor das árvores, descendente direto da linhagem dos curupiras.
...........Um mesmo gari caricato vem tangendo o pedroso calçamento, catando dispersos papeis jogados por um desleixado citadino e algumas tampinhas esquecidas pelas crianças em suas brincadeiras pueris, mas deixa no chão a raiz do dia que vai nascendo manso e vai crescendo rápido, vai engolindo quieto cada segundo, cada minuto desta quadra de maio que ainda traz os húmus de um inverno de abril para meus neblinados olhos. Saboreio devagar estes bons e aprazíveis dias, pois sei que logo passarão para vir os famigerados B.R.O brós cheios de horas esturricantes, abafando tudo e a todos com seus sopros de dragão.
...........Capto um brrrummm de uma nem tão ruidosa moto que passa me dizendo que é hora de ergue-me ao meu pacato mundo, ao meu infalível dia, que eu mesmo faço, sereno e tranquilo.
..........Algumas vezes amanheci ouvindo os sons de outras distantes cidades, em outros lugares que se dizem repleto de encantos, de esplendores com seus monumentos erguidos aos céus, com suas paredes pintadas no vidro, desenhadas em ouro e encrostadas em falsos brilhantes, mas para mim, suscita-se num dia arcaico, grotesco, perverso abrindo-se como se uma máquina de imensa boca engolisse o mundo com uma fome de prosperidade exacerbada, arrancada da pele dos homens, das mulheres, das crianças que estão muito bem atados a uma linha de tempo impiedoso, severo e tirano. Tive compaixão do padecer daqueles cidadãos que por ali perduram, como se escravos fossem.
.........Volto a olhar pelas frinchas de minha veneziana e vejo que há uma felicidade em ser triste, na serena e doce vida desta velada melancolia que só existe aqui, onde sou parte inacabada deste meu lugar. Minha cidade é minha solidão que me povoa e que me habita. Meu mundo é feito de águas quietas e revoltas que passam como um rio por minha sôfrega janela, com suas aflitas horas de transbordantes cheias ou como  momentos sem o mínimo apetite e que aquaticamente me deixam totalmente vazio.

Raimundo Candido
http://www.raimundinho.hpg.com.br/

Luciano Bonfim disse...
Poeta, nestes cem anos de melancolia de nossa cidade deve ter um bocado considerável desse tempo distribuído/navegado pelo descaso, corrupção e outras mazelas que assolam o país - e a nossa região - vide os noticiários e a própria imagem e auto-estima da cidade. Abraços.
Luciano Bonfim
Domingo, 22 Maio, 2011

domingo, 15 de maio de 2011

O ENCANTO DO CANTAR

João Elias

Canto encolhido no canto;
levo o ritmo cá no peito.
Só sei cantar desse jeito,
mas é o jeito cantar.

Se não cantar, desencanto,
me abandona inteiro a alma;
uma canção me acalma,
assim eu devo cantar.

Se caído, eu levanto;
sou transportado ao passado,
pela canção fui curado.
Por que parar de cantar?

Às vezes fico cantando,
não percebo minhas mágoas.
Direto assim como as águas,
não suspendo o meu cantar.

Vêm as noites de saudades,
aqueles tristes momentos,
nos flechais me cantam os ventos:
é a solidão a cantar.

O Sertão seco é tristeza;
a chuva traz alegria,
canta o carão, canta a jia:
é a Natureza a cantar.

Tange a boiada o vaqueiro,
cada chocalho é um tom.
Passa o tempo, fica o som;
até aço quer cantar.

Range o galho do pau-branco,
a palha da carnaúba,
o pingo choco da chuva...
Ô floresta pra cantar!

O sabiá canta a mata;
o galo, o amanhecer.
Eu quero cantar você;
não resista ao meu cantar.

Há cantiga em toda parte.
Quem canta tem o porquê.
Vou cantar para você;
vem curtir o meu cantar.



ESCRITORES


ESCRITORES



I - Esses viventes estranhos, metidos a querer saber de quase tudo, a ser “antenas da raça”. São seres falíveis, feito quaisquer unzinhos; cheios de defeitos, pululam por aí emitindo opiniões sobre o planeta e arredores. Dariam uma enciclopédia em cem volumes todas as previsões, dicas e besteiras que proferiram pelos tempos afora.

A mim me (sic) parece serem apenas pequenos seres inofensivos, cavilosos, vaidosos, mas inofensivos. Raros escrevem algum livro que mudam uma geração, poucos lançam palavras que se sustem no vento.

Mas quão triste seria o mundo sem esses vermezinhos feitos de ira, vaidade e água.

II – Me irrito profundamente quando escuto ou leio alguém reclamando da enorme quantidade de escritores e lançamentos de livros em nossa volúvel loirinha desmazelada pelo sol (esses mesmos jamais reclamam da enorme quantidade de políticos ladrões, marginais de toda sorte, péssimos profissionais e outras mazelas mais que inundam nossa vã sociedade).

Se for escritor o reclamante imagino logo que o sujeito quereria ser escritor sozinho e que se acha infinitivamente melhor do que os outros (o que não se confirma na maioria das vezes).

Caso seja um jornalista o criticante vejo com piores olhos ainda, visto serem os profissionais que mais deveriam valorizar a classe dos escritores (que todos, mesmos o fazedor de horóscopo, deveriam almejar ser; e não raro são os que mais inflacionam o mercado com obras dispensáveis e medíocres).


III – Adoro lançamento e se pudesse iria a todos.

E são raras as semanas em que não vou prestigiar um amigo, um desconhecido ou até antipatizante, com minha gordita presença em sua noite de autógrafo.


Verdade que detesto discurso e apresentações, e a primeira coisa que observo num palestrante é a quantidade de página em suas mãos.


O resto é só festa, reencontro de amigos, rebuliço de gente, corrida atrás dos quitutes e bebidas; de gente, em sua maioria, de bem (o que não se pode afirmar de muitas reuniões sociais, clubes granfinos e convenções de partidos).


Portanto, amigos, escrevam bastante e tentem fazê-lo cada vez melhor; pois se seus escritos não ajudarem a tornar melhor o mundo, com certeza não o tornará pior.


Por Pedro Salgueiro, colunista O Povo