sábado, 7 de março de 2015

Rio Poti – A Fonte

                                                             

No principio era a Poesia. E a poesia estava na fonte, e da fonte nasceu o córrego, e o córrego fez-se um majestoso rio. Era o Poti, ziguezagueante, sinuoso, serpenteando como cobra de vidro pelos descampados sertões de Cratheús. Por princípio, os rios já existiam, sacrossantos, no plano da Divina Poesia!
Um dia, a criança que rompia as manhãs em turvas águas fluviais, subitamente anoiteceu, perplexa e tristonha, nas exauridas ruínas de um rio maltratado, sem o precioso líquido a escorrer no seu mortificado leito que vai, pouco a pouco, deixando de existir. O rio que brotou de meu peito só quis desaguar e permanecer distante, ao largo mar. Mas ele sempre retorna, nos sonhos, trazendo a infância que rebenta da ampulheta do tempo. Os rios não morrem, hibernam. A gente é que não sabe dos fluviais mistérios que há! O Rio Poti, que ainda flui em mim, tem uma parte perene e outra intermitente, com suspensão quase contínua, interpondo-se no fluxo da existência. Concede-nos a mínima estação, cheia de benesses (E quando há!), numa incomensurável alegria e impõe as temporadas amargas e de longas paisagens cinzentas (Quase sempre!), e é um pesar!
Havia fortes indícios suspendendo o porvir fluvial e se estampava como uma tragédia no ar, como agouro ameaçando o retorno do velho Itaim-açu, como é chamado o Poti na sua nascente. Os quatro anos seguidos (2011 - 2014) de estiagens pesadas e a profecia de retorno do maior desastre que se tem notícias na história do sertão crateuense, a seca do 15, cem anos depois, ameaçava o regresso do estimado rio, num prenúncio tenebroso. Como se a natureza entendesse as datas prefixadas pelo homem, e obedecesse minunciosamente.
Tive medo, fiquei com receio de não mais ver o Rio dos Camarões escaramuçar na sua velha calha e então, resolvi conhecê-lo, por inteiro, desde a sua falada nascente, na Serra da Joaninha, até a foz, no belíssimo Encontro das Águas, no Piauí, onde reina o famigerado Cabeça de Cuia.
Munido das informações necessárias, quase na madrugada ainda, apanhei a Topic que faz horário para a cidade Quiterianópolis, onde fica a nascente do Poti. Passamos por Novo Oriente, seguindo pela BR 404 e, cedo da manhã, chegamos às terras que pertenceram a Senhora Quitéria de Lima, a antiga Vila Coutinho, a 78 km de Cratheús. O topiqueiro me avisa: - Esteja aqui, na parada, antes de 1 hora da tarde, senão você vai pernoitar. E apresenta-me a um Moto-taxi, dizendo: — O João Caburé lhe levará aonde pretende ir!    
Firmo contrato com o tal João, mas não tive coragem de falar seu apelido (Encobri um leve sorriso, pois o coitado até parecia um agouro!), mas era um guia tagarelo, que logo me comunica: — Até a Fazenda Jatobá são 40 km de distância e cobro R$ 1,00 por cada quilômetro rodado, mas antes  saiba que a rodagem é toda de terra batida. E na estrada, de novo!  A garupa da moto pulava mais que burra coiceira pela carroçal da CE 277, e eu já imaginava como seria inconveniente o regresso. Além dos solavancos, dos catabis no chão esburacado, ainda tinha a procissão de carros-pipas, que iam e vinham sem parar, com o mundo desaparecendo no poeirão que subia no ar, mais pareciam tropas de jegues na seca de 32, a denunciar mais uma grande crise hídrica.
De vez em quando passávamos por um pontilhão. Perguntei: — Ó João, esses riachos que estamos passando, caem todos no Poti? Responde-me, gritando, para superar o barulho do motor: — Que nada, amigo! Isto que você está vendo é o próprio Poti!
E lembrei-me de um ditado antigo: “Rio torto a gente passa é mil vezes”. Uma paisagem desolada, vegetação desmatada, um imenso eito de abandono e solidão, até a Mata Ciliar é uma raridade no leito do Poti, no município de Quiterianópolis.
Ao longe, uma nuvem de poeira negra sobe em coluna, e o guia, notando meu interesse, esclarece-me: — É a Mineradora Globest, que retira, todo mês, 80 mil toneladas de pó de ferro e manda para a China!  Perguntei: - Esse pó não polui o Poti? Ele proferiu um longo “Huuum!” de descaso ou descredito, não sei, mas concluiu: - A Secretária do Meio Ambiente vive brigando na justiça. Até as crianças, que moram aí, estão com uma alergia encruada. Dá em nada!
Não sei por que, mas lembrei-me do Livro de Exame de Admissão, onde estudei pela primeira vez a lição intitulada: “O Brasil Colônia”. Até que achava bom quando topávamos com uma cancela, só assim esticava as pernas. Na frente de cada residência se estampava uma cisterna, de cimento ou de um plástico azulado, como parte do Programa Água Para Todos. A surpresa foi quando apareceu o talhado da Serra da Joaninha, uma asa pétrea em ramificação na Grande Serra Azul, o grandioso maciço da Ibiapaba. — Já estamos na Fazenda Jatobá! Anunciou o moto-taxista.
Uma casinha branca, assentada quase na fralda da serra, o reboco caindo, a calçada corroída pelo tempo, um curral de carcomidos paus-a-pique, eram sinais de que havia vida naquele sopé de solidão. O morador, um típico vaqueiro chamado Mazim, veio nos receber e, a priori, já sabia o que tínhamos ido fazer. Mandou-nos aguardar, enquanto pegava um enorme facão do mato, de umas 20 polegadas, e uma lanterna que daria para clarear o mundo. Seguimos por uma trilha estreita e íngreme, margeada de angicos, de aroeiras, de pau d’arcos, todos de caules finos ainda, dando sinal de replantio. Alegro-me, pois ouço, ao longe, o belíssimo flauteado de um sabiá. Sempre achei o Poti parecido com um pássaro, a cantar e a voar! Saindo de uma boca pétrea, na base calcária da Serra da Joaninha, ouvi um som de uma torneira pingando: Ping! Ping! Ping! Era o Olho d’Água do Fundão e descemos uns três metros de rocha, numa loca, para chegar a primeira nascente do Poti, já dentro da famosa Gruta Pinga era só escuridão e entendi o porquê da lanterna. A água brotava do teto, pingava numa poça, caindo de uma enorme pedra côncava, no teto, dentro de uma convexa, no chão, e a escorrer para dentro da montanha. E em cada pingo que caia eu via as lágrimas do sertão! Mazim bebe na concha da mão, o que me faz repetir o gesto. Ele me dirige um olhar fixo e diz: — Ó, Seu Raimundo, neste local aí, só vi três coisas matar a sede, até hoje.  — O que foi que o Senhor viu bebendo aqui, onde eu estou, Seu Mazim? Pergunto, assustado.
— Os guaxinins, as pardas e, agora, você!
— E o que é essa parda, Seu Mazim? Pergunto de novo.
— É uma oncinha vermelha, a maçaroca, chamam também de suçuarana, mas elas só aparecem por aqui, quando anoitece, Seu Raimundo!
Antes de sair da gruta, pressenti, como que a presença de Patâmide, a ninfa dos rios, mas só vi uma enorme gia, quieta num canto, com seus olhos arregalados no meu rumo.
Fomos ver o outro manancial que fica do lado de fora, ao pé da gigantesca gameleira que abraça as rochas com suas grosas raízes, como que a espremê-las, para a fonte poder brotar. Era a nascente do Poti, que hoje é escoada por canos de plásticos, direcionada para um comprido tanque de concreto, o bebedouro das vacas da Fazenda Jatobá, que pisoteiam o solo sagrado do início de um rio.
Recordei da lei que obriga a, pelo menos, uns 50 metros de raio de proteção em cada insurgência de água natural, cercada de mata nativa, mas logo me lembrei de que estava no Brasil, e no fim do mundo, na encosta da Serra da Joaninha, que um dia foi mar, o mar que esculpiu, poeticamente, a Gruta Pinga, com a punção das águas revoltas e o cinzel dos ventos furiosos, e então agradeci, então roguei: “Bendito Sejais, Ó Grandíssimo Deus! Pelo rio, obra Tua! Pela água, criatura Tua! Peço-te, Ó Onipotente, fazei com que toda ameaça de mais sofrimento se dissipe, protegei a nascente do Poti, fazei com o velho Itaim ganhe novamente vida e corra, como um barco ébrio, voe como um pássaro a recitar versos aquosos pelo sertão sofrido e que encha o Colinas, e que encha, com o líquido da vida, o Flor do Campo e estenda suas benesses ao nosso sofrido Carnaubal. “
Despeço-me da Fazenda Jatobá, mas levo no peito a certeza de que o Rio Poti é eterno, pois vi o seu sangue minando das solidas rochas, e pressenti nos olhos da ninfa Potâmide que, um dia, ele há de voltar.


Raimundo Cândido