sábado, 27 de dezembro de 2014

A Cachoeira da Fumaça

                                        

Da cachoeira da Lembrada, na Floresta Pétrea do Cânion do Rio Poti, vertia um filete tão reduzido, mas tão minguado que me fez imaginar de como seria o espetáculo daquela queda d’água com o Rio dos Camarões em seus dias de grandes cheias. Não foi bem uma decepção, pois fiquei extasiado com a visão dos colossais paredões de 60 metros de altura, numa gigantesca garganta que há milhares de anos vem sendo esculpida em rochas graníticas. E, meio desapontado, fiz uma promessa ao meu eu aventureiro: “Iria conhecer a maior cachoeira do Brasil na Chapada Diamantina, a grandiosa Fumaça, tão logo tivesse uma oportunidade.” Seria uma espécie compensação pela desilusão sofrida.
Quando falei deste compromisso para minha companheira de aventuras e vida, os seus olhos brilharam numa conclusão decisiva: “- A nossa ventura é controlada pelas circunstâncias, e não vamos deixar passar essa oportunidade. Vamos à Bahia, sim!” Penso que ela já tinha tramado a promessa e bem antes de mim. Esperta, essa Isabelle Saraiva!
 Partimos! Mal chegávamos à rodoviária de Santo Antônio de Jesus, na Bahia, soube que tinha que ir primeiro para a cidade de Itaberaba, a 153 km de distância, e de lá percorrer mais 142 km até chegar à turística cidade de Lençóis, o portal de entrada para o Parque Nacional da Chapada Diamantina. Eu pensei que seria tudo mais fácil!  A vendedora de passagens foi logo me avisando: - O último ônibus da Viação Camurujipe, para Itaberaba, parte agora! Quis desistir, mas um impulso fez com que entrasse no ônibus. Na viagem, eu tive a impressão de ter embarcado no poeirão do Seu Zé Padre, rumo ao Distrito de Assis.  Isabelle ficou em Santo Antônio para resolver uns probleminhas familiares, como já era de meu conhecimento.
Em Lençóis um guia foi logo me esclarecendo acerca das pousadas com preços “módicos” e sobre a longa trilha para a Cachoeira da Fumaça. Eu tinha que entrar num grupo de aventureiros e percorrer, numa Van da Associação dos guias, uns 50 km até o pé do morro, numa depressão alongada chamada Vale do Capão. Marcamos a saída para o dia seguinte, bem cedo.
Aproveitei e fui conhecer a exuberante vida noturna de Lençóis, num desassossego sossegado de boêmia culta. Mesas espalhadas pelas estreitas ruas, turistas dos quatro cantos do mundo e de vez em quando passava um duende flautista soprando uma doce sonoridade para enternecer a lua, que tanto alumiou as trilhas para os garimpeiros na época da corrida do diamante. Lençóis foi considerada a Capital das Lavras e a terra do Coronel Horácio de Matos, o maior potentado das Lavras Diamantíferas, que comandava um enorme bando de jagunços, chagando a assustar o Governo Federal e a própria Coluna Prestes.
Acordei cedo e descobri que às 7 da manhã ainda é madrugada em Lençóis. A Van chegou às 8 horas, embarquei e fomos pegar o restante dos aventureiros: americanos, franceses e alemães. Da terrinha tupiniquim só tinha eu, os dois guias e a namorada tagarela de um alemão. Pelo caminho ouvi o alemão falar: “-Das Brasilien ist das sehr Mutter Natur.” A namorada, como um tradutor online, converteu: - Sim, o Brasil é própria mãe natureza!
Imediatamente lembrei-me dos 7 x 1 na Copa da Corrupção e completei a frase: - Sim, é a mãe natureza e, também, a mãe dos alemães! Mentalmente, claro. O alemão parecia a porta de um armário! Chegamos à cidade de Palmeiras, onde as valorosas pedras de diamantes passaram contrabandeadas pelos tropeiros, para apaziguar a ganância dos europeus. A exploração diamantífera deixou um prejuízo enorme ao meio ambiente e, hoje, só resta o ecoturismo para salvar a imensa Chapada. Vi um triste idoso, sentado numa cadeira na calçada, na certa ele participou do apogeu das jazidas, e da sua decadência também, quando se findou o último veio.
Contam que, das valiosas pedras, nem com um leve brilho ilusório o Brasil ficou. Sugado, explorado desde os tempos Coloniais e continuamos na mesma atrapalhação, no mesmo desastre. Roubaram, roubam e ficamos como aquele senhor palmeirense, na calçada do tempo, a recordar um passado de glória. Oh, sina triste!
Chegamos ao ponto de apoio da Associação dos Condutores de Visitantes à Cachoeira da Fumaça. Normas e regras esclarecidas, partimos em fila indiana. Antes, avisaram: os dois primeiros quilômetros de rampa são pesados, os 4 km restantes são num platô quase plano. Não atinei para a palavra “pesado” do instrutor, mas via a imensidão mágica da Serra do Sincorá, ostentosamente íngreme na minha frente.
Escalados os primeiros 500 metros e o fôlego começou a falhar, o coração a disparar, as pernas a reclamar da falta de energia. Confesso: foi a minha via dolorosa ir ao topo da Chapada Diamantina. Na subida, eu sucumbi três vezes e três vezes revelações eu discerni. Na 1º queda: — Que estou fazendo aqui, meu Deus? Só um longo silêncio, de volta, eu ouvi.  No 2º tombo: — Não aguento mais, eu vou desistir! Inexplicavelmente resolvi resistir e segui avante. Na terceira vez que caí, o último guia perguntou-me: — A máquina está ruim, meu velho?  Lembrei-me do motor do Del Rey que possuía e que, quase na minha idade (57), não respeitava subida íngreme. Levantei-me e parti, lento como uma tartaruga, mas venci!
No platô, olhando o amplo Vale do Capão, estendido lá embaixo, entendi o porquê de as procissões, de calvários, bem vencidas, despertarem “algo sagrado” existente nas trilhas da gente.
Caminhamos o restante da sinuosa vereda folgados e contemplando a beleza da mistura de Caatinga com Serrado no clima agradável da montanha. O alemão apontou os dois dedos indicadores para o rosto e gritou: - Wind!!! – Wind!!! A babylon tradutora trabalhou: - Sim, é o vento fresco! Para mim, ficou meio ambíguo o que ela disse.
Alguém ouviu o barulho de água caindo. Apurei a audição e ouvi o belíssimo canto da cachoeira que foi se intensificando à medida que chegávamos mais perto.
Avistamos um sovaco de serra de uns 400 metros de profundidade com o Vale do Paty, lá embaixo. Tinha um bloco extenso de pedra se sobressaindo no precipício e arrastamo-nos sobre ele, para colocar a cabeça para fora e ver a Cachoeira da Fumaça, por cima. O imenso vazio abaixo do bloco pétreo e o espetáculo do rio despencando de uma abertura no paredão disparou a adrenalina no corpo e um medo, que nunca sentira, na minha alma.
A Cachoeira da Fumaça dançava ao desejo do vento que remoinha entre os paredões fazendo com que o volumoso rio sublimasse, em gotículas dispersas no ar, chegando a molhar nosso rosto. É uma maravilha indescritível para meras palavras, só estampada no olhar podemos sentir essa magnífica obra divina. Caminhamos para outro ponto de observação e contemplamos, quase de frente, os 340 metros da cachoeira e mesmo calados, extasiados e embevecidos, oramos na presença daquele templo sagrado.
Olhava para a maior queda d’água do Brasil e me recordava da Cachoeira da Lembrada, raquítica e desnutrida nos Sertões de Cratheús, e rogava para que, ao visita-la novamente, as circunstâncias sejam outras e aquele filete finíssimo de água tenha se avolumado o suficiente para fazer me recordar da maravilhosa Cachoeira da Fumaça.
Espiritualmente ainda estou lá, no topo do imenso paredão da Serra do Sincorá, comtemplando, embevecido, o resplendor da maravilhosa Cachoeira da Fumaça.

Raimundo Cândido




sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Suçuarana


A mira crava,
o frio instinto,
o ardente olhar,
na vítima a pulsar.
Tal bala no pente,
feito autômato.
O gatilho saliva
a se deleitar,
já separando
a carne do osso
no fio de navalha
cortando no ar...
Dispara!
Feito faca,
feito ânsia,
feito a fome,
pois a mesa,
em bandeja posta,
convida ao jantar!

Raimundo Cândido

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Corrupião



O tom negro das notas
é um rebuliços no sertão,
pela ação das ventanias,
furtando o ninho alheio
se fingido de politico,
astuto, que desdenha
na falsa disposição.
O amarelo da canção
denuncia a aparência
de um ser brejeiro,
larápio que nem fia
e só imita a melodia
que se ouve das matas
e mesmo assim,  fingido,
melodiosamente assovia,
isento, o hino  da nação!


Raimundo Cândido

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Fazenda Ponciano

                                               Fazenda Ponciano

Uma robusta aroeira revestida de casca cinzenta e escamosa, com nós no tronco a mostrar o cerne incorruptível de uma madeira imputrescível, resistiu aos vendavais do tempo, ao crestar de raios impiedosos e ao perverso machado da mão dos homens. Escapou de ser uma mera estaca, uma singela viga ou um roliço mourão de cerca nas fazendas dos Sertões de Crateús.  Hoje é um longevo ser, indivíduo lenhoso, leal e centenário que, firme e de pé, guarda as histórias e os segredos que se passaram nos terreiros da Fazenda Ponciano.  Sente a ausência dos antigos companheiros, uns velhos mulungus copados que degringolaram, não resistiram à corrosão das eras, e eram aonde se amarravam os animais que chegavam às terras do rico fazendeiro João de Melo Matos.
Em frente ao conservado casarão, e olhando aquele honrado tronco de aroeira, fiquei a captar suas histórias, como que absorvendo por uma estranha e vegetal osmose. Sussurro de vento foi o que me pareceu a voz daquela árvore anciã, relatando-me o passado. Ouço, atentamente, aquelas confissões arbóreas e me dispus a transpô-las para um papel, como me solicitou a velha guardiã do Ponciano.
“Houve um tempo de muita fartura, uma época de abundância por aqui. E o que faltava, era só o que não era necessário!”. Bem atencioso fiquei, do começo ao fim, àquela história! E a falante planta prossegue, relatando-me as suas memórias:
“A Fazenda Ponciano foi assentada no topete deste pequeno morro para fugir das cheias do Rio Poti. Nas chuvas torrenciais, aquela vigorosa grota que tem o mesmo nome do local, ajudava o inconstante rio a isolar o casarão do resto do mundo. Bem aí, onde você está parado, estendia-se uma movimentada trilha por onde passavam os transeuntes, a pé ou a cavalo, rumo ao longínquo Curral Velho. Quem passasse, fosse quem fosse, em frente ao casarão do Ponciano de Seu João de Matos, tinha direito a uma tora de rapadura e a saborear um naco de queijo, expostos num cepo de madeira, enfincado perto do calçadão.”
“Olhe ali, para o alpendre da fazenda, naqueles armadores ficavam descansando os arreios, as peias, as cordas, os cabrestos, as rédeas, os brides, as esporas, os baldes, as esteiras, os gibões, as celas, as cangalhas e tudo que um vaqueiro precisa para começar o traquejo do dia, bem cedo, ainda no escuro da manhã.”
“Sob as ordens do Senhor João de Matos, que participava de tudo, desde a ordenha matinal das vacas no curral, até o tanger de ovelhas no entardecer e todas as atividades agrícolas eram realizadas por um batalhão de pessoas que residiam no Ponciano. Quando se deitava numa rede estirada na varanda, para fazer o balancete do dia, a Dona Maria Rezende de Matos Melo, sua esposa, vinha lhe servir uma xicara de café quente.”
Eu via somente os ressequidos galhos da aroeira contrastando com o céu azul, e ficava a imaginar de onde poderia vir aquela voz: Seria dos rombudos nódulos do tronco?
“O quintal era enorme e fazia gosto de se ver: Os perus, os capotes ariscos, as gordas galinhas e até os exibidos pavões desfilavam, ciscando no terreiro. Mais afastado, devido ao aroma característico, havia o chiqueiro de  sujismundos porcos. No curral de gado, construído com caules das carnaúbas, que ficava ao lado direito da casa, estava a vacaria que produzia a principal mercadoria da fazenda e ainda sobrava leite para a gostosa coalhada e para tantos queijos, que chegavam a petrificar na tábua da dispensa. Vi um queijo de quilos, já pedrento, servir de escora para uma porta. Mesmo com Seu João de Matos, cutucando com um gravetinho de madeira o vão entre dois tijolos do piso, só para tirar um carocinho de feijão perdido e retorná-lo aos tambores da despensa, ali era a casa da fartura.”
A velha aroeira, percebendo minha admiração por suas histórias, continuou: “Quem sabia contar realmente historias, e das boas, era o negro João Mariano que vinha do Quirino de Cima para cá, em época de matutagem.”
Incrível, mas aquela velha árvore estava mesmo lendo meus pensamentos, captando meus sentimentos, sem que eu perguntasse, e como que debochando de minha ignorância, explica-me:
“Matutagem é como se chama a matança de gado nas fazendas do sertão. Toda semana se matava um boi no Ponciano. Vinha gente dos outros locais, que também eram propriedades do senhor João de Matos: das Melancias, da Grota, do Quirino de Cima, do Lago, da Cana Brava e da Taboa. A animação durava o dia inteiro, e o melhor era ver a lua prateada no céu estrelado, ouvindo o negro João Mariano, sentado num tamborete, contando as suas assombrosas histórias, até a meia noite.”
“Uma multidão, o Seu Júlio, o Milton, o Wilson, o Manoel Joaninha, o Antônio Filó, a Janoca, o Vicente Damião, o Manoel e o João Palhano, o Cosmo Viana e alguns fazendeiros que moravam por perto, faziam um círculo ao redor do negro contador de lorotas. Alguém, lembrando-se das suas gabolices anteriores, ia logo perguntando: — Mariano e aquele marruá preto, ainda tem aparecido no Quirino? O negro, um individuo alto, que pela aparência se dizia logo que era um pelejador de roça, mas o vivo olhar denunciava a inteligência fina, respondeu: — Nem me pergunte por aquela assombração desgarrada, meu amigo. Quando eu vinha andando pra cá, estranhei o silêncio da mata. Parei e fiquei atento aos vultos nas veredas. Nada! Mas meus cabelos continuaram de pé, eriçados! Quando olhei pra trás, vi as duas tochas de fogo no breu do escuro. Era ele me farejando. Eu corri, da beira do rio até aqui, mais rápido que um mocó em loca de pedra. Outro dia, o touro endiabrado, acompanhou o Trem de cargas que passa na madrugada, até tangê-lo para fora das suas pastagens, a gente só ouvia os cascos dele pisando o chão duro, misturado com o som do mastigado das rodas de ferro nos trilhos.”
Quis perguntar algo a mais sobre o negro Mariano, mas lembrei-me que a aroeira usava da telepatia, tinha poderes extra-sensoriais. Respondeu-me:
“O Negro Mariano morava, com duas irmãs, na propriedade do Senhor João de Matos, chamada Quirino de Cima. Era uma época em que não existiam esses aparelhos mágicos que relatam fatos para as pessoas. E no Ponciano, o contador de história, deu um espetáculo de fabulação. Disse que foi pescar de linha, já tarde da noite, no poço assombrado na beira do Rio Poti. Já estava irrequieto, pela ausência do peixe. E na impaciência gritou, assim: — Tomara que eu pegue um peixe, nem que seja pelas artes do diabo! Neste instante algo começou a fisgar no anzol. Morde firme. Ele dá um puxarão pra fora d’água e o bicho se estatala no chão. Quando olha, vê um tiçãozinho de gente, mais parecido com um macaco, dando umas rasteiras na areia e convidando o Mariano: — Vamos Jogar capoeira, meu negro!”
“As histórias de João Mariano continuariam pela noite adentro, se a plateia não lembrasse que no Ponciano não havia dias de folgas. Logo de manhã cedo estão todos no batente, na labuta novamente. Os arreios, as rédeas, a cangalha e as esporas trabalham de domingo a domingo”
Já estava me sentido como um daqueles velhos mulungus, nos seus dias de fim, com suas raízes aparecendo no ar pela erosão das águas e do vento, quando olho para o casarão e não mais vejo aquilo que existia outrora, o bucólico Ponciano do Senhor João de Matos, o Pudidi, avô da Dona Delite. Tudo agora é outro tempo, outro lugar, outra vida. E a velha aroeira que me pareceu mais triste, mais desiludida, ainda consegue me dizer, num choro implorado: “Amigo, escreva no papel que o meu passado não quer se calar!”


Raimundo Cândido

domingo, 16 de novembro de 2014

O Mulungu



Sorvi, uma a uma,
eras agridoces
da amplidão:
e vi o  teu caminhar,
enleado ao do teu bisavô,
velejando no ar
desta longa solidão
que nuca findou,
e verei, no mesmo ermo,
rijo, de um sem fim, 
o teu assombro aceso,
a me avistar, com anseio,
no contemplar incrédulo
do súbito espanto  
dos que ainda virão
com um olhar idêntico
ao teu avoengo enleio.


Raimundo Cândido

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Da fonte à foz



A gameleira expele o rio,
cobra viva a correr,
brilhando em risos
e vertido  em lágrimas.
O olhar de Gia,
mágica fonte,
vigia o ventre que pare
um líquido potro,
de salientes galopes
e nutre-se no ubre,
suor e sangue,
deslizando na face da terra...
Desce pelo seio
o veio encorpando,
vidro serpenteado,
transpondo imensidões,
portando  acasos e sortes.
Concessor e algoz,
da lama do mundo,
das esperanças nossas.
Desde o alfa ao ômega
flui, de um olhar onde,
a vida trás a morte.


Raimundo Cândido

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Quirimba, o milagreiro.

                                              

Quando o irascível Rio Poti escaramuça pelo sertão, vira um potro indomável, transforma-se num touro de ímpeto buliçoso.  Não perdoa, logo retoma as margens ribeirinhas que são suas e sem precisar dos princípios jurídicos do direito. Na madrugada, quase sempre, vê-se a correria do povo fugindo da língua d’água que entra por baixo das portas, sem pedir licença, e se avolumava dentro das casas que ocuparam as terras baixas da cidade de Cratheús. As asas líquidas do Poti se espraiam, com satisfação. É uma grande tristeza e a mais certa das tragédias anunciadas!
 O volume aquoso vai engrossando à medida que recebe as diversas grotas, os numerosos riachos nas duas margens e vai serpenteando, rumo ao boqueirão da Serra Grande.  Espetáculo bonito de se ver! Um dos afluentes que mais injeta ímpeto, no já petulante Poti, é o Riacho Serrote, que vem acelerado pelas profusas águas do Riacho do Mato, desde o Curral Velho dos Bomfim. Ao chegar à foz, na Barra do Rio, forma-se o encontro do apocalipse com o caos. As águas barrentas invadem as várzeas opostas de um local chamado Quirino, cujos moradores mais antigos já perderam o significado deste nome na memória. Não sabem quem trouxe a designação para um lugar tão abençoado. Ouviram, de um padre, que um Imperador Romano mandou o Governador da Síria, chamado Quirino, fazer um recenseamento na época da infância de Jesus Cristo, daí tiraram o nome. Outro cidadão, metido a sabido, disse que o primeiro Quirino que chegou ao local, fugia de uma guerra dos lados de Pernambuco, numa história que está bem contada no romance “A Pedra do Reino” de um escritor engraçado chamado Ariano Suassuna.  Não faz diferença de como surgiu a nomeação, o que importa é que, ali, onde mora o Chico Guda com sua esposa, Dona Maria das Dores, e o seu filhinho Zé Guda, o gudinha, é o bendito Quirino.
— Ei, compadre Chico, a irrigação na várzea para a plantação de arroz, este ano, vai ser muito boa! Afirmava o amigo mais chegado de Guda. E ele, puxando a rédea da burra estradeira, mas arredia, respondia já com um sorriso de satisfação no rosto: — Meu compadre eu já estou preocupado é com o prejuízo que os pássaros vão me dar. Você viu como a várzea já está apinhada de papa-arrozes e de sibites de toda espécie? Mas preparei uma boa para eles. Vamos lá em casa, para você ver o boneco que fiz, compadre!
Chico Guda (Apelido do tempo de pirralho: —Vamos jogar bola de guda! Convidava os amiguinhos quando teve tempo de brincar de bila) era um fino artífice, caprichara no espantalho feito de tronco de imburana de cheiro, os olhos, o nariz e a boca estavam uma perfeição e até os braços se erguiam aos céus para melhor espantar os pássaros. Digna das obras dos santeiros que faziam imagens para as festas religiosas. O compadre aprovou tanto, mas tanto, que, pasmo, enalteceu aquilo que viu: — Mas Chico Guda... Tu devias trabalhar era nas festanças de Padim Padre Ciço de Juazeiro. Tu ias era morrer de ficar rico, homem!
Uma plantação de arroz dá trabalho. É uma planta delicada. Requer terreno bem preparado, com circulação de água e tem que ser tudo muito bem planejado.
Tinha gente que dizia: — O Chico Guda é um cabra muito afoito! Outro remendava: — Que nada, ele é teimoso, quem já viu plantar arroz num sertão brabo deste!
A várzea alagada, depois da inundação, ficou uma beleza com o arrozal crescendo, já mostrando as espiguetas amareladas para alegria dos papa-arrozes. O espantalho de imburana já estava lá no meio, tentando desempenhar sua missão de afugentar a passarada. Não dava conta. Os bandos de pássaros já se acostumaram com a boniteza da obra de Chico Guda.
A meninada passava o dia com a baladeira esticada, afugentando as aves teimosas. O bando levanta voo e logo volta para terminar de encher o papo. O Gudinha mirava o estilingue até no tronco do espantalho, onde as aves, sem medo, sentavam. Colhem algumas sacas de grãos que deu para a subsistência da família e apurar um dinheirinho na venda.
Os agricultores, no cansaço do solo e nas invernadas fracas, de ano pra ano, alternam as culturas, saindo do arroz para milho, do milho para o feijão e as coisas vão ficando mais fáceis de semear, colher e sobreviver. E o velho espantalho, esquecido, foi ao chão, arrastado pelas enxurradas dos anos vindouros, sumiu da Várzea do Quirino.
O Zé Guda, meninote já mais forte, cumprindo ordens do pai, tinha ido dar águas aos animais no Poço da Barra, quando a arisca burra, em que estava montado, volta e chega sozinha em disparada! Correm e encontram o Gudinha gemendo de dor, sobre uns pedregulhos da beira do rio. Não fraturara nenhum osso, mas o joelho logo incha como um balão. Nem sebo de bode capado, nem banha de tejo gordo ou da venenosa cascavel resolve. O menino caminha como um Sacy Pererê, pulando numa perna só!
Alguém sugere ao Chico fazer uma promessa: — Se os remédios da terra não resolvem, Seu Chico, o remédio do céu é tiro e queda! Faça uma promessa que o menino fica bom na hora! Até diz que existe um santo milagreiro num povoadozinho chamado Lapa, que fica antes de chegar no Castelo do Piauí. Uma imagem de Santo Antônio do rio que os pescadores acharam enganchada nas moitas.  Você sabe né, Seu Chico, ele é o santo dos amputados, dos pescadores, dos caçadores, dos agricultores, dos cavalos, dos jegues, dos burros, dos pobres e dos oprimidos. Faça a promessa e vá pagar na Lapa. Dito e feito. O menino ficou bom do joelho, que permitiu montar, pai e filho, numa parelha de animais e foram em busca de expiar o compromisso com o milagreiro achado nas moitas do rio.
Pelo caminho vão se inteirando dos poderes do santo e dos prodígios alcançados pelos peregrinos, que já voltam das promessas realizadas e pagas. Chegando na Lapa, um lugarejo de casinhas esparsas,  perguntam pelo Santo Antônio.  Informam-lhes que agora ele não está mais no paiol de milho de quando foi encontrado, construíram uma capelinha num elevado, com uma escadaria de tijolos para pagarem as promessas, os penitentes subindo cada um dos degraus e de joelhos.
Alguns rezam, a oração que sabem, em cada degrau que sobem. Outros, no silêncio de cada joelho que transpõe um batente, está a própria oração. Assim vão, pai e filho, ajoelhados, concentrados, agradecidos. Quando, de repente, o Zé Guda levanta-se, espantado, os olhos arregalados olhando a imagem do Santo Antônio do rio, como se visse uma assombração.  O pai o repreende: — Se ajoelha Zé! Respeita o santo que te curou! E o menino, ainda espantado, responde gritando: — Mas é o Quirimba, pai!!! É o espantalho da roça de arroz que o senhor plantou!!! Chico Guda olha, com mais atenção, e reconhece os olhos redondos, o nariz afilado, a boca larga e ainda tem os braços abertos, agora rogando milagres aos céus! Levanta-se também, muito assustado! 
A multidão de fiéis censura o comportamento dos dois. Chico ouve alguém dizer: — Mas que falta de respeito grande é essa? Chamar o nosso Santo Antônio da Beira do rio de espantalho! Quem pensa que são, esses dois, para chegar aqui deste jeito?
Chico Guda pressente que pode haver uma revolta e procura sair rápido do povoado antes que aquela gente se indigne de vez. E na volta vai cismando, ruminando com seus irrequietos botões: “Como foi possível um espantalho sair de suas humildes e calejadas mãos e se transformar no santo milagreiro daqueles? A prova estava ali, ao seu lado, havia curado o seu filho, o gudinha!” E até chegar à abençoada várzea do Quirino rezou... Rezou com todo o puro e reverenciado silêncio que sabia.


Raimundo Cândido

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Bola de gude



As bilas dos olhos,
esferas de fogo,
ardiam escoltando
a bola de gude
que rolava no chão.
Bilava à infância
no tempo infinito...
Chocavam-se luas
nas vidas de vidro
pelos sem fins das ruas.
Com os pés-no-chão,
deslizava amplidão
da irrequieta meninice,
pois uma pequena bila
era meu mágico mundo.
Hoje, é uma tormenta,             
sem o brinquedo fecundo,
e só me resta a saudade
de uma bola vidrenta!


Raimundo Cândido                 

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A corrida


Ímpeto de vapor
exalado das narinas.
Uma iminência bruta
segura nas rédeas,
a sofreguidão dos cascos
obstruída nas baias.
No disparo da porteira
a propulsão titânica,
retesada nos músculos,
risca o vazio das raias
como foguetes de poeiras.
Agitam-se os ânimos,
alinhados, lado-a-lado,
mãos como bandeirolas!
Atravessam olhares,
raios de esplendor,
corcéis de luz e ligeireza...
E até o vento aplaude o vencedor!
Raimundo Cândido

José Alberto de Souza disse...
Se viero, carajo! 
A la pucha, pego o malacara e dou-lhe luz... 
E não adianta gritar 
que esta parada já está ganha 
e ai se alguém m’enfrenar!

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Manurrim, o Galinho da Ribeira do Poti



O time das palavras disputa uma partida. Ao apito da Sintaxe, árbitro da contenda, começa o embate no campo da linguagem. Eis a narrativa do jogo: “O verbo, volante-regente, passa a bola (Ideia cilíndrica!) ao hábil pronome que aplica um finge-que-vai-e-vai, no enigmático adversário. O adjetivo, eficaz bailarino, domina a esfera arisca e traça oponentes, entregando o artefato vivo ao oportunista substantivo, um centroavante rompedor, e pimba na gorduchinha, a pelota vai esticar o filó de náilon, num belíssimo gol de letra”.
Divirto-me com as distintas palavras batendo bola, porque nunca aprendi a brincar, decentemente, com a arte mágica do futebol. Mas a pelota enfeitiça-me, como me encantam as palavras concentradas nos dicionários, para os incansáveis jogos do dia- a- dia.
Ainda retinem nos tímpanos a ovação entusiástica de três mil torcedores, para a Seleção de Futsal de Crateús dentro do Ginásio Deromir Melo, no dia 12 de Abril de 2014. O jogo era na final da Copa Brasil, entre a Seleção crateuense e o fortíssimo time do Krona/Joinville (SC), 4 x 4 e já na prorrogação, quando, no último segundo,  o nosso goleiro Lambão arremessa a gorducha numa incrível curva geométrica que vai esticar o filó de náilon na trave adversaria. Decide a partida, garantido ao time de Crateús o direito de representar o Brasil no Sul-Americano de Futsal, onde a COMEBOL reúne os melhores times da América do Sul! A disputa acirrada foi um grande sufoco para todos aqueles ribeirinhos corações!
Vendo aquela aguerrida seleção, mesmo com alegria estampada nos olhos, deu-me uma tristeza na alma. Um escrete que era, quase na totalidade, formado por Pratas de fora. Por pouco não havia sangue da terra correndo nas veias daquela canarinha, como tantas vezes senti vibrar nas seleções que tinham por base o dream team do Palmeiras, do Dr. Almir, e o imbatível União de Deromir Melo.  Os talentos de casa: Chico Rufino, Ferrin, Marconi, Edir Pinto, Wagner, Ivan, Coloca, Coan, Chôcho, Manurrim, Antônio Henrique, Zé Puim, Sebastião Rufino, Pombinha, Lacuxia e tantos outros que jogavam por amor à amarelinha, nos presenteavam com a fina arte do futebol de salão, na Ribeira do Poti.
Tive o privilégio de assistir a uma disputa entre dois gigantes do futsal brasileiro: O mago Manurrim  de Crateús e o excepcional Ferreirinha do time do Ipu. Das mãos de Chico Rufino a bola chega rápida e rasteira no bico do Bamba de Manurrim e toma um impulso mágico para cobrir o primeiro incauto, a esfera nem quica no chão e é direcionada a um novo chapéu no segundo afoito ipuense. Pelé se vangloria de um gol assim! Mas o ala crateuense não era fominha, tinha por missão servir aos companheiros melhores colocados, para que realizassem o gol. Ouvíamos os gritos desesperados dos torcedores: – Chuuuta, Manurrim!!! O que fazer? Ele nasceu para a magia do drible e ser um eficiente garçom nas quadras!
Desde criança que, com a pelota nos pés, era um exibido malabarista. Nos rachas do entardecer, pelos terrenos baldios da cidade, a primeira providência era formar os times. Depois da disputa de um par ou ímpar, o jogador vencedor escolhia o melhor atleta: – Eu tiro aquele que está com as mãos nos rins. E apontava para um garotinho franzino que se pensava nem poder com a bola. – Quem? O outro perguntava. – Aquele menino com a mão no rim, ali!!! O apelido pegou. Ficou sendo Manurrim, o galinho da Ribeira do Poti, para lembrar outra criança raquítica que também despontava lá para o lado da Cidade Maravilhosa.
A fama do craque, de Antônio Vieira Amâncio, rápido cresceu. Todos queriam ter o Manurrim no seu time. Ele jogou futebol de campo pelo Fortaleza e pelos Urubus, um time todo de preto que foi o protótipo do imbatível União. No invicto Palmeiras foi sempre a alma do time. Um dos clássicos da cidade era o duelo de futsal entre o time dos estudantes, que chegavam de férias da capital, e o todo poderoso time do 4º BEC, em plena ditadura militar, 1966. Os Estudantes, comandados pelo futuro deputado Antônio dos Santos, levavam o Manurrim como arma principal. Era um perigo ganhar dos militares, numa época de incerteza como aquela. O jogo estava 4 x 3 para o Batalhão, quando Manurrim resolve driblar todos os soldados e empata o jogo. A torcida, inflamada por Deglaucir, passa dos limites na comemoração. O Comandante do Batalhão só deixa o povo sair depois de passar uma lição de moral em todos, pois os torcedores haviam abusado da hospitalidade no quartel. Soube-se depois que não foi a alegria dos torcedores que irritou os militares, foi a humilhação imposta pelos dribles de Manurrim, em cima da soldadesca.
Era um jogador difícil de marcar. Raciocínio rápido. Raça. Construía e destruía jogadas num piscar de olhos.  Antecipação tremenda, quando perdia a bola, logo recuperava dando um carrinho, sem faltas e trazia a bola de volta para o seu domínio. Usava da malandragem, ao ver o goleiro adversário muito aperreado, pedia a bola: Dá! Veloz como um beija-flor passeando num jardim, driblando para a esquerda, para direita, por cima e por baixo!  
Um crateuense que jogou no mesmo nível dos grandes medalhões do futsal brasileiro: Manoel Tobias, Leonel, Branquinho, Falcão...
No final do Intermunicipal de 1972, na cidade de Orós, começamos o jogo perdendo: 1 x 0. Pombinha iguala o placar e jogávamos pelo empate. Uma falta a nosso favor, quase na linha da área. Manurrim prepara-se para a cobrança, mas fica de costa para a baliza, do lado da bola. O arqueiro corre para ajudar fechar a barreira, pressentindo um foguete disparado com a manhosa rolando para trás, para algum crateuense bater. Que nada! Um duende tem sempre mil artimanhas preparada para a calada das horas. Ele só vira o pé num ângulo de 90° e o bico do tênis toca no ânimo da pesada bola que sobe como uma nambu assustada, levantando voo. Cobre a barreira e passa pelo boquiaberto goleiro que não acredita na impossível trajetória da cobrança de falta de Manurrim. Viramos o jogo e, mesmo ocorrendo empate novamente, Crateús sagrou-se campeão. Neste feliz dia, Manurrim recebeu das mãos do Governador Virgílio Távora a medalha de melhor jogador de Futsal do Estado do Ceará.
Numa época em que não se valorizavam os talentos do futebol, como se consideram nos dias de hoje, Manurrim foi levado para jogar em Belo Horizonte, onde passou um ano na equipe de futebol de salão da Mendes Junior.  E, quando vejo o cidadão Antônio Vieira, pelas esquinas em bate papo alegre com os amigos, lembro-me daqueles grandes talentos crateuenses que faziam do esporte uma obra de arte, para alegria dos que só sabem bater bola com as palavras, na quadra branca da folha de papel. E sei que, nenhum adjetivo bailarino do meu pobre vocabulário chegará à altura do mágico menino com as mãos nos rins, esperando a bola chegar aos seus pés. Ouça, Manurrim, o verbo, o adjetivo, o substantivo, e todas as palavras da língua portuguesa, te elogiam pelo que você significou e representa para futsal crateuense. Oh, Galinho da Ribeira do Poti!


Raimundo Cândido

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Dideus, o Poeta Andarilho.


                                             
Existe um tipo de humanidade que nunca se basta. Vive continuamente insatisfeita consigo mesma, com o mundo e, por descontente, na incompletude em si, alimenta uma infinda busca. Enigmático, misterioso, incompreensível: eis o poeta! Por isso só devia proferir uma opinião sobre ele, outro ser de mesmo naipe. O ipueirense Gerardo Mello Mourão, apropriadamente adotado como crateuense, a priori, já profetizando ser Patrono da Cadeira 22 da Academia de Letras de Crateús, assim definiu seu afilhado: ”... risca, riscaste, riscará roteiros de pássaros no ar... Os tempos ouvem, ouviram, ouvirão os passos de pedras que pisam, pisaram , pisarão rosas, lírios e jasmins ... Piloto de naufrágios, governador dos tempos, tetrarca dos milênios, tabelião das eras, só os dias e as noites te conhecem, sabem o teu nome e nenhum outro nome.” Sem ser da mesma categoria dos eleitos, ouso enunciar este nome: Antônio Dideus Pereira Sales, o Poeta Andarilho.
As teorias literárias são cientes : quem melhor capta a poesia do ar, das paisagens, das cores e dos sons são as crianças. Pouquíssimos meninos têm a felicidade de crescer sem perder o dom de ver, sentir e vibrar com as emoções da vida, para depois desenhá-las com os pinceis das palavras.
Dideus preservou esse privilégio, desde que andava com uma baladeira dependurada no pescoço pelas matas secas da Várzea do Canto, no município de Independência, atirando em desprevenidos passarinhos, correndo em cima de um cavalinho de pau, com os bolsos cheios de bilas, para mais tarde brincar com outros molecotes no Distrito de Tranqueiras.
O Senhor José Pereira, ao resolver morar na cidade de Crateús, traz umas vaquinhas para ajudar no sustento da numerosa família. E o menino-poeta teve que aprender as rijezas do labor bem antes de maturar os artifícios poéticos do louvor. Com uma cesta na cabeça sai, ainda de madrugada, vendendo pães pelas ruas da cidade, e quando não é com um isopor oferecendo picolés para aliviar o calor dos transeuntes no burburinho do centro comercial. Já estava bem adiantado no colégio quando, com uma caderneta na mão, angariava uns trocadinhos com o jogo do bicho e dando palpite para o viciado cidadão, que arriscasse na dezena do carneiro, pois o mesmo havia tido um sonho, brigara com o vizinho resmungão.
  Quando fazia o curso de contabilidade, na Escola de Comércio, o irreverente professor Dedé Loiola lança um desafio. Escreve um probleminha de matemática no quadro e propõe: Quem resolver esta complicada questão, ganha um dez na próxima prova, mas se errar tem um zero, bem redondinho, no boletim. Dideus olha para um assustado colega e diz: - Eu vou arriscar um olho! E responde. Acerta na bucha, garantindo o dez na ciência dos números, mesmo tendo o pendor acentuado para fino artífice das palavras, e por isso graduou-se em Letras pela Faculdade do Vale do Jaguaribe.
O oficio de poeta foi estimulado pelo cunhado, poeta Hernandes Pereira, que o leva para ser apresentador de um programa sertanejo “Quando as Violas se encontram”, na Radio Educadora, e o Embaixador do Sertão balançava um chocalho estridente para começar o programa. Da recitação dos belos poemas, das cantorias de viola nordestinas e da contação dos causos engraçados tornou-se um fino mestre na arte lírica do sertão.
 Geraldo Mello Mourão já o profetizara, então teve que riscar os roteiros de pássaros como ave de arribação, levando a sequidão nordestina para conhecimento do mundo, pela única maneira que sabia explicar as coisas, a poesia, e do velho patuá de menino escapam os gritos de alerta: “ No Sertão ressequido sem pastagem / não se ouve o trinar de um passarinho...”
O tempo, que tudo ouve, tudo revela e tudo realiza, confirma o filho de dona Cordeira, o vendedor de picolé, a se transformar no radialista, no folclorista, no produtor cultural e no poeta telúrico que assim cantou o chão onde está enfincada a sua raiz, um hino de amor à Crateús: “Eu conheço o teu intimo, tua senda, / teus detalhes, teu chão, tua poeira, / o silêncio, o reclamo e cada lenda, / despejada no colo da ribeira...”
A Academia de Letras de Crateús tem a honra de guardar um tesouro em imagens, uma copia de um vídeo em que o Dideus Sales trás o poeta de Assaré para receber o título de cidadão crateuense, como parte da programão dos inúmeros Festivais de Violeiros que promoveu na cidade. É emocionante ver o velho Patativa sendo levado pela mão do poeta andarilho, como um filho conduz a um pai.
Honrarias não lhe faltaram nesta vida corrida, a prateleira da memória já está repleta, fora as que estão reservadas na morada do deus Pan: cidadão crateuense, tauaense, aracatiense. Magnífico Trovador e Comendador da Cultura popular pela Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel – em Salvador, Troféu Centenário, outorgado pelo programa Gonzagão da Rádio Cidade, do radialista Pedro Sampaio, Comenda pelo Dia Literatura Cearense pela Assembleia Legislativa do estado do Ceará. É membro da União Brasileira de Escritores (SP), Casa do Poeta Lampião de Gás (SP), União Brasileira de Trovadores (RJ), Academia de letras de Crateús, Academia Camocinense de Letras, Academia Tauaense de Letras, Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza e por ai vai...       
E hoje, nem só os dias, e as noites, sabem o teu nome. O Brasil inteiro sabe e se alegra ao ler os versos sublimes e espontâneos que representam, legitimamente, a nossa cultura popular. Se membro da arcádia máxima da literatura do sertão, a Academia Brasileira de Literatura de Cordel, não é para qualquer mortal não, mas ele não se vangloria disso: “... escultor de versos simples / sem pedantismo e laurel / para afugentar martírios / os meus poemas são lírios / orvalhados no vergel”.
Contemplei, com esses olhos de apreciar poetas, a uma espetacular aula sobre versos e rimas, ministrada por Dideus aos alunos de um colégio crateuense, no apertado salão da Academia de letras de Crateús. E com certeza o poeta Geraldo Mello Mourão viu, como eu vi, a poesia resplandecer no ar e despertar poetinhas adormecidos.
Ouvi, com minha audição de atentar harmonias, os mais belos versos do poeta Dideus musicado pelo duende Genildo Costa, entoado no templo sagrado da AlC: “ A Canção da Liberdade eu aprendi com os passarinhos e a estrada dos sonhos tem muitas pedras e espinhos...” E Vi, de relance, no umbral da porta uma avezinha sorrindo em confirmação. Achei aquele pequeno pássaro, bem parecido com o poeta Geraldo Mello Mourão!  


Raimundo Cândido




A CARTA

Há décadas que o velhinho senta a cadeira na calçada e pacientemente espera o carteiro.

Do livro de micro contos O colecionador de dedos

Silas Falcão


segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Beija-flor



                                                                                                       De súbito...
                                                                                                  Memorável
                                                                                   encanto, admirável,
                                                                                   em plumas e asas,
                                                                         nas fráguas invisíveis
                                                                         de afeição multicor!
                                                                           A sugar o fulgor,
                                                                      o néctar e o amor
                                                                  das pétalas doces,
                                                                      até das lábias
                                                                 de galho seco,
                                                                  já sem flor.
                                              Esquiva-se, repentino,
                                          como raio de luz no ar!
                                                     Ser insaciável
                                            a buscar afeições,
                                         onde possa achar:
                                no incomum espanto
                            de meus olhos duros
                                     e no silêncio 
                  invulgar do esplendor!


                                                     Raimundo Cândido

terça-feira, 30 de setembro de 2014

O Poeta Alucinado

                                                 
                A poesia brune e luz o enigmático amor e, inapropriadamente, instiga um desapego na alma do versejador. A poesia altiva e clareia a lucidez e, inexplicavelmente, salienta insensatez no espírito do incauto obreiro das inspirações. Acredite, às vezes, os poetas alucinam. É quando perdem as ilusões e se afogam nas arriscadas correntezas da realidade. Ser poeta é perigoso! Creia-me!
                Há um limite de tênues sinais na área da insana sanidade do porão da linguagem. É lá onde a dubiedade, das emoções e dos sentimentos, embriaga a alma. Entende? Quem corre atrás do vento compreende. Os poetas! Eles sabem que o redemoinho das palavras sempre os engole, arrasta-os para o reino da solidão, para um deserto densamente povoado.  Os poetas só não percebem quando seus pés estão se afundando, lentamente, nos pesadelos da realidade, na irreflexão. Efeito da narcose do limo que escorre das palavras. A pele da alma sangra, um fogo jorra da rubra íris a distribuir estrelas luminosas por aí... Pelas intransitáveis esquinas. Tudo decorrente da árdua luta com as palavras. Um exército de Lexemas secos, de vocábulos pegajosos, de palavras enigmáticas e escorregadias que nunca param de inquerir a volúvel senha do baú das sintaxes: - Trouxestes a “Chave”?
É um aceso sinal quando as marcas do tempo sulcam o rosto de um grande vate e este fica impossibilitado de se contemplar, até no brilho metálico do espelho. Foi o que aconteceu com o grande poeta alemão Friedrich Hölderlin, ele caiu, quase por opção, no labiríntico porão das palavras e transcendeu, ficando sem coragem de olhar a sua imagem na superfície refletora, o lugar sem lugar. Preferiu tornar-se uma demente árvore, nas bordas de uma floresta: “Ai de mim! Onde vou ver / flores no inverno, e onde / o brilho do Sol, / e sombras da Terra? / Os muros estão postos / mudos e frios, ao vento / tilintam as flâmulas.”
De tanta ficção macabra, histórias sinistras, poemas perturbadores e de uma paixão irrefreável por bebidas fortes, Edgard Allan Poe enlouqueceu! E ao ser chamado de louco redarguiu: — “Doido, eu? Resta saber se a loucura não representa, talvez, a forma mais elevada de inteligência." Poe, desde menino, tinha medo do escuro e, na sua derradeira coma alcoólica, já hospitalizado, pedia aos médicos que explodissem seu cérebro: — Senhor, socorra a minha pobre alma! Na certa se lembrava de um corvo a lhe responder: — Neve more.
Sim, amigo, os poetas, às vezes, perdem o siso, arruínam as faculdades, ficam privados do juízo. Mas não é motivo para ter pena deles. É o resultado de uma busca inesgotável de sentidos. Pagam o preço!
Está pagando o preço o senhor Mario Gomes, perambulando pelas ruas de Fortaleza, como um mendigo sem dono, um cão pulguento abandonado para morrer no meio da rua. Na realidade é um grande poeta, um andarilho por opção caminhando nos desertos da cidade, na sua solidão povoada. Uma fotógrafa vendo a figura ímpar e assombrosa de Mario na mesa de um bar, clica-o e manda a foto para um concurso cultural na revista National Geographic, além de premiada, chama atenção para demência de um Poeta Alucinado, que nos diz: - Não estou abandonado. Abandonei o vício de viver obedientemente a esta sociedade. E completa, poeticamente: — Eu, pela manhã, como lagartas e, no crepúsculo, defeco borboletas.
O fundador da Academia de Letras de Crateús, poeta Júnior Bonfim, ainda bem lúcido em sua verve poética, a definiu assim: É um Templo Ecumênico para quem cultua a liberdade da palavra. Recebemos, diariamente, como numa igreja, a visita de escritores, poetas e admiradores da nossa cultura. Um dia, subitamente, como aparição espontânea, surge por aqui um grande poeta, tal qual um beija-flor atraído pelo pólen do Templo da Poesia. O poeta crateuense Zezinho retornava à terra natal depois de 64 anos perambulando pelo mundo a distribuir estrelas com a rubra íris de versejador. Todas as quintas-feiras, ele chegava bem cedo, com uma arroxeada flor na mão, para homenagear a ALC. Recitava seus versos maravilhosos sobre a natureza, sobre amor e sobre a fé. Pediu até que mandássemos, pela internet, um soneto para uma de suas musas prediletas, a apresentadora do programa Mais Você, Ana Maria Braga. Ficamos, impacientes, a aguardar resposta.
Mas a Insensatez já corroía o espírito do incauto obreiro das inspirações e só notamos quando o vimos perdido no labirinto cruel das palavras. Da calma, para o irrequieto distúrbio, foi só um pulo da cadeira: — Êpa!!! Tem alguém de plantão aqui, Seu Raimundo!
Lembrei-me de Allan Poe, assustado com um corvo. Perguntei: — Como? O que você falou mesmo, poeta? Ele aproveitou e do seu deserto de insanidade total, disparou: — Eles estão usando telepatia para me perseguirem! Deve ser o capiroto fantasiado de homem. Acham que sou o herdeiro do Rei da França. Minha cabeça está para estourar, não aguento mais! Estou em petição de miséria.
Continuou, por um bom tempo, com um  rosário confuso de insanidades súbitas: — O tio Duda, ele mesmo, passou três meses estudando entre os monges do Tibet. Trouxe uma droga poderosa para ligar a alma ao corpo. Ele dá uma de morto! É a droga da imortalidade. Sabido, ele, não? É mentira! Ele está morto como eu estou!  A vida inteira com essa criatura me perseguindo. Meu Deus, que horror!
O poeta sumiu, como os beija-flores que chegam e se vão. Preocupados, procuramos por toda cidade e nada. Desceu na correnteza do rio da ilusão, fugindo das suas perseguições imaginarias.
O perturbado amigo Zezinho, em sua rápida passagem pelo Templo da ALC, deixou-me com uma grande preocupação. Como o poeta, Friedrich Hölderlin, estou a imaginar as penúrias do porão das palavras e fico com meus botões a dizer: — Ai de mim! Como será quando o verão da insensatez florir, sem o aroma das poesias, na Ribeira do Poti?


Raimundo Cândido

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Canudos



Quando Canudos caiu,
uma epopeia de loucura
num cordão de fanatismo,
eram 20 mil almas penadas
engolindo hóstias e balas
afeito cascavéis chocalhando
fome e sede no sertão.

Quando canudos fraquejou,
seus jagunços esquálidos
vomitaram rezas de fogo
na ira do corta-cabeças
que não indultou um pecador:
velhos, mulheres, crianças
arderam nas caieiras no sertão.

Por fim, Canudos calou:
abafou-se o gemido,
silenciou-se o lamento
de angustia e dor
e só se ouviu um choro santo
rogando luz nas trevas
das veredas do sertão.


Raimundo Cândido

Hildo Regis disse...
Até onde e quando você vai deixar de se superar. O poema é fantástico. Na primeira estrofe o problema é apresentado: como temática, Canudos; e como formato poético, a Epopeia. A segunda estrofe nos faz viver o conflito e pisotear no sangue da chacina. O último nos conduz à reflexão, através do silêncio, do gemido quase ladainho, uma espécie de conúbio entre homem que jaz e natureza que estremece. Sei lá, é tudo muito surreal. Parabéns! 

José Alberto de Souza disse...
E lá se foi Antonio Conselheiro 
conduzindo toda sua gente 
a um sacrifício inglório 
em busca duma esperança 
perdida nos confins do sertão.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Beco da Cachaça

                                           

Era um entardecer pesado de ilusões naquele sábado, 13 de Setembro de 2014. O começo do fim da semana é o mais generoso dos dias, pois desata liberalidades no ar. Pela Rua Cel Zezé, entre as ruas Francisco Sá e do Instituto Santa Inês, caminhava pasmo, incrédulo com o que não via.  Nenhum bêbado, com suas pernas trôpegas, trafegavam pelo velho Beco da Cachaça e exclamei, como se os ébrios de outrora pudessem me ouvir: “Não é possível, meu Deus! O mundo está mesmo mudado!”
 13 de Setembro, o dia oficial da cachaça, e o velho Beco que tanto acolheu os sequiosos ébrios da cidade era um longo e dolorido silêncio estampado nas minhas retinas.
O clima taciturno da tarde trouxe-me as velhas e frondosas algarobas que despejavam sombras de alívio pelo canteiro central, onde vi caírem honrados cidadãos pelo peso da ebriedade, ofertado no teor alcoólico da impiedosa Lagoa do Barro. Como a famosa Jeritiba, quente e forte, que foi proibida pelos portugueses, no século XVI, para proteger a fraquíssima bagaceira lusitana. Chegaram a destruir todos os alambiques da Colônia. A Revolta da Cachaça foi tremenda, um luta feroz no Período Colonial até à vitória da aguardente brasileira, que por fim estava liberada, no dia 13 de Setembro de 1661. E ficou sendo o dia da cachaça. Dizem que Dom Pedro I comemorou a Independência do Brasil com um porre homérico, saboreando a mais pura pinga da terra.
  Com a chegada do Trem, em 1912, aquele frequentado quarteirão, como as famosas ruas 24 horas do mundo, passou a se chamar Beco da Estação, a porta de estrada da cidade. E o beco da cachaça, como surgiu? Pergunto aos mais velhos. E eles respondem-me: “– O Beco da Cachaça é do tempo que o cão era menino e o diabo era rapaz”. “ – Beco da Cachaça é aqui, ó!!!” Um frequentador espirituoso explica-me, apontando com o dedo para a garganta. Gracejam, mas sabem da importância do célebre quarteirão, como uma sala de espera, para a chegada da Maria Fumaça e para afogar as mágoas dos crateuenses que inventavam qualquer desculpa para “meter os burros n’água”. Os nomes das ruas, dos locais típicos da cidade vêm mesmo é da inteligência criativa do povo, que vive a se divertir: Rua da Pimenta, Rua do Xique-Xique, Rua da Cruz, Rua do Beiju, Beco do Pecado, Beco do Crime, Beco da Galinha Morta, Beco da Cachaça...
Aos domingos, à noite, quando o trem retornava do povoado de Oiticica, da calçada da Estação até o Botequim, “A fonte dos Passarinhos”, de Seu Jaime, ficava lotado de gente, a maioria bebericando uma cachacinha, que ninguém é de ferro e se necessita afogar as doloridas mágoas. Quando a sanfona de Antônio Pedro e o pandeiro do Manoel Picolé, que animaram a viagem no trem da Ibiapaba, resolvem dá uma palhinha, o Beco virava o verdadeiro paraíso. O trem, que saía para Fortaleza às 4 da manhã, foi o grande propulsor da vida, e também da morte, no Beco da Cachaça.
O comerciante Belmiro, rapidinho vendia cinco mil litros de pinga Lagoa do Barro, e em cada dose uma história, e em cada gole uma tragédia.  Na realidade, o Beco começava no Bar do Tio Onésimo, que tinha uma clientela bem selecionada de whiskys e cervejas. Bancários, médicos, professores, uma classe mais abastada da cidade que não deixava de ter a fina sujeição de corpo e alma com o copo. Um leque de botequins mais rústicos se abria nos dois lados da rua para uma freguesia menos favorecida, e eram esses frequentadores que movimentava o ânimo do Beco. A polícia cansou de levar bêbados, bonequeiros, arruaceiros que perturbavam a embriaguez dos outros. Quantas vezes os gumes das armas brancas brilharam no escuro em represália a um desafeto e ali mesmo ficava um corpo estendido no chão poeirento do velho Beco: um carreteiro, um sapateiro, um alcoólatra, um cidadão.
De longe, sentia-se o cheiro forte de panelada requentada, no Botequim do Tio Nande ou fervendo numa enegrecida lata de querosene sobre pedras no chão, no Quiosque de madeira do Chico Soldado.
- Tio Nande traga uma panelada com gosto de merda! O estalo do tabefe no pé do ouvido do bêbado desaforado tinia, por um bom tempo, para ele aprender a respeitar um ambiente familiar.
O Juramar Bonfim tirava era reisado por todos os bares, como um pagador de promessas. Já tinha passado no Tio Onésimo, pela mercearia do Seu Raimundo Carlos para tomar uns “biotônicos” e ouvir os disparates do desmedido comerciante que vendia de um a tudo: casca de angico, de aroeira, mel de abelha, pavio para lamparina, tamanco, chinelo, pião, bilas, guizo de cascavel e a bendita cachacinha para queimar os dentes. Dirigiu-se para o hotel-bodega do Seu Geraldão e o achou meio triste.
– Que houve Geraldão, parece um pouco abatido? Que tristeza é essa? Pergunta Juramar, um velho freguês da casa.
– É que eu acho que os ratos estão bebendo a minha cachaça!
– Mas não pode ser, Geraldo! Que história é essa? Como que um rato pode beber cachaça de dentro do litro?
– Estes safados são espertos! Eles derrubam o litro, tiram a rolha com os dentes e metem a cauda dentro, depois só ficam lambendo o rabo.  Hoje pela manhã achei dois litros secos no chão e uma ruma de ratos bêbados! Você me acredita, amigo Juramar?
O experiente Jura, já com a mente enevoada e que nunca duvidara de nenhuma estória do Beco, achou que era hora de ir para casa. O velho Beco da Cachaça iria continuar por muito tempo ofertando ilusões e delírios aos fregueses crateueses. Juramar sabia, e sabe, que a cachaça nos dá liberdade de pensar e sonhar. Mas ele sempre soube a hora de parar, antes que “ In vino veritas”: antes que, no vinho esteja a nossa única verdade!
 
Raimundo Cândido

    

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Cancão


                                                          Travesso a fuçar,
                                                          intrometido de enleio,
                                                          um arruaceiro na mata,
                                                          de galho em galho
                                                          bisbilhotando o alheio.
                                                          Tudo devora, onívoro!
                                                          Engole fogo, ignívoro,
                                                          e não se admire não,
                                                          do espinho de mandacaru
                                                          ao miolo de xique-xique
                                                          come, mastigando beiju!
                                                          Enxerido, mas prevenido,
                                                          anda aos magotes,
                                                          se agrupam nas estripulias,
                                                          acuando assombros e cobras
                                                          e não temem nem gavião.
                                                          Um aguçado sentinela,
                                                          e se lhe vê, galgando a caatinga,
                                                          alardeia: aguda sirene no sertão!
                                                          – Cancão! – Cancão!

                                                          Raimundo Cândido

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Dona Iracema, a Cancionista do Sertão.

                                     

Mal despertada a noite das tempestades, na Revolução de 64, pelo medo dos rastros de fumaças subvertidos que se alastravam por toda América Latina, e o militarismo brasileiro dissolve os partidos políticos e impõe uma férrea censura prévia, fazendo com que as canções, de magoa e dor, fossem as únicas flores a brotar no solo desta aridez imposta. A crise impulsionou uma inventividade musical como nunca se viu antes: proferir sem dizer, protestar pelo grito abafado na garganta que feriria os ouvidos infames, como incisiva faca amolada. Do cantor-poeta Chico Buarque jorrou “Apesar de você” afrontando os brios autoritários de um tirano chamado Médici e do poeta-cantor Geraldo Vandré brotou “Pra não dizer que não falei das flores” o hino de resistência do movimento civil e estudantil contra a ditadura militar.
Em Cratheús, um pouco antes de se deflagrar “O último dia de lua cheia” como ficou conhecido o 30 de março de 1964, que deu inicio às trevas brasileiras, no ano de 1958, a poeira das ruas subia pelos redemoinhos dos dias secos, de mais uma grande estiagem que assolava o sertão. A cidade estava quente pelo clima e pela alma do sertanejo, que nunca se entregou, nunca perdeu o ânimo. A administração municipal, do prefeito Raimundo Resende, ficava a desejar, com um velho motor a óleo iluminando insuficientemente as ruas, sem o auxilio necessário para os agricultores que sofriam os efeitos da seca. E o partido da situação, UDN, se desgastava.
 Das situações difíceis sempre surge a criatividade dos bons artistas, dos poetas sensíveis aos momentos, como Chico Buarque, como Geraldo Vandré ou como Dona Iracema Martins, uma poetisa crateuense que, inspirada na corda do seu violão, criava repentes e grudentas vinhetas sobre os personagens folclóricos e políticos da região, para suas campanhas politicas. Sua casa era frequentada por pessoas que vinham encomendar jingles sobre candidatos das cidades vizinhas. A fama de cancionista já se espalhara, pela eficiência dos humorados versos, que causavam ímpetos rancorosos na oposição.
Um amigo, o Samuel Lins, fundador da Escola Técnica, afirmava:
- Oh, Iracema cabeçuda! Porque fazes essas cantigas, se só dão em confusão? Se tiver que fazer, faça, mas cobre, pelo menos!
No dia em que o Dr. Antônio Catunda retornou, jovem recém-formado, as moças casamenteiras da sociedade ficaram em alvoroço e na expectativa. Um médico nos cafundós do sertão, solteiro, metido a bonitão e todo pintoso...  A festa seria no Crateús Clube e as colegas avisaram para dançarina Iracema, que já estava de vestido novo: - Oh, Iracema, não te metes no meio não! O diabo atentou (São palavras de Dona Iracema!) e a primeira que ele tirou para dançar foi a poetisa. As outras ficaram só roendo! Mas o escolhido de seu coração foi o Antônio Coriolano, com quem teve 13 filhos.  
Iracema sempre foi uma jovem vivaz, de espirito aceso, que contagiava os ânimos daqueles que a rodeavam. E aos 96 anos não perdeu esta nobre característica.
A campanha politica do ano de 1958 foi um fogo aceso, com sopros em brasas de lado a lado.  A UDN, mesmo desgastada, mas com a máquina administrativa a seu favor, apresentou o Dr. Gonçalo Claudino Sales como candidato oficial. A coligação PSD, PTB, PSP candidatou, novamente, o Sr. Raimundo Bezerra de Melo, o Patriota de respeito. O Prof. Luiz Bezerra assim escreveu sobre essa disputa: “Foi uma campanha violenta de parte a parte e a opinião pública se dividiu. O povo sentia a força da coligação galvanizada por José Bezerra de Melo, que incontestavelmente foi a alma da vitória dos coligados.”
Dona Iracema havia feito algumas vinhetas, que eram cantadas pela irmã do Zé Bezerra, a Maroquinha Mano, nos palanques e repetida pelo povão, que puxa cordão: “O Encarnado correu com medo / Da grande festa que vai haver / Agora viva o Partido Azul / E o Encarnado é que vai roer!”
O povo lotava a grande quadra do Barrocão para ouvir o discurso do candidato a prefeito, mas principalmente a oratória inflamada de Zé Bezerra que tinha o dom mágico da palavra fácil. Ali perto, pela Rua Poti, o Dr. João Afonso já dera ordens para soltar um touro bravo e que fosse tangido para o meio do povo. Enfezado, o animal correu e abrindo caminho entre os eleitores, dispensando todos para suas casas. Só ficou uns corajosos afoitos para descobrirem de quem era o Touro raivoso que acabara com o comício.
  Dona Iracema não se deu por rogada. No outro dia uma vinheta já estava na boca dos eleitores, sendo cantada em cada esquina da cidade: “Façam outra passeata, meu povo / Samuel tornou a voltar/ Mas se soltarem o touro de novo / Sei que nós vamos matar!”
No novo comício, na mesma Praça do Barrocão que estava mais lotada que antes, só se via o povo olhando para os cantos, esperando o touro meter os chifres na esquina, para abatê-lo à bala, como abateriam o candidato da velha e viciada UDN, mas no voto.
Os políticos e cabos eleitorais da UDN, sentindo o braço da derrota, lhe aberturando o pescoço, tentaram viciar as urnas depositadas na sede dos Correios e Telégrafos. O 4º Batalhão de Engenharia garantiu a fiel e legal apuração. Mesmo se detectando uma das urnas totalmente viciada, a comissão apuradora deu o resultado, estava eleito o Sr. Raimundo Bezerra de Melo, o Patriota de Respeito.
No dia 25 de março de 1959 toma posse o novo gestor da administração municipal. O Prof. Luiz Bezerra, narra novamente: “Foi uma coisa triste a entrega dos despojos da prefeitura. Era como se ali houvesse passado um tufão sujando, quebrando e carregando tudo. Não houve prestação de contas, não existiam arquivos, não apareceram os livros contábeis. Os Udenistas haviam sumido.”
  No dia seguinte o bancário Edson Martins, que era também um afamado locutor, iria ler a crônica do escritor Luiz Bezerra, nos potentes altos falantes da Rádio Educadora. O professor lhe dissera que a crônica daquele dia seria assombrosa e o povo poderia entrar em alvoroço, pois falaria sobre o satanás que esteve, recentemente, visitando a cidade de Cratheús! Edson não se conteve, foi buscar pessoalmente a crônica na Tipografia Central, uma das empresas do professor.
              Vai logo cumprimentando o tipógrafo e lhe pergunta: - Oh Nene Coriolano, o seu patrão, Prego dourado, está?
               - O Professor está sim. Entre aí no escritório dele!
O locutor entra cantarolando uma animada marchinha: “Soluçando vou deixar minha prefeitura / Adeus amigos para nunca mais ver / Adeus minha mamatinha / Sou obrigado a ti entregar ao PSD / Adeus, adeus minha prefeitura / Isto é sina de um ordinário prefeito / Adeus, adeus minha mamatinha / Adeus amigo para nunca mais eu ver / O amigo que encontrar minha caveira / peço que leve e entregue a outro alguém / Diga a ele que eu morri foi de desgosto / envergonhado porque nunca paguei a ninguém...”
Luiz Bezerra cai na gargalhada e pergunta de quem é aquela preciosidade.
Edson responde: - Ora, professor, de quem poderia ser? Só pode ser de Dona Iracema Martins, a mãe de seu funcionário Manoel Nene Coriolano! Não é ela quem sempre faz as marchinhas politicas de nossa querida Cratheús!
- A veia poética de Dona Iracema não deixa passar nada! Conclui o professor.
Findou-se o ano de 1959 e as noites horrorosas das tempestades se foram, para alívio nas nossas esperanças, mas sinto a falta de uma canção que profira o meu grito, ainda abafado na garganta, e que faça com uma musical faca amolada ferindo os ouvidos dos incautos de agora.  Acho que eu vou à casa de Dona Iracema ver o que ela tem a me dizer. Vambora?   
 

Raimundo Cândido