sábado, 23 de julho de 2011


Remela de Mufumbo

O caramelado mel de cana
não aquiesce e me repugna.
O trigueiro licor das jandaíras
num sumo de pétalas de flores,
encharca e não me sacia.
O mais doce dos doces
de batata doce, nem vicia.
Desejo é um cálice do teu néctar
que me afina o paladar,
suavemente, sublime como
a diáfana remela de mufumbo.

Raimundo Candido

sexta-feira, 22 de julho de 2011


AS ARMADILHAS DA RUA CEL. LÚCIO
                                       Edilson Macedo


            Trafegar pela Rua Cel. Lúcio, no trecho compreendido entre as Ruas Firmino Rosa e Cazuza Ferreira, é quase caminhar por campo minado. A cada passo o perigo é iminente. Fluxo intenso de veículos, velocidade excessiva, violações de normas básicas de segurança e descaso do poder público são alguns dos motivos que põem em xeque a vida de inocentes que por lá habitam ou se arriscam diariamente.
            A Rua, que liga o centro da cidade ao Bairro da Ilha, um dos bairros de maior densidade populacional de nossa cidade, há muito carece de reformas, ou pelo menos de providências que facilitem e protejam as vidas de habitantes e transeuntes.
            Um pequeno passeio, de preferência à pés¹, pelo referido trecho, basta para que se saiba que o alerta que aqui fazemos é verdadeiro e de boa fé. Pena que nossos políticos e autoridades competentes não tenham tempo para gastar sola de sapato por onde trafega o canelau². Façamos o caminho, então...
            De saída, antes mesmo de engrenarmos uma segunda³, lado direito, sentido centro-ilha, ops!!! Uma parada! Uma Clínica Médica e uma Loja de Grife fizeram desuas calçadas estacionamentos privativos para funcionários e clientes. Resta-nos descer a rampa (é rampa mesmo) e disputar espaço com motos e carros enraivecidos.
            Triste e estarrecedor é saber que as ditas cujas, Clínica e Loja, pertencem a um importante político desta tão maltratada Pólis dos confins do mundo. Mais triste e mais estarrecedor ainda é ouvir o silêncio gritante, a inércia conivente da Prefeitura. Cadê o Código de Postura?!  O bicho comeu?!!!  Andemos...
            Pouquíssimos metros adiante, novo ardil –  seis  Bocas- de- Lobos, literalmente arreganhadas, prontinhas para devorar o mais incauto e desatento filho de Deus. Três de cada lado da Rua, para que a justiça seja igual para todos, indo ou voltando... Quanto ao mal hálito que exalam, aceitemos com resignação, o mais sombrio e trágico da realidade reside um pouco adiante.  Caminhemos...
            Eis que chegamos à ponte que sobrepõe nosso amado e contundido Rio... e interliga a Ilha ao centro da centenária Pólis. Aqui, amigos e amigas, Seres humanos e Ceras humanas, reside o imponderável. A dita, construída há quase cinquenta anos atrás, quando nossa frota de veículos se limitava a meia dúzia de jeeps e quatro lambretas, já não atende às necessidades dos dias atuais. Se o cenário é o mesmo, a novela é outra. Hoje, carros e motos à mil, bicicletas e humanos (de todas as idades e credos) disputam brava e acirradamente o exíguo espaço da velha e inapta pinguela. Sérios são os agravantes. 1) uma das laterais, previamente arquitetada e destinada aos bípedes mortais, foi  inadvertidamente ocupada por um duto da Cagece. Alguém viu?!!!  Outro, mais agravante ainda: Abismos (de verdade mesmo) sem nenhuma parede ou baliza de proteção, antecedem, de ambos os lados, o acesso à ponte. O risco é permanente, a proteção divina, nem sempre.
            Caso tenhamos a sorte de sairmos ilesos desta arriscada empreitada, resta o cruzamento com a Cazuza Ferreira...
            Depois é caminhar até a Imaculada e agradecer a Deus. E não esqueça, afortunado viajante, de deixar uma moedinha para a Madre Santíssima.
            Enxerguemos com os olhos, não com a dor indelével...
  


1.      Ou quem sabe de cadeira de rodas
2.      Com a permissão do Poeta e Sociólogo Airton Monte
3.      Ao Chico Budu, in memoria

terça-feira, 19 de julho de 2011


                                                               As botijas do Zé Dobrão

            Tenho compaixão dos meus verdes amigos vegetais que brotam pelas ruas enfeitadas destas cruéis urbes. Tudo em razão de terem que suportar o efeito de suas podadas arquiteturas paisagísticas. É com tristeza que contemplo estas pobres plantas depenadas pelas ruas, num tronco desornado de seus indispensáveis galhos, como que pedindo clemência aos céus.
            Algumas velhas árvores parecem saber de sua sina ou querem adivinhar logo o destino trágico para seu arcabouço vegetal, que penosamente vai se formando, cascas sobre cascas. Dá-me a impressão que temem o gume de uma foice ou a dilaceração de um machado.
            Há arvores em que até a sombra é carregada deste fatigado peso.            Sentado aqui, embaixo de um desses meus verdes amigos, a quem muito simpatizo, na calçada da casa do Zé Dobrão, lembrei-me de um bordão característico de uma famosa ONG mundial chamada Greenpeace, que me causou uma profunda impressão: “Quando a última árvore tiver caído, quando o último rio tiver secado, quando o último peixe for pescado, vocês vão entender que o dinheiro não vale nada.”
            Sempre que posso venho aqui e fico sentado à sombra, na luz da lua, deste majestoso pé de Sebinho, carregado de verdes vagens, que tem uma pasta branquinha e doce como mel. De dia, os bem-te-vis, os sabiás e as primaveras fazem a festa. Mal a claridade retira-se de seu luzente palco, vem um bando de morcegos frutíferos com seus imperceptíveis ruídos ultrassônicos, localizando com precisão a posição exata das vagens, para saborear o açucarado néctar e passam em revoada por sobre nossas cabeças, na calçada do Zé.
            É o espetáculo que agora assisto e me faz lembrar de um presságio triste que circula nas concepções dramáticas de nossas vidas, que diz: “Um dia iremos necessitar da sombra de uma árvore, vamos vagar livremente a procura de uma e o que encontraremos serão galhos secos, troncos sangrando e raízes exaustas.” Tomara Deus que isso não ocorra, nunca!
            Na frente da casa do Zé Dobrão, começa mais uma sessão noturna de bate-papo, despretensioso, que a modernidade está apagando de nossas deliciosas calçadas.
            E do rio do Tourão, aqui ao lado, que desce majestoso para encontrar o Rio Poti, logo a uns poucos metros abaixo, vem um aroma característico de margens ribeirinhas, como lá nos bíblicos Tigre e Eufrates da antiguidade, com seus currais de gado, como aqui, no final da Agamenon Machado. É o próprio Zé que explica o porquê do nome da rua: — O Dr. Agamenon, antigamente, receitava na casa ao lado. Era um bom médico, e ao meio dia sempre passava com um  litro embrulhado debaixo do braço, enquanto receitava o povo, ia tomando, tranquilamente, sua cachacinha. A conversa vai se soltando pelos mais diversos assuntos. Alguém de repente, sem mais nem menos, indaga:
            — Vocês ouviram a entrevista do João Aguiar, no rádio? Foi sobre uma botija que ele sonhou, mas não teve coragem de arrancar, quem ficou com o tesouro foi outra pessoa. Ele ficou só com um anel de ouro que deixaram por lá. Era um deixa, para que ele entrasse em cena, com suas gostosas histórias sobre nossa origem, sobre nossos antepassados:
            — Na época que meu pai trabalhava no Alegre, na fazenda de seu Jovino Melo, lá pro lado do Parque de Exposição, também se achou umas botijas! Ele deixava a frase solta no ar.
            A curiosidade, que é mãe de toda ciências, de todos os conhecimentos, invadia-nos a alma e, pelo reflexo agudo de nosso olhar, Zé percebia a súplica para que continuasse a narrar sua histórica. E prossegue...
            — Nos terrenos da fazenda Alegre tinha uma imensa lagoa, com muito mato ao redor e um grande pé de Pereiro, onde os caçadores de marrecas armavam suas tocaias. Noite havia em que se assustavam com uma marmota, uma visagem que aparecia por lá. Diziam que um bode com uma grande barbicha e uns longos chifres chagava num alvoroçado barulho e em altos berros. O Zé imita bem com sua voz onomatopéica perfeita: — Beeeeeé beeeeeé beeé eeeé beeeeeeeeeeeeeé beeeeé bé beeeé beeeé eé beé! Os caçadores corriam com medo, passavam sebo nas canelas e esqueciam até dos coitadinhos das chamas de marrecas.  Zé Dobrão vai nos esclarecendo que na época dos revoltosos, as pessoas guardavam seus tesouros em ouro enterrados sob copas de árvores, para protegê-los. Com a morte de seus donos, os potes de barros ficavam lá esquecidos e enterrados, até que um escolhido sonhasse e arranjasse uma titânica coragem para arrancar a botija, munido de pás, picaretas, velas e orações. Tinha que ser numa sexta feira, a meia noite. Não esquecendo de traçar uma estrela de seis pontas no chão, antes de começar a cavar.
            — Eu, meu pai e seu Jovino, íamos com o gado pela trilha do velho Pereiro. Quando chegamos bem embaixo da árvore, vimos os dois buracos já feitos, de lados opostos. Advínhamos logo: Nesta noite alguém arrancou umas botijas por aqui... Meu pai se abaixou e tirou um pedaço de corrente do buraco e foi logo mostrando para seu Jovino, que disse:  — Não compadre, num é ouro não! É só um pedaço veio de bronze e colocou no bolso. Depois daquelas escavações que vimos debaixo do Pereiro, nunca mais apareceu nenhuma marmota por lá. E querendo mudar logo de assunto, dispara a queima-lingua:
            — Vocês viram como o capim amanheceu hoje? Estava coberto de uruvai! Assevera-nos de sua cadeira de balanço.           
            — O que é uruvai, Zé? Você quer dizer orvalho, não é? Alguém retifica, já esperando uma súbita resposta.
            — E orvalho num é aquilo que a mulher tem? Dispara o Zé com mais uma das suas finíssimas afirmativas folclóricas. O bom mesmo é a gente ouvir a gostosa risada de Dona Chica, sua esposa, num riso solto e espontâneo, que contagia e nos dar vontade de voltar no dia seguinte, para mais uma rodada de prosopopéia do Zé.


Raimundo Candido

segunda-feira, 18 de julho de 2011

UM TIPO SUSPEITO

Elias de França

Era um desses que fizera o raro movimento inverso, contrariando a lei da gravidade brasileira: nascido no Sul (Sudeste), veio cair no Norte, ou melhor, nas cearenses terras nordestinas. Órfão de pai e mãe depois dos trinta, tardiamente se dá ao desafio de cavar a sobrevivência, sem os generosos subsídios do pai marinheiro. Tivesse nascido fêmea, faria jus à pensão vitalícia de filha de militar, que, àqueles tempos, ainda consistia em direito adquirido.
Mas vez que macho nascera e estivera até então, homem haveria de ser sempre. Sem ambições e com um coração maior que o juízo, veio a se meter com a penosa construção da arte. E assim embrenha-se sertão-a-dentro, na busca de garimpar a saga mais bela para uma historia de vida.
Foi assim que, numa boca de noite, desembarca em Crateús, depois de umas cinco horas de Fortaleza à Hidrolândia, mais oito de divertidas companhias na oficina de contação de histórias, mais duas de pau-de-arara Hidrolândia-Ipu, umas três horas de espera no Posto Encruzilhada, mais dois tempos de salabancos na topic até Nova Russas, uma tarde de prosas com as moças do Oeste e, enfim, hora e meia de Barrosão.
Como de costume, seu vulto era todo malas (pretas): um violão encapado, uma mala de carretilha, uma grande bolsa, uma mochila de laptop e sua inseparável mochila necessary, cujo conteúdo nem o diabo adivinharia.
Salta na porta do Banco Privado para ali tentar resgatar seu pouco dinheirinho. Já havia pendurado a conta do hotel, no último rancho, porque os caixas lhe sonegaram o saque, nas varias tentativas que fizera em cada um dos vilarejos em que passara. E ali, mais uma vez, a máquina fria lhe avisa estar vazia de numerários. Em fúria, agarra-se a seus três telefones celulares e passa a percorrer o doloroso itinerário de etapas ditadas pela voz eletrônica do outro lado do fone. Seus pés e olhos a acompanhar o contrapasso sem fim daquela maratona de espera da solução que a antipessoa em linha nunca lhe trazia.
A viatura do Ronda do Quarteirão já cumpriria sua quarta averiguação estratégica em frente ao recinto, sem que aquele elemento, em atitude suspeita, se ausentasse do local. E em cada volta, o indivíduo transparecia mais conluio. Ao telefone, andando no interior do banco como que a medir em passos o território e, vez em quando, encostando o rosto nas vidraças para sondar o derredor. O destacamento, então, chama pelo moderno rádio o comando para comunicar a abordagem ao suspeito, ao que obtém pronta autorização.
Os praças saltam da viatura de armas em punho, chutam a porta de vidro com um dos coturnos e cercam o sujeito. Este deixa a voz eletrônica falando sozinha e ergue-se em membros e torax para o alto, para a revista. A moça de farda é designada para vasculhar as tantas malas e mochilas enquanto o sargento conduz o interrogatório:
- Como se chama?
- É Ted!
- Mora aonde?
- Fortaleza.
- Trabalha? Aonde?
- Hidrolândia.
- de onde vem?
Nova Russas...
Atento às respostas e vendo o documento de identidade, o sargento constatava a avalanche de contradições em torno daquele sujeito, de estatura mediana, cabelos avermelhados, olhos claros, com sotaque carioca. Nada batia. Nem o dito com o dito, nem com o não dito. Pois no RG, nada de Ted e sim um nome estranho, de origem saxônica: Flamsteed Flamarion; local de nascimento: Rio de Janeiro, a terra do crime organizado; carteira de trabalho, branquinha, sem um único registro...
As atenções se redobraram a espera de, a qualquer instante, a moça policial desvelar de dentro das malas pretas as armas sofisticadas que o caso transparecia. Mas na muamba, apenas um violão velho sem fundo falso, livros infantis, CDs e DVDs de Bia Bedran e Palavra Cantada, roupas surradas, inclusive uma de palhaço arlequim, algumas garrafas de indaiá...
O sargento ainda arrisca uma ultima pergunta, antes de devolver confuso os documentos:
- Que faz aqui?
E o homem responde, juntando suas burundangas e socando-as nas malas, sem muito zelo:
- Vim contar mentiras, histórias e causos!
Dito assim, pendura seus trecos nos tantos ganchos do corpo e sai a pé, pela Rua Dom Pedro II, da Centenária Cidade de Crateús, com seu coração maior que o juízo, seguido de longe pela viatura do Ronda, passando por debaixo do arco da Santa e tocando em frente, até onde a lei da gravidade o torne queda (ou salto) outra vez.