sábado, 10 de novembro de 2012

APRESENTAÇÃO DO LIVRO "TROIA - UMA VIAGEM NO TEMPO"


Autoridades aqui presentes,

Senhoras e Senhores,

Boa Noite!

Apresentar um livro, para mim, é como oferecer um cardápio de entrada para um fausto banquete. É tarefa delicada. Exige habilidade. O responsável há que se esquivar da tentação do exagero. Impõe-se que cultive aquilo que os franceses chamam l’sprit de finesse (o espírito de finesse), servindo aos convidados apenas o indispensável para despertar o sistema olfativo. Com simplicidade e discrição, optar pelo petit e apontar para a mesa em que será servido o prato principal. E o principal aqui é o livro e sua autora.

Conheci a doutora Grecianny Carvalho Cordeiro no Palácio da Luz que congrega os amantes das letras abrigados sob a AMLEF – Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza, aqui representados pelo nosso Presidente Seridião Montenegro e pelo General Torres de Melo, nosso confrade. À época, ela já tinha escriturado o seu romance inaugural, Anjo Caído, que nos sacode com a história de Maria, jovem de alma marcada pelas feridas da exploração sexual. Exibindo a Carteira Profissional de quem resolveu se dedicar ao ofício de promover a justiça, conquistou-nos com seu rosto angelical, sua alma generosa, o coração em festa, a límpida fronte. Mãe e mestra, pisou no tablado acadêmico com seu andar libertário. Na qualidade de custus legis, fiscal da cidadania feita ternura, afeiçoou-se ao nosso convívio para nos lembrar a obediência aos Estatutos da Paz e à Legislação do Amor.

Hoje a romancista Grecianny nos mimoseia com mais um trabalho de fulgor e fôlego, de fascínio e fantasia: Troia – uma viagem no tempo. Com indizível felicidade escolheu um dos mais ricos e populares conflitos bélicos da história para reescrever com a tinta de sua genialidade. Montou uma passarela literária em que desfilam as figuras mitológicas da famosa narrativa. Como uma prestidigitadora montou um show mágico em que a roda da história se inverte e o futuro visita o passado. O brasileiro Mário é acordado por Cassandra em pleno Templo de Apolo. Grecianny organizou um baile de fantasias em que o factual e o quimérico ocupam a mesma pista de dança. 

Tenda ou Lenda, matéria real ou arroubo mitológico, a Guerra de Troia se constitui um dos eventos mais arraigados no inconsciente coletivo da humanidade. Seja pela inserção nos pergaminhos históricos ou pela mera tradição popular da transmissão oral, a narrativa poetizada por Homero ganhou a simpatia universal. Expressões como “gregos e troianos” (protagonistas da cizânia), “o calcanhar de Aquiles” (que era invulnerável em todo o seu corpo, exceto no calcanhar), “presente de grego” (que é usada para se referir a um presente dado com más intenções ou que, ao invés de nos deixar felizes, causa frustração) e outras mais se incorporaram ao cotidiano geral. 

Confesso que estamos diante de uma obra de sabedoria. Ou melhor, um livro saboroso. Sabedoria (em latim, sagasse) encontra, também no latim, a sapientia, que significa conhecimento saboroso. E sapere, em latim, tem o duplo sentido de “saber” e “ter sabor”

Vejam, por exemplo, como é descrita Helena, a formosa e famosa, bela e estonteante Helena na página 25...

Desaprumado semeador de versos, desafinado aprendiz de poeta, sempre cedi aos espasmos da estupefação em relação aos romancistas. Eles me despertam certa inveja admirativa. 

Apesar de ambos perscrutarem as grutas da transcendência, há entre o poeta e o romancista diferenças essenciais. O poeta produz o vôo rápido, o raio meditativo, a faísca genial, o relâmpago do achado, a centelha da alegria. O romancista é o condoreiro do vôo demorado, o arquiteto do edifício meticuloso, o mantenedor da sustentabilidade inventiva. O poeta acende o êxtase com o palito de fósforo e parte; o romancista senta-se no terreiro e descreve o crepitar de cada pedaço de madeira da imensa fogueira. 

Poetas, admitamos: os romancistas alçam vôos mais altos que nós. É óbvio que há exceções. 

Neftali Ricardo Reyes Basoalto, que o mundo conheceu como Pablo Neruda, o mais caloroso poeta que o frio austral do Chile produziu, escreveu um poema-romance em que cantou os rios caudalosos e as imensas florestas da nossa América. No seu Canto Geral festejou nossos bosques e avenidas, amaldiçoou os pequenos déspotas e louvou os libertadores de nossa latino América. 

O cearense Gerardo Mello Mourão, o maior poeta do século XX segundo a Guilda Órfica Européia, foi outro que construiu um império poético digno das melhores civilizações romanceadas. Com sua dicção refinada, Mello Mourão nos brindou com Invenção do Mar, a epopéia da nacionalidade brasileira. Neruda e Gerardo, que foram contemporâneos e amigos, constituem monstros sagrados excepcionais que apenas atestam a veracidade da regra: os romancistas são maiores que os poetas. Não por acaso François Mauriac dizia que “o romancista é, de todos os homens, aquele que mais se parece com Deus: ele é o imitador de Deus”

Aprendiz de poeta, vim aqui apenas para reverenciar a romancista da nossa AMLEF e incitá-los a saborear este delicioso livro. Confesso-lhes que, definitivamente, este não é um presente de grego!


(Júnior Bonfim, no lançamento do Livro “Troia – Uma Viagem no Tempo”, de autoria de Grecianny Carvalho Cordeiro, na noite de 09.11.2012, no auditório da Procuradoria Geral de Justiça do Ceará)

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Do Mercado Velho à Igreja Senhor do Bonfim, tangidos por Raimundo


Ontem recebi a visita sempre sorridente do grande poeta Raimundo Cândido Teixeira Filho, meu amigo há muito mais do que apenas um par de dias. Conheço Raimundo de um tempo em que o mundo parava somente para apreciar a gente na doce beleza de brincar de ser menino – ele quase nunca crescendo nos banhos demorados da temível "goela" do Poti, eu esquecido de crescer nas correrias atrás de bilas e papagaios. Se algum dia trocamos duas ou três palavras não lembro, talvez não tivéssemos tempo. Talvez Raimundo fosse calado, talvez eu, inquieto. Talvez, porém, o mundo, àquele tempo, fosse um mundo grande demais e nós, embora vizinhos, nunca nos esbarramos. Talvez. 

Quando voltei a encontrar Raimundo, anos e anos e anos depois, a vida já dera com a gente no chão um bom pedaço de vezes. Raimundo era então um curioso, um menino grande correndo as bodegas da cidade, bebendo-lhes todos os segredos, inclusive e especialmente os inventados. Eu, de minha parte, meio esquecido de crescer, aprendendo, quando muito, a ser besta. Tenho para mim, porém, que, ressalvadas as devidas diferenças, éramos eu e ele duas figuras! 

Hoje eu sei que Raimundo é uma daquelas descobertas que fazemos uma vez na vida, coisa única, sem sobresselente. Em risco de extinção, devemos cuidá-lo como quem cuida de uma cacimba num ano de seca braba no esturricado sertão cearense, bebendo-o com parcimônia, devagarzinho, apreciando todo o seu poder de hidratar nosso querer bem. 

Mas, como eu dizia no princípio, ontem Raimundo veio me visitar. Veio avexado, de passagem apenas, na correria de ir pegar o ônibus para nossa capital. Não é que o danado estará com suas obras expostas na X Bienal Internacional do Livro do Ceará! Para ser mais exato, no estande de número 121 da Associação Cearense dos Escritores. Nunca é demais lembrar que Raimundo é um feliz autor de três livros: [1] Karatis, [2] Raiz do poema: teorema pra nos tanger e outras esquisitices ao quadrado e [3] Crateús – do portão da feira aos galos das torres – este último o verdadeiro motivo de sua visita. Vejam só vocês, veio me deixar com antecedência sua mais nova obra, a ser lançada somente no dia 17 próximo. Arre! Me senti nem sei como!... 

Mas isso é bem próprio do Raimundo: essas atenções. E pelo pouco que vislumbrei do livro – ao qual prometo retornar com mais vagar num futuro próximo e aqui discorrer sobre ele, se vocês me derem a oportunidade de fazê-lo – e pelo pouco que vislumbrei, eu dizia, Crateús inteira, todos aqueles que provarem das letras derramadas da obra de Raimundo, hão de concordar comigo que ele é um iluminado, prendendo em nossa memória – e mais! –, em nossos sentidos muito daquilo que nosso município tem e teve de melhor. No livro do Raimundo, não temo em dizê-lo, em cada folha sua, um pouco da alma de cada um de nós. Desafio qualquer um a lê-lo e a não se identificar, n'algum momento, com alguma coisa. 

Não sei vocês, mas eu... vixe como eu gosto do Raimundo. Salve. 

Lourival Veras


João Silas Falcão disse...

Lourival, bela crônica. Justa homenagem ao Raimundo Cândido. Onte, sexta-feira, 9/11, o dito personagem de sua crônica me deu o prazer de sua longa visita ao estande da ACE. Conversamos. Conversamos. Rimos. Retornamos aos mergulhos do Rio Poty. Ele autografou três exemplares do seu Grande Mundo de memórias nossas que é Crathéus- do portão da feira ao galos da torres. Hoje, ele retornará ao mesmo ambiente da nossa Associação e sei que mais dois exemplares o esperam para autografos. R. Cãndido é um bom humano e outros adjetivos que eu o defino em meu prefácio ao Crathéus... Parabéns pela bela crônica, Poeta.

 José Alberto de Souza disse...

Pois é, como dizemos aqui no sul, o homenzinho é um "come-quieto". Eu até que desconfiava mas juro que não sabia que ele já era autor de três livros. E, se não fosse, já estava na hora dele botar o seu bloco na rua, para apresentar essas alegorias maravilhosas da sua gente e de suas raízes... Crateus se universaliza com seus escritos!

domingo, 4 de novembro de 2012

As 7 Noivas do Mozão


 
               Desde quando a serena imagem de Nossa Senhora passou a fitar, do topo do Arco de Fátima, os devotos crateuenses que  num deliberado ato de amor, prenderam-na em grades cordiais, desde quando os irmãos Lúcia, Jacinta e Francisco passaram a lhe fazer contemplativa companhia que o quarteirão da Rua Dom Pedro II, partindo da divisória linha férrea até a calçada do imponente prédio do Banco do Brasil, se transformou numa verdadeira algazarra de transeuntes. Não faltam motivos para se percorrer aquele trecho comercial nas primeiras horas da manhã, enquanto o sol inclemente pouco arde.
              O trânsito é intenso naquela via, mas bem poucos se benzem ao passar pelo venerado e histórico arco, pois a preocupação com o dia-a-dia os torna indiferentes, num vivo clima de inquietação, em busca de sobrevivência.
               A maioria são criadores de gado, ovelhas ou porcos que se desesperam atrás de comprar ração para que seus animais possam escapar desta impiedosa seca de 2012, a pior dos últimos trintas anos.
              O comércio do saudoso Senhor Izauro Machado, um dos mais antigos daquele trecho, é do tempo em que cada prédio tinha uma avantajada Jiboia (cobra de veado) para dar conta das infestações de ratos. Hoje, os filhos Flávio e Antônio, continuaram a tanger o empreendimento, conservando os antigos fregueses aliado aos novos que vão chegando pelo bom atendimento e pelo clima de convivência cultural.
             — Amigo Antônio, qual o preço da ração, hoje? Pergunta um Senhor com um elegante chapéu de massa e ares de fazendeiro.
              — O milho está 46, o xerém e o resíduo 48 e a soja a 80. Aproveite que já vai subir de preço.
              Mas há quem nada compre, sendo assíduo freguês das cadeiras de couro cru, dispostas como um convite a sentar-se e lorotar, falar dos políticos, da vida alheia ou contar uma mentira qualquer. Eu, vou só ouvir!
               A palavra que sai da boca do povão é sempre espontânea, carregada de adjetivos, se elogia, enaltece mesmo, se fere, punge como um punhal amolado!
               — É um tinhoso! Um bacorim enjeitado do cangote duro! Alguém chega reclamando de um negócio que não deu certo por aí.
                — Que foi que fizeram com você, meu amigo? Pergunta Flávio Machado já em busca de novos dados para alguma saborosa crônica.
                 Às vezes, velhos conhecidos que há muito se foram em busca de melhores dias regressam, como ave de arribação, e proseiam sobre o que fizeram ou deixaram de fazer, mas sempre confessando suas doloridas saudades.
                 Quando não é o insensato Chico - entre outros tantos que já houve - pedindo uns trocados para comprar cigarros e que logo escapole da sugestão de trabalho, como o capeta foge da cruz, é o taxista Romualdo soltando uma canção melosa, e é ele mesmo quem faz a introdução da segunda voz, pedindo música: — Oh, Romualdo, canta mais uma aí! 
                 — Não posso, não! Ele responde.  
                 — E por quê?
                 — Porque não posso mais andar procurando ela...  Entoa, em voz alta, um melodrama choroso que em pouco tempo atrai diversos curiosos para a porta do armazém.
                 Quem mais chama atenção nas assembleias bisbilhoteiras da Rua Dom Pedro II é o Mozão, um sessentão bonachão que dá a impressão de ter achado o segredo da felicidade, pois está sempre com um sorriso estampado no rosto. Ouvindo-o esquadrinhar a vida do povo, lembrei-me do Poeta Passarinho, Mário Quintana, que uma vez disse: “Não te abras com teu amigo, que ele um outro amigo tem. E o amigo do teu amigo possui amigos também...”
                 Mesmo sendo um caminhoneiro de alto gabarito profissional e tendo conduzido trens rumo ao calorento Piauí, tenho a impressão de que a sua verdadeira profissão é de repórter, pela curiosa tenacidade com que sabe da vida de deus e do mundo, incluindo os segredos das mulheres casadas.
                 Relata com detalhes como um criador espertalhão colocava o gado, já cansado e caduco, propositalmente na linha férrea para depois de atropelado retirar o quarto traseiro e ainda receber as indenizações da REFESA e num espirituoso gracejo conclui: — O “fulanim” era velhaco que só jumento da orelha branca, daqueles que não deixa a gente colocar nem o cabresto!
               Conta-nos da situação dos ricos da cidade que só saem para rua à noite, com medo dos credores, diz que alguns até almoçam escondido para não ter que pagar refeição para os coitados dos empregados. Peremptoriamente afirma: — Eu não tapo o sol com peneira, não! Pode ser meu pai, prestou, prestou! Não prestou, não Prestou! Sei de fazendeiros por aqui que só tem os filhos doutores por causa do leite com água! E tem gente boa que só paga as contas com intrigas, afirma ele.
                 Não sei por que, mas nestas horas lembro-me do velho sábio Freud: “Quando Pedro me fala de Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo”. Mesmo ciente que o homem é dono do que cala e escravo do que fala, contínuo sorrindo e me divertindo com as histórias do Mozão.
                Alguém atenta para o vivo olhar do aposentado maquinista, que acompanha com saudade os passos de uma jovem que passa rápido pelo portão do armazém e pergunta:
               — Mozão e as noivas? Conta aí! 
              Ele ri, mas destrinça lentamente a inusitada história.
               — Eram sete noivas, todas com alianças no dedo, e entre elas havia cinco campesinas Marias. A bicicleta tinha um dínamo colado no pneu que acendia um farol para iluminar as veredas do caminho. Eu, com a cabeleira luzindo de brilhantina, partia do Barro Vermelho até a casa da primeira candidata a casamento, que impaciente esperava com os cabelos que nem mijada de mocó com tanto óleo de mamona que escorria no cangote, passava um tempinho por lá.
               Aquele era o tempo dos réis, quando palavra dita valia mais que papel assinado. Os pais das noivas iam logo ameaçando: — Oh, se bulir, eu capo! Hoje, é um enroscado de novela, que se o cabra namorar mais de sete dias ou ele mexe com a moça ou a moça mexe com ele!
              Quando me despedia da casa da primeira noiva, ela subia num pé de ata para observar que rumo eu tomava, mas eu não era besta, apagava a lanterna da bicicleta e seguia danado para cortejar a segunda, depois namorar a terceira...
               Mas sabemos que isso é coisa bíblica, vejam Abraão, Jacó, Davi e Salomão tinham várias mulheres. Só o sábio Salomão chegou a ter 700 esposas e 300 concubinas e o sertanejo alencarino, cabra-da-peste virado numa girita, não fica muito atrás, não! O senhor Franciné de Pacajus, com 77 anos é conhecido como homem de ferro do sertão, tem três mulheres e 51 filhos sustentando a todos sem a grande riqueza dos velhos profetas.
             Mozão nos confirma que cada uma das mulheres sabia da existência das outras e que todas tinham a absoluta certeza que seria a preferida, por isso nunca deu desavença. Confusão grande foi receber de volta as alianças das outras seis, quando ele escolheu uma das Marias para digníssima esposa. Mesmo assim, o galanteador Mozão um dia trocou a eleita Maria, custosamente escolhida entre as sete noivas, por uma nova esposa e afirma disparatadamente que voltou 500 reais pela permuta... Eita, Mozão feroz!
           Um dia, na terra do frevo e de lampião, um cidadão confundiu o amigo Flávio com o seu querido Secretário de Cultura, e não me surpreendo mais não, porque hoje sei a razão: alguns felizardos atraem espontaneamente cultura assim como o metal é seduzido pelo imã, e se duvidar é só passar um tempinho no armazém do Seu saudoso Izauro! Oh, Cratheús...

 

Raimundo Cândido

José Albertto de Souza disse...
Aqui no Sul, o nosso Érico se orgulhava da sua condição de contador de histórias, E você, caro Raimundo, que “só vai ouvir nas assembléias bisbilhoteiras da Rua Dom Pedro II”, é bem um guardião desta rica oralidade (assim sem “m” antes), “da palavra espontânea que sai da boca do povão”... Preservando-a para a posteridade.