quinta-feira, 25 de junho de 2015

Os Contos do Assis

               
                                                    

Um dia, eu tenho quase certeza, o valor da poesia, como fonte inesgotável de aprendizagem, fará a humanidade proferir os grandes poetas, todos os dias e o dia todo. E foi essa valia que levou Cora Coralina, como poetisa, a afirmar: “Feliz aquele que poetiza o que sabe e verseja o que ensina.” Não tenho convicção das exatas palavras desta sábia goiana, mas a intensão foi essa! Cora, como uma mestra doceira, também saboreava o que ensinava, nas suas doces explanações poéticas.
Sou professor e leciono num colégio especial, um distinto e imprescindível templo de ensino para jovens, adultos, idosos e pessoas diferenciadas que não tiveram oportunidade de concluir os estudos no tempo certo. Peculiar, tanto pela forma de ensinar, como pela forma de aprender, o Centro de Educação de Jovens e Adultos Professor Luiz Bezerra é um colégio diversificado, pois exerce poeticamente a educação do futuro.
O Ceja seduz até os vates com inesgotável sede de saber. Como o Cimar Melo, um arguto poeta do Distrito de Assis e um dos cimos das tradições e da cultura do sertão crateuense que resolveu continuar seus estudos abraçando a oportunidade da EJA. Além dos conceitos pitagóricos e euclidianos, nos estendemos pelas lembranças históricas do singelo interior de onde ele nasceu, o Distrito de Assis. Até recitou um dos seus belos versos, onde canta o encanto do seu torrão: “Neste conto que eu te conto / peço nada descontar / Pois os contos que eu te conto / eu vou contar bem devagar / São contos que aconteceram em meu querido lugar....” Além do pasmo na alma, da aliteração do poema, convida-me para ir ao povoado de Assis, ouvir, in loco, os contos do povo de lá.
- Vamos, Raimundo. Você vai ouvir as sapiências do seu Manoel Otaviano que conta história como se fosse o vento assoviando nos nossos ouvidos. E ainda tem Seu Antônio Rosendo, o Novinho, e desse, com certeza, você vai gostar!
Concordei e partimos pela velha Central, agora a bem asfaltada BR 404, rumo ao Curral Velho dos Bonfins e, antes de chegarmos à ponte do valente Riacho Serrote, dobramos à esquerda, pegando uma estradinha de terra batida. Em todas as localidades por onde passamos, Curral Velho, Mudubim, Curral Queimado, Santo Antônio dos Manos, Mororó e Canudos, vimos os velhos casarões, como que a nos relatar um passado de árduas lutas e alegres triunfos por terem sucedidos, e de pé, para suas histórias nos contar. Casarões que muito admiro, mas com uma pena de vê-los, assim, tão arruinados.
Por fim, chegamos ao lar do Senhor Manoel Otaviano e, como todo nordestino ativo, me desperta admiração, pois não sei de que material eles são feitos, é como se fossem só o motor de um carro a funcionar sem parar. Uma prontidão no olhar, como se vivessem na iminência de qualquer coisa por acontecer, uma hiperatividade que espanta na alma sertaneja.  Apresenta-nos a esposa e pede que ela nos prepare um cafezinho. Ele mesmo toma a iniciativa do início da conversa, corroborando o que eu pensava:
- Seu Raimundo, deixe-lhe mostrar uma curiosidade que eu tenho guardado aqui em casa.  E coloca em minha mão uma pedra branca, polida como uma machadinha. Diz:
- Isto é um Corisco. É uma Pedra de Raio que encontrei quando trabalhava construindo os açudes na época dos bolsões da seca. Somente de sete em sete anos é que essas pedras aparecem, nos mesmos locais em que raios caíram.
 Lembrei-me dos artefatos líticos confeccionados pelos homens da idade da pedra polida. Mas estava ali para ouvi-lo e ele continuou a narrar as histórias do Assis.
- Já vi muita coisa feia, nas chuvas grandes e nos clarões dos raios, Seu Raimundo. Vi um corisco cair num pau-branco, desta grossura (Seus braços fizeram um grande círculo no ar!) e de longe a gente só via o facho pegando fogo. Aquela pedra só iria aparecer depois de sete anos!
Falei dos casarões, e ele me disse o nome dos primeiros donos de todos eles.
- O da Fazenda Angicos foi do Cel. Luiz Severino Dias, pai do Seu Raimundo Dias. O casarão mais antigo da região já foi derrubado, era do Cap. Cesário das Flores, dono de quase toda região, daqui até a carnaúba de galho era tudo dele, mas era uma pessoa ruim, de índole perversa, que além de ser paralítico, deixava uma garrucha armada e um fação amolado, de prontidão, debaixo da rede. Ali, na Barra do Rio, vocês passaram pelo casarão do Senhor Teteiro, que gostava de corrida de cavalos, lembram-se dele? E continua a prosa saborosa:
- As grandes terras, hoje, Seu Raimundo, estão na mão de muita gente e poucos sabem lidar com elas e bem menos ainda tem coragem de trabalhar. Aqui mesmo, bem perto da gente, tem uma família com três jovens, fortes e sadios, que vivem da esmola de governo, e não possuem uma espiga para quebrar. Tenho 78 anos e ainda cuido de duas roças com milho e feijão branco, o zebu, que vai dar para minha família comer por três anos. Eu mesmo broco, planto, limpo, colho e todo dia às 4 da manhã já tenho feito o café e me mando para a roça. Ando 10 km de bicicleta, todo dia e, na caminhada, poucos jovens me acompanham. Vou lhe ensinar uma coisa importante, seu Raimundo, nunca diga “Eu queria”, diga sempre “ Eu quero!” Assim Deus ouve.
O cheiro do café torrado chegou à sala e deu uma pausa na conversa, para melhor saboreá-lo, era um café puro, forte e quente. Depois o bate-papo continuou.
 – Quando eu trabalhei para o Dr. Abdoral Machado, nas lagoas, tudo era comigo, do comando dos homens até cubar o plantio das terras. Hoje, aquilo tudo pertence a um assentamento e é uma inutilidade total.
Seu Manoel me proporcionou uma belíssima aula de matemática do campo: Uma terça são 10 litros e dá para 50 braças. Uma tarefa são 25 braças por 25 braças e se você vai plantar duas tarefas jogue 25 por 50 com 5 litros de milho. Aqui no Assis, antes da chegada do bicudo, a gente colhia 800 arroubas de algodão, era uma roça sem marca de bonita, Seu Raimundo. Uma arrouba são 15 quilos, você sabe, né?
Agora entendi como ficam os coitados dos meus alunos quando explico o funcionamento de uma função trigonométrica. Ali, na casa de Seu Manoel, eu já estava tonto! Alívio foi quando o Cimar pediu licença para irmos conhecer o tal de Novinho.
Uma das coisas que o Assis não fica devendo ao Distrito da Ibiapaba são os porcos passeando no meio da rua. São os donos, fuçam onde acham que tem que meter o focinho e se deitam nas primeiras sombras que encontram. De longe avistamos seu Novinho sentado numa cadeira, como os porcos debaixo de um frondoso Benjamim, à calcada. Cimar apresenta-me:
- Novinho, esse é o Prof. Raimundo Cândido, que veio da cidade para falar com você.
- Abanquem-se, meus amigos.
É um cidadão gentil, o senhor Antônio Rosendo, com os olhinhos espremidos nas orbitas e a tez muito branca para um sertanejo que labutou diariamente de sol a sol pelo ermo do sertão. Soube que foi o trabalhador mais duro da região do Assis, nunca rejeitara uma faina por mais dificultosa que fosse. Via-se que não tinha calosidades nas mãos, pois elas já eram um imenso calo. Os pés eram como patas de touros, acostumados a puxar cangas de engenhos.
                 Aconselhou-me: - Seu Raimundo, se você quiser durar muito, muitos anos mesmo, coma feijão vermelho com toicim, rapadura com farinha e beba cachaça. De manhã tome uma talagada grande para ir trabalhar, ao meio-dia outra lapada para almoçar e à noite também beba e pode até se embriagar, se a sua mulher não brigar.
Novinho já ultrapassou os 80 anos e nunca foi a um médico. Qualquer corte no pé remediava era com uma porção de terra em cima “É para sarar logo, remédio só faz é apodrecer o pé!” Amansou muito burro brabo na maneira que ele sempre soube viver, na rijeza e no trabalho duro que só os Titãs, os semideuses euclidianos conseguiram viver. É um Hércules no fim da vida e venceu todas as batalhas que enfrentou com os obstáculos do sertão. Um respeitável herói da Ribeira! Meia dúzia de cambitos, de uma tropa de jegue, descansando na calçada indica que Novinho só deseja o merecido descanso dos vitoriosos guerreiros quando se for, desta para melhor.
Despedimo-nos do bucólico povoado de Assis e desejei voltar para a cidade no saudoso misto do Zé Padre, recitando os versos do poeta Cimar, que ainda retumbavam na minha mente: “Os contos que te conto / São contos que presenciei / outros contos que te conto / Quem me contou, também sei / Algum conto eu ouvi, outros eu presenciei...”


Raimundo Cândido