sábado, 21 de dezembro de 2013

Curral da Estação



Ocorre um milagre quando os primeiros pingos de chuva tamborilam no solo calcinado do sertão. O sertanejo, uma vitima inevitável da estiagem, vendo a terra molhada e o verde mato crescendo, agradece a Deus pela abundante fartura e pela renovação da vida ao estrondo do trovão.
  A Caatinga, poesia fecunda, restaura-se pelo aguaceiro que desce do céu escoltado pelos coriscos acesos que caem dos miolos das nuvens, produzindo fartura de porção. O sertão, ditoso e rico, é mágico. Se chover dá de tudo, como diz uma canção.
Nas fazendas de criação de gado forma-se um pasto verdoso nas soltas ilimitadas, a forragem nativa de capim mimoso, que logo se transformará em dinheiro vivo no bolso do patrão pela valorosa carne de engorda.  E, ao fim do inverno, os criadores juntam suas boiadas já formadas, dezenas de reses corpulentas com o peso ideal para venda e abate. É de onde provém a renda principal que mantém lucrativa uma propriedade no impiedoso agreste.
Cratheús, do meado do século XX, é uma pequena cidade que arduamente floresce nas margens do intermitente Rio Poti e se desenvolve graças ao vai-e-vem dos trens correndo sobre os trilhos rumo às cidades de Sobral e Fortaleza. Tudo se transporta nos vagões puxados pelas hercúleas máquinas a óleo: além dos passageiros elegantes e resolutos, a diversificada mercadoria dos comerciantes, os animais dos fazendeiros e as evasivas esperanças de um município que, lentamente, cresce. 
No lado esquerdo do majestoso Prédio da Estação há um armazém abarrotado com pilhas de sacos de oiticicas, de mamonas, de rapadura, de farinha oriunda da Serra dos Tucuns, e as carroças continuam chegando com mais mercancias para se despachar no trem. Do lado direito do monumento construído pelo Engenheiro João Tomé, antes do ponto de manobra do velho viradouro, o povo se empoleira nos trilhos que formam as cercas do Curral da Estação para assistir ao espetáculo de embarque do gado nos vagões. Enchem uns dez gaiolões de treliças de madeira, com vinte cabeças em cada um, para abastecer a Capital do Estado. 
Era um gado curraleiro, mas rústico chamado de pé duro que chegou ao Brasil nas caravelas dos colonizadores, com um porte pequeno e chifres longos, mas de uma carne saborosa, gosto de pastagem semelhante à galinha caipira do sertão. De vez em quando um animal, dos mais ariscos, se assusta com a multidão curiosa ou com o aspecto ferruginoso do trem e foge, pula ou passa por baixo dos trilhos, obrigando aos vaqueiros botarem os cavalos no rastro do bicho e atalham antes que atropele um cidadão. Mesmo no burburinho da cidade, os heróis do aboio, tinham que honrar o gibão!
Quando o Curral da Estação era do lado da praça, o senhor Gentil Cardoso sempre fazia uma investigação minuciosa antes do embarque, pois houve ocasião que ele ordenara aos encarregados que retirassem suas reses que tinha acompanhado o gado que passava na rua e bem sério, determinava:
- Ei, Gabriel e Papilina, retirem aquelas duas reses que são minhas!  Vamos, soltem logo os meus bois!
Foi o Luiz Lima, funcionário da Rede Ferroviária quem ajudou a mudar o curral para o outro lado dos trilhos, o lado do viradouro e evitar os transtornos que estavam causando na cidade.
Os proprietários dos animais de abate, os senhores Chico Pires da Independência, Raimundo de Pinho, Raimundo Nonato, Milton Menezes e o Major Leônidas quando não acompanhavam, pessoalmente, o transporte num vagão de passageiros, mandavam um encarregado como o Senhor Antônio leite, homem de confiança de Seu Leônidas, que em cada estação, verificava a situação dos animais, levantando os que estavam caídos para não ser pisoteados pelos demais.
A volta era uma festa no vagão Sonho Azul, muito dinheiro no bolso e cerveja borbulhando nos copos, ouvindo a gaita do José Ivan Melo.
Passamos por essa bela época de fartura nos Sertões de Cratheús onde exportávamos os frutos da agricultura e os bens da pecuária, mas hoje importamos até água de beber. O Curral da Estação foi desativado pela inclemência do tempo, que nem sempre permite que se cultive uma simples roça de subsistência ou então, como uma fera impiedosa rangendo sequidão, devorava os rebanhos de nosso sertão.
No ano de 1926 o Curral da Estação esteve, momentaneamente, desativado. Depois que o Trem do Medo voltou de marcha à ré da cidade de Ipueiras, numa fuga malograda do cerco dos Revoltosos, uma nuvem de aflição pairava sobre a cidade de Cratheús. A força Policial do Governo entrincheirada na Praça da Matriz e da Estação aguardava a chegada dos Revoltosos.  Eram os legalistas, homens arrogantes, nervosos, violentos, exibindo uma autoridade desregrada e faziam questão de mostrar tudo que podiam. Eram piores que os barbudos revoltosos de lenço vermelho no pescoço, cometiam roubos, bebedeiras, estupros, desmandos de toda ordem.
O comandante da Força Policial, vendo-se sem um cavalo de montaria, convoca um crateuense chamado Negro Cajueiro e pergunta:
- Negro, quem tem uma montaria boa, por aqui?
 E o informante reponde: - É o Seu Júlio Urbino, da fazenda Pereiros! Ele tem a melhor burra da região, um animal resistente , é bem mansa e marchadeira.
- Pois vão logo buscar essa burra! Quero esse animal para minha sela! Ordena.
Seu Júlio Menezes havia comprado a magnífica burra do irmão, Cícero Urbino de Menezes, um cidadão resoluto que nunca provara o sabor insosso do medo e já demonstrara isso ao salvar o irmão Pedro, quando o mesmo raptara a Maria Mathias. Nas veias de Cícero, afora um rubro sangue, corria fibra, firmeza, determinação e coragem. Soube que o comandante colocava a burra para dormir no Curral da Estação, vigiada por um soldado e pede ao irmão um cabresto e a esteira. Seu Júlio até que tentou dissuadi-lo deste intento, não houve jeito!
Na penumbra da madrugada, pelo leito do Rio Poti, Cícero aproxima-se do vigia que tranquilamente roncava. Encosta a arma no cangote do cabra e ordena:
- Não se mexa! Eu só vim buscar meu animal!
Manda o soldado colocar o cabresto e a esteira na burra e ainda determina: - Diga ao seu comandante que a burra fugiu, senão você apanha dele e de mim. Devolve o rifle ao praça e some pela margem escura do rio para entregar o animal ao seu legitimo dono, entes havia retirado as balas do rifle do soldado, que ele não era besta.
Cícero e Júlio Urbino fizeram um pacto de levar para o túmulo essa bela História, mas diz uma antiga tradição que, três pessoas não devem guardar um segredo, se duas delas já estiverem mortas. Saber exatamente a parte do passado que deve ser introduzida no presente, mesmo que seja um sigilo, é um momento raro e precioso de resgate do passado e somos gratos ao Senhor Milton Urbino Menezes que soube, dignamente, honrar a memória dos que se foram.

Raimundo Cândido

Socorro Cavalcanti disse...
Parabéns, meu amigo, Raimundo Cândido, você é um admirável escritor. Parabéns por mais um texto que merece ser lido, relido e divulgado.  Um abraço centrado no desejo de um feliz Natal e um Ano Novo repleto de alegria, saúde e paz.


terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Heroico

(Ao velho amigo Sobreira)

A malíssima negridão afronta...
E continuará a afligir,
imperturbável,
os olhos metálicos das espadas 
dos anjos de Deus...
O bem e o mal fermentam, 
tônus inflamados, 
como tempero das eras!
E um dia o clamor de um poeta
quebrou os grilhões da escravidão!
Mas o cativeiro continuou, 
dominador e mortal, 
em vapores alcoólicos na alma de seres incautos... 
Um dia, um herói chamado Sobreira
ofertou seus dias, como permuta, 
no altar da negridão, por cegos olhos sãos, 
por dignidades regidas, por entes acorrentados
e os semi-vivos reedificaram-se na vida,
ao suplicar, como no milagre do cego de Jericó:
-Sobreira, filho de Davi, tem misericórdia de mim!

Raimundo Cândido