quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Quarar



                                                         No ardor aguado
                                                         do hálito do rio,
                                                         a purificar os dias,
                                                         incidem claridades.
                                                         E a vida maltrapilha
                                                         estende-se no quarador!
                                                         Enodoada e rota
                                                         das pelejas escuras,
                                                         um princípio e fim,
                                                         tingido de brisa
                                                         na insolação da dor,
                                                         exime-se da poeta vastidão,
                                                         e, suavemente, asseia-se,
                                                         úmido de tristezas,
                                                         enxugando a solidão.


                                                                    Raimundo Cândido
                                           (FOTO:  Poço Piau - no poético Distrito de Ibiapaba)

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Camaleão



Leviano...
Convenientemente vão,
inconstante e volúvel
na firme necessidade.
Em galhos secos
dissimulada sequidão!
E desvia a minha opinião
no cambiar do calor
da precisão!
Na rama verde
se estampa
em ardente verdume!
O giroscópico olhar,
a impulsionar,
o bote da língua,
a sorver dos céus, o fulgor,
e dos arco-íris, o esplendor!


Raimundo Cândido

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Sertão



                                          No ardor da luz
                                           vinha o sobressalto,
                                             mas nada brusco,
                                              súbito ou agudo.
                                                Essencial e sereno, 
                                                  apropriado e tosco,
                                                    como se o imutável
                                                      espanto do dia
                                                        se eternizasse por lá! 

                                                                                       Na incisão do sol
                                                                                 abria-se as páginas
                                                                           de onde se entoavam,
                                                                           no ermo da solidão,
                                                                 a isenção, o desamparo
                                                                 no panorama soberbo
                                                           de uma ilusão absoluta
                                                      que arrebata o coração!

                                                                                   Raimundo Cândido

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Posteridade

Foi ontem!
Persisti...
Com um hoje atravessado
no caminho.
O mesmo ar.
As mesmas circunstâncias
de lembranças
inalteráveis
que me retornam...
Um lance alegre,
um ensejo triste,
vicioso.
Eu sei...
A minha sina é persistir.
Raimundo Cândido

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Touradas de Raquel


As antigas ruas do centro de Fortaleza impregnam os pés dos transeuntes de uma doce amargura poética, fazendo com que voltemos, fatalmente, a lhes revisitar. Penso que é uma espécie de magia, feito imã, da Fortitudine que nos diz o seu velho brasão, desrespeitosamente, alterado pelos seguidos gestores que se empoleiram no poder.
Pela Rua Floriano Peixoto dobro à direita, na Rua São Paulo, e sigo para a Rua Gal Bezerril da velha praça do herói viçosense da Guerra do Paraguai, Gal Tibúrcio. Tenho fascínio pela Praça dos Leões, pelo Museu do Ceará, guardião do Bode Ioiô, pelo Palácio da Luz, sede da ACL, pela histórica Igreja de N. S. do Rosário com uma fila de moradores de rua, recebendo uma reles merendinha distribuída por padres para enganar a fome diária e conseguirem dormir, mais uma vez, ao relento na cidade de N. S. de Assunção. Meu coração se alegra, imensamente, quando avisto uma velha amiga sentada no mesmo banco da praça, a escritora Raquel de Queiroz.
Percebo que um cidadão lhe faz companhia, com orgulhosa “poses” para uma cessão de fotos. Ainda bem que ele se retira com a minha aproximação e aproveito para uma afirmativa fortuita, dando sinal da minha chegada.
— Vejo que esteve em boa companhia, amiga Raquel de Queiroz.
Serena estava e tranquila continuou com as pernas cruzadas, as mãos pousadas no colo, quando me respondeu:
— Bom dia, amigo Raimundo. Que bom lhe ver mais uma vez por aqui. Você bem sabe que eu gosto da vida, que simpatizo com as pessoas felizes. Sinto um enorme prazer em viver acompanhada, embora sabendo que a gente nasça e morra só!
Não esperou que eu me sentasse ao seu lado, para perguntar:
— E como está a cálida terra do nosso grande poeta José Coriolano?
Ela percebe, pelo brilho dos meus olhos, a surpresa que me causou aquela interrogação e responde-me, antes que possa reagir, numa óbvia pergunta:
— Sim amigo, é verdade. Li Impressões e Gemidos de José Coriolano, um dos bons livros da estante de meu velho pai. Vim de uma família de intelectuais, Raimundo! E Raquel continua, deleitando-se nas recordações que ela mesma ia tecendo.
— O Touro-fusco, cantado magistralmente em oitavas rimadas pelo poeta da Ribeira do Poti, me trás boas lembranças. Enquanto Coriolano verseja o urro retumbante, qual um trovão, do touro cachaçudo da Fazenda Boa Vista de Cratheús, fazendo estremecer a terra e tremer o mato, lembra-me os touros da minha infância, na terra dos Monólitos. Você está com tempo de me ouvir, Raimundo?
— Mas é claro, amiga Raquel, hoje eu tenho todo o tempo do mundo!
Ela ri e continua: — Recordo do Touro Carnaúba, da fazenda Junco. Era um boi muito bravo, de aspa aguda, olhos de fogo, venta chamejante e preto como o cão que brigava três dias e três noites seguidas, se assim lhe desse tempo de beber água. Já o touro Xuíte, onde no lugar do pescoço tinha um tronco, era de um gênio ruim. Um dia ele atacou o trem. O maquinista diminuía a marcha para entrar nas agulhas e ria, pensando que o touro velho ia se estrepar todo ao se chocar com a máquina. Soltou um jato de vapor quente para espantá-lo. Que nada! O Xuíte mais se enfezou, meteu os chifres naqueles canos de cobres que correm pela barriga da locomotiva, arrancou tudo como quem arranca serpentina num carro de carnaval. A máquina roncou um pouco e logo parou, em cima das agulhas. Então quem teve medo foi o maquinista vendo o touro bravo em redor, ciscando, furioso.
Tão atento estava a cada saborosa palavra pronunciada pela escritora, que meus olhos nem piscavam. Ela continuou:
- Tem a história de outro touro valente chamado Cabeça-Rosilha. Foi na Fazenda Califórnia, que pertenceu a minha avó. Cabeça-Rosilha era o soberano total do curral. Apareceu um tourinho novo, azeitão-escuro de lombo branco, chamado de Caçote. Caçote se botou para o velho touro como se fosse um veterano, igual aqueles garnizés que tiram uma coragem imensa que ninguém sabe de onde. Tenho certeza, Raimundo, que se o Cabeça-Rosilha fosse o mesmo, teria dado cabo do tourinho naquela noite mesmo. Amanheceu o dia e a briga ainda estava rendendo. De tarde, as vacas voltaram, e os dois brigando. O chão já estava todo riscado de regos fundos só deles cavarem a terra e havia tanto mato acamado por onde pisavam que era um balseiro só, como se ali houvesse passado uma grande enchente. Davam um tempo, como se ouvissem um gongo, e logo voltavam a entrelaçarem os chifres. Ouviu-se um estalo, como de pau quebrado. O cabeça-Rosilha recuou. Estava com um chifre arrancado, ficou só o sabugo no lugar.  O tourinho quis continuar a briga e o velho touro recuou, e recuou mais e mais. Desceu a procura do riacho do sangradouro e sumiu no meio da mata fechada. Foi se esconder com a sua vergonha. O Caçote era o novo dono do curral. Passou-se o inverno, chegou o verão e todos tinham dado o Cabeça-Rosilha como morto. Um dia, ouve-se um urro bem conhecido. Ninguém acreditou, até pensou-se em assombração de touro velho. Depois de um ano, abandonado no meio da mata fechada, voltava o velho touro com as duas espadas reluzentes na cabeça. Inacreditável, não é amigo Raimundo! Pois bem, o bruto não esperou que ninguém abrisse a porteira, meteu os ombros e voou pau para tudo que era lado. A briga foi ali, no meio do curral e desta vez foi rápida. Ouviu-se um longo esturro de touro apanhado. O Cabeça-Rosilha tinha levantado o Caçote pelos chifres, como quem levanta um gato. Ergueu nos ares quarenta arroubas de touro vivo e arremessou por cima da cerca. Desta vez foi o Caçote quem sumiu de mata adentro, no breu da noite escura. 
Raquel de Queiroz estava mesmo com vontade de me encantar com um passado bovídeo e confesso que no meio de suas deliciosas histórias viajei, de volta ao meu querido sertão, em lapsos de memória, para as histórias de touros na Ribeira do Poti. Regressei à Fazenda Pereiros, de Seu Júlio Menezes, o meu avô. Lá, nas margens do Rio Poti, um touro pintadão chamado Capote, era tal qual elefante velho, mas não podia ouvir bramido que não fosse o dele, saía derrubando cercas até peitar o atrevido do vizinho, que ousou lhe afrontar.
Enquanto Raquel narrava as aventuras de Cabeça-Rosilha, eu senti as velhas emoções do Circo de Touros, onde uma surrada empanada guardava as arquibancadas de madeira que circundavam a arena protegida por uma forte cerca de ferro, ao lado do clube 7 de Setembro, na Praça da Cadeia. Ouvi os mesmos gritos (Olé! Olé!) da famosa Plaza de Toros de Madrid, vindos do poleiro de tábuas corridas, onde o Senhor Milton e  Edmilson Menezes avolumavam a multidão  sob o olhar indiferente de um avultado pé de mulungu. O indomável Touro Preto de Seu Chico Rodrigues mostrava-se como um Bos Taurus Ibericus, o verdadeiro touro selvagem. O toureiro Curió, vencido e humilhado, pedira socorro ao toureiro Bola Sete, um gaúcho negro, alto e experiente. Um carro de propaganda percorrera as ruas da cidade, chamando público para a Volta do Touro Preto que enfrentaria agora o invencível gaúcho Bola Sete.
Quando o músico Expedito Paiva soou o trombone (Como as cornetas que derrubaram os murros de Jericó!) o Touro Preto entrou furioso na arena, ciscava o chão com as pesadas patas dianteiras, soltando chispas de fogo pelos olhos,  mirando à plateia. Os dois destemidos toureiros já o esperavam com uma capa vermelha na mão e a refrega começa. Eles driblam as investidas do animal, só com movimentos de pernas, e os afiados chifres riscam o ar atrás do capote de pano. Súbito, todos prendem a respiração, só se ouvia o fole de ar quente das narinas do Touro Preto soprando no rosto de Bola Sete que se ajoelhara na frente de animal. ( - É um doido! Alguém gritou quebrando o silêncio.) Como uma cascavel o toureiro dá o bote e se atraca na cabeçorra do touro que o sacoleja como a um chicote. Estava tudo planejado. Curió também se abraça nas costas de Bola Sete e aos pouco contém a força do indomável Touro Preto.    De repente ouvi um chamado, distante:
 - Raimundo! Oh, Raimundo!!!
 - Desculpe, Raquel! Distraí-me um pouco! Pode continuar a sua história...
 - Já relatei tudo, meu amigo! Mas não tem nada não, sei que você estava na sua terra, nas suas lembranças... Somos assim, presos ao passado! E eu não sei se lhe parabenizo por isso ou dou os pêsames. Despeço-me, lembrando que menti para minha amiga Raquel. Não tinha todo tempo do mundo, pois estava na hora de voltar para Cratheús, mesmo já tendo regressado espiritualmente. E descubro mais uma vez que o tempo presente não faz parte do meu ser. Sou um vulto do passado, eu e Raquel. E para que melhor companhia!    


Raimundo Cândido

terça-feira, 3 de junho de 2014



TOQUE DE ACOLHER

Antes de dormir, o Fidalgo de rua apaga a lua.


O VENDEDOR DE TEXTOS

A luz do sol atravessa suavemente a transparência do rosto esquerdo de Vnoy


OS CABELOS

Gira a chave da porta às dez da manhã. Na bolsa, o espelho e escova. No destino, senta sua beleza na cadeira que a aguarda e penteia amorosamente os longos cabelos dourados. Por horas. Ela repete essa leveza há décadas. No cemitério.



Micro contos do livro O colecionador de dedos, de Silas Falcão




DECÁLAGO DO CONTISTA


Horacio Quiroga



Creia em um mestre — Poe, Maupassant, Kipling, Tchekov — como em Deus mesmo.

II 
Creia que sua arte é um cume inacessível. Não sonhe em domá-la. Quando puder fazê-lo, você o conseguirá sem mesmo sabê-lo.

III 
Resista o quanto puder à imitação, mas imite se o influxo for ­forte demais. Mais do que qualquer outra coisa, o desenvolvimento da ­personalidade é uma grandepaciência.

IV 
Tenha fé cega não em sua capacidade para o triunfo, senão no ­ardor com que o deseja. Ame a sua arte como à sua namorada, ­dando-lhe todo seu coração.


Não comece a escrever sem saber desde a primeira palavra aonde vai. Em um conto bem realizado, as três primeiras linhas têm quase a importância das três últimas.

VI 
Se quer expressar com exatidão esta circunstância: “Do rio soprava o vento frio”, não há em língua humana mais palavras do que as apontadas para expressá-la. Uma vez dono de suas palavras, não se preocupe em observar se são consoantes ou assonantes entre si.

VII 
Não adjetive sem necessidade. Inúteis serão quantas notas de cor adicionar a um substantivo débil. Se achar aquele que é necessário, apenas ele terá uma cor incomparável. Mas tem de achá-lo.
VIII 
Tome seus personagens pela mão e conduza-os firmemente até o final, sem ver outra coisa além do caminho que lhes traçou. Não se distraia vendo o que eles podem ou não lhes importa ver. Não abuse do leitor. Um conto é um romance depurado de cascalho. Tenha isto como uma verdade absoluta, mesmo que não seja.

IX 
Não escreva sob o império da emoção. Deixe-a morrer, e evoque-a depois. Se for capaz então de revivê-la tal qual foi, terá chegado à metade do caminho na arte.


Não pense em seus amigos ao escrever, nem na impressão que causará sua história. Conte como se seu relato não tivesse mais importância do que para o pequeno ambiente de seus personagens, dos quais você poderia ter sido um.
De nenhum outro modo se obtém a vida do conto.


Horacio Quiroga

Horacio Silvestre ­Quiroga (Salto, 31 de dezembro de 1879 - Buenos Aires, 31 de dezembro de 1937) foi um escritor uruguaio famoso por seus contos, que geralmente tratavam de eventos fantásticos e macabros na linha de Edgar Allan Poe e de temas relacionados à selva, sobretudo da região de Misiones, na Argentina, onde Quiroga passou parte da vida. Sua obra mais famosa são os Cuentos de amor de locura y de muerte (1917; título sem vírgula no original), na qual se encontra o célebre conto A Galinha Degolada. Em 1937, após ter sido diagnosticado com câncer, Quiroga cometeu suicídio, ingerindo uma dose letal de cianureto.



Postagem: Silas Falcão

segunda-feira, 26 de maio de 2014

O Menestrel Crateuense.


Só a benignidade divina explica-me a gratuidade dos dons. A distribuição aleatória de gotinhas de graças, uma aqui, outra ali, sem regras, sem probabilidades, sem previdências, no puro acaso.  Como uma pequenina semente que trás o sabor e o talento do fruto, como uma nuvem alta no céu de chumbo que carrega o estrondo das trovoadas, o clarão dos raios e o rebuliço das águas que alagam o mundo, um dia o dom brota na pele de um ser e arrebata multidões em admiração e espanto. Foi o que aconteceu na Várzea da Calambanha, um verdadeiro assombro! E eu vou contar para vocês.
Nas terras do Ingá, no Lameirão do Senhor Joaquim Miranda, pai do Sebastião Josias, um fino jogador de caipira que se entretinha cantarolando o romance do Pavão Misterioso “Eu vou contar uma história / De um pavão misterioso / Que levantou voo na Grécia / Com um rapaz corajoso... ”enquanto sacolejava os dados do destino numa latinha surrada, fazendo com que a Dona Maria Lucas Evangelista, lá de longe, gritasse desesperada:  — Oh Josias, saí daí, tu vai torrar todo nosso dinheiro!
Quando foi para casar, a arguta Dona Maria, fez um pedido para o patriarca e dono de todo Ingá: — E nós, Seu Miranda, vamos morar aonde?  Ele, sempre muito ocupado, mas com os beiços mesmo, apontou para uma terra chã, num lugar pertinho, disse: — Vocês vão morar na várzea ali, naquelas bandas! Mal entendido ou não, batizaram o lugar em que nasceria o mais afamado vate da Ribeira do Poti, um jogral moderno que assombraria o mundo, de Vázea da Calambanha!
A parteira, que recebeu nas mãos a criança, logo reconheceu pelo choro uma voz diferente, como a de um profeta. E o nome Evangelista tinha que se confirmar, fosse como fosse, ou pelo personagem do Pavão Misterioso recitado constantemente pelo Seu Josias, ou pelo profeta que a parteira vislumbrou nas feições do pirralho ingaense ou pela herança nômica do berço materno, portanto, o menino ficou sendo João Lucas Evangelista.
O infantil protótipo de poeta sempre pegava no sono ao ouvir a mãe entoar as cantigas dos repentistas de outrora “Lá vem a lua saindo / redonda como um botão...”  e quando ela pedia para alguém balançar a rede do menino, que chorava esgoelado, a pessoa logo voltava lhe dizendo assustada: - Ele não esta chorando não, Dona Maria! Ele está é cantando!
Da meninice alegre no Calambanha para a imensidão do mundo foi só esperar pelo amadurecimento do fruto, aguardar o empenar do rouxinol do sertão que criou asas e levantou voo, corrigindo as trilhas de norte a sul, leste a oeste do imenso Brasil. Transformou-se no mascate da poesia, no poeta giramundo a versejar pelos quatro cantos da nação.
Nas Feiras livres de todo Nordeste, o povo fazia roda para ouvir o poeta Lucas Evangelista. Chegava numa Kombi vermelha sempre vestido num conjunto de brim azul, chapéu na cabeça, uma vistosa barba, viola na mão, versos na mente e soltava a voz, cantando sua inspiração poética: “No sertão do Cariri / Certo tempo um fazendeiro / fez uma carta a meu padrinho / E mandou por um romeiro / Comprando um tostão de chuva / Ao padre do Juazeiro ...” Eram os versos do Tostão de Chuva que fez baseado nas cantigas que Dona Maria cantava para ele, enquanto criança. Ali mesmo, no chão da feira, vendia folhetos, discos e fitas k7, tornando-se um dos poucos artistas cearenses a tirar o sustento, seu e de sua família, pelos bafejos difíceis do oficio de poeta.
A vida de Lucas Evangelista daria um grandíssimo cordel, pelos admiráveis momentos de pura poesia no seu trajeto de jogral a declamar, levando cultura para os mais distantes recantos do Brasil. E o sertanejo criou uma admiração especialmente amorosa pelo poeta. No dia em que, como viajor nômade, já de partida para outra cidade, um senhor lhe pede que fique, que aguardasse mais um pouco: — Pelo amor de Deus, não vá sem que minha esposa lhe conheça pessoalmente! E por que isso meu amigo? Perguntou o poeta.  — Seu Lucas ela me disse que, se não conhecer o senhor, ela não iria para o céu! Foi o jeito o vate crateuense aguardar a chegada da grande fã.
O povo simples e humilde tem a sensibilidade aflorada por qualquer emoção, pela dor ou pelas tragédias dos versos rimados que lhes falam na alma. No descampado da Capital Federal, após cantar “As aventuras de João desmantelado” e  a “Carta de um Marginal:  — Recebi pelo correio carta de um hospital / Dizendo ser de um cliente que passava muito mal / O qual eu já tinha lido o seu nome em um jornal / Dizia: caro poeta só você que tem memória / Pode transformar em versos minha fracassada história...” ele tem a surpresa de ver um cidadão com seu cartaz na mão, a lhe elogiar: — Um filho de uma mãe desses, não nasce mais não! Uma mulher não pare mais nunca um desgraçado deste!
Em Conceição de Araguaia, no Maranhão, alguns jornalistas resolveram peitar Lucas Evangelista. Estavam todos na carroceria do caminhão aonde o mestre iria se apresentar. Lançaram-lhe um desafio: - Mestre Lucas, o senhor está vendo essa formiguinha no tablado, levando uma flor de laranjeira? Queremos que o senhor faça uns versos sobre isso. Ele não se fez de rogado, demorou um pouquinho, mas soltou os versos poeticamente líricos: “Formiga de roça não corte a minha laranjeira / Se é nela que eu refresco o meu calor / Tempo de flor quando ela está brotando / Passo o dia namorando nos braços do meu amor...”
Boa parte das trovas do poeta crateuense, musicados por ele mesmo, foram gravados por cantores e conjuntos famosos, como Calango Aceso, Mastruz com Leite, Frank AguIar e os crateuenses Edilson VieIra e Bento Raimundo. Mas nada como a emoção de ouvir os versos na voz do próprio poeta anunciando sua terra natal em todo canto que vá: “Nos verdumes de um rio muito extenso / Onde dantes Fazenda de Piranhas / Inspirado de origem muito estranha / Transformado em um braseiro imenso / É a terra ao qual hoje eu pertenço / Numa área de uma amplidão tamanha / Num açude que linda águas banha / Encantou-se uma musa num artista / Onde nasceu Lucas Evangelista / No reinado da Várzea da Calambanha /...”
Um dom, como uma pequenina semente germinada nas margens do Poti, incorporou-se no excepcional crateuense que chegou a receber o título máximo de Mestre da Cultura, pela sua grandiosa obra na Literatura de Cordel. Hoje, ao lado esquerdo do Arco N. S. Fátima, no centro da cidade, como os trovadores antigos de Portugal renascentista que colocavam seus folhetos dependurados em cordas, encontramos o menino/homem/poeta da Calambanha que venceu as impossibilidades da vida e se elevou, como os mistérios por ele cantado, acima da mediocridade humana pela mais bela arte popular, a poesia rimada do grandioso repentista, do violeiro crateuense, de um vate cearense, Mestre do Mundo, chamado Lucas Evangelista.


Raimundo Cândido

terça-feira, 13 de maio de 2014


PROFESSORES DISCUTEM A ATENÇÃO DADA À LITERATURA CEARENSE

12.05.2014

O que a adesão das universidades públicas ao Enem pode significar para a difusão do autor cearense nas escolas


Para o escritor Batista de Lima, a literatura local perde com o Enem

Oliveira Paiva, Rogaciano Leite, Domingos Olímpio, Padre Antônio Tomás, Henriqueta Galeno. Mais do que ruas ou avenidas, esses e outros tantos nomes escritos em placas fixadas nas esquinas também se inscreveram na história da literatura cearense. Apesar disso, a história das nossas próprias palavras e narrativas corre, mais do que nunca, o risco de se distanciar dos mais novos por questões de prioridade no ensino.

Desde o semestre 2011.1, os alunos que ingressaram na Universidade Federal do Ceará (UFC), na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab) e no Instituto Federal do Ceará (IFCE) foram selecionados através do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e do Sistema de Seleção Unificado (Sisu/MEC). Com exceção dos cursos de Licenciatura em Teatro e ArtesVisuais da última instituição, que necessitam de um teste de habilitação específica (THE) e são regidos por um edital à parte, todo o acesso às graduações e cursos técnicos mantidos pelas entidades federais de ensino superior no Ceará passou a acontecer mediante aprovação na prova elaborada para ser aplicada simultaneamente em todos os Estados, logo, se pauta em conteúdos abrangentes a todo o território nacional.
Em abril, o Conselho Universitário (Consu) da Universidade Estadual do Ceará (Uece) aprovou a adesão da instituição ao Enem, tendo início em 2015.1, quando a oferta de 50% das vagas para o primeiro semestre letivo em todos os turnos e cursos de graduação presenciais da oferta regular serão preenchidas através da prova nacional.

Já as vagas para o segundo semestre permanecem regidas pela modalidade vestibular tradicional, que passa a ser realizado somente no meio do ano. A exceção acontece para os cursos da unidade de Tauá e, em Fortaleza, para Medicina - o mais concorrido da universidade - e Psicologia, que serão integralmente preenchidos através do Exame Nacional. Ainda que o reitor da Uece, Jackson Sampaio, tenha defendido, à época da adesão, a manutenção do vestibular tradicional pelas características da prova de abordar conteúdos regionais, a iniciativa não será suficiente para salvaguardar a literatura cearense dentro dos colégios e cursinhos preparatórios para o vestibular - principalmente porque, mesmo quando se utilizava integralmente do método tradicional de seleção, não valorizava a produção local com tanta força quanto fazia a UFC.
"Apesar da Uece ter mantido um sistema à parte do Enem, jamais esta Universidade demonstrou interesse em valorizar autores cearenses que não os mais famosos Alencar, Rachel ou Patativa", critica Roderic Szasz, há 18 anos professor da disciplina de Literatura no Colégio Juvenal de Carvalho.
"Seus vestibulares sempre foram mais voltados para autores de alcance nacional. Portanto, excetuando os autores supracitados e outros da mesma estirpe, os ditos 'menores' não tinham espaço nas aulas, pelo menos não por causa da Uece", afirma. O docente relata que mudanças no ensino e na abordagem das produções locais mais significativas se deram após a adesão da UFC ao Enem. Quando tinha vestibular próprio, a universidade cobrava na prova a leitura de uma lista de dez livros, dos quais cerca de seis ou sete correspondiam às obras dos escritores do Ceará.
"Com o Enem, a lista terminou, os interesses migraram para autores mais 'nacionais' e a literatura cearense ficou, sim, em segundo, ou melhor último plano nas escolas", condena o professor.

Consequências

Luciano Araújo, que leciona literatura na rede pública estadual e também no colégio particular Imaculada Conceição, aponta que as mudanças no conteúdo cobrado pelos exames de seleção privam os estudantes de conhecerem verdadeiramente, ainda na escola, nomes que fazem parte do seu cotidiano.

"É o que chamamos, na universidade, de 'Via da Literatura Cearense'! As pessoas conhecem osnomes de ruas e avenidas como Domingos Olímpio, Antônio Sales e Juvenal Galeno, mas nem sonham que essas pessoas foram grandes escritores do nosso estado", explica.

"Para a Literatura Cearense é o fim", avalia Batista de Lima, colunista do Caderno 3 e professor de Literatura Cearense na Uece, de 1995 a julho de 2013. "O autor cearense geralmente fica recluso com suas obras nos limites do nosso Estado. Os vestibulares locais, antes do Enem, ainda se lembravam da gente. Agora nem isso. As escolas de ensino médio de nossa terra que eram resistentes ao autor cearense, agora é que não vão mais divulgá-lo".

"A literatura local está fadada a se tornar um objeto cada vez mais restrito aos estudiosos locais e aos obcecados por 'curiosidades'. Dificilmente o valor de autores menos badalados voltará a ser exaltado ou mesmo estudado no ensino médio, por conta do atual sistema de seleção vestibular", lastima Roderic Szasz.
Para completar o quadro, o docente acrescenta que, entre os jovens estudantes, cresce também o desinteresse pela literatura como um todo. A maioria sequer reconhece ou se importa com a origem dos autores. "A Literatura tem sido um grande tédio para os mais jovens, o que é uma lamentável realidade", analisa.
Já Luciano Araújo percebe um relativo interesse dos discentes em conhecer o que é e foi produzido no lugar onde vivem, mas com restrições. "Em sala, tento remar contra a maré, levando textos de escritores cearenses, como Moreira Campos, para mostrar aos alunos que nós possuímos um leque enorme de bons escritores", relata.
"Os meninos até que gostam de conhecer nossa literatura, mas não a valorizam tanto porque 'não cai no Enem'. É triste, mas é verdade", lamenta o docente. Para Batista de Lima, especialista em literatura cearense, a solução deve ser pensada pelos sindicatos, pastas públicas e academias que se englobam no contexto da educação. "Devia haver uma lei estadual para que toda escola do Ceará fosse obrigada a exigir entre os quatro livros paradidáticos pelo menos um que fosse de autor cearense", sugere.


Postagem: Silas Falcão

terça-feira, 29 de abril de 2014

Aonde me levas rio que amei?


                                   Éramos dois meninos travessos,
                                   o rio da minha infância e eu!
                                   O temor das águas turvas
                                   diluiu-se no turbilhão
                                   afeito abraço aquoso
                                   quando fluente desci
                                   disperso nas margens,
                                   onde a meninice acabou!
                                   No deleite de um instante,
                                   em direção ao vento,
                                   o rio triste me arrastou!
                                   Desígnios difusos deixei,
                                   haurindo à luz inclemente
                                   sendo penumbra da noite,
                                   pois sozinho fiquei
                                   quando contigo parti!
                                   Aonde me levas rio que amei?

                                           Raimundo Cândido


José Alberto de Souza disse...
Olho essas águas 
que correm para o mar 
e fico a pensar 
aonde poderia chegar 
seguindo seu curso sinuoso 
com remos compassados 
da minha canoa.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Para não esquecer


Um dia,
difuso e triste,
sobressalto inverso,
silenciosamente,  
embarcamos!
Espesso e sem pressa,  
no sossego das ondas,
desassossego da vida
dissimulamo-nos 
no horizonte!

Mas, já havíamos partido...
Nos sonhos que já não mais se suspiram.
Veemências que já não mais se exprimem.
O prezado gozo não é, nem mais, sofreguidão.
E a solidão estampada no silêncio do rosto
é mansa  brisa de praia no fim de tarde a marejar...
O que não é bagagem expressa efemeridades
 a nos lembrar!

Calaram-se os passos de um vai e vem, prá lá e pra cá!
No semblante deteriorado da tarde escorre um limo verde
como lágrimas deslembradas no ar...
E neste dia,
 assim de sombras lacrimosas,
implorarei ao momento presente
que será  outrora na linha do tempo para,
mesmo impassível, não me olvidar!

Raimundo Cândido

José Alberto Souza disse...
Ao passado retornar 
eu sei que não adianta, 
mas minha vontade é tanta: 
não consigo deixar de tentar.


sexta-feira, 18 de abril de 2014

O Punhal de Lampião


                                                     O cabo de prata
                                                     do cruel punhal de aço
                                                     pendeu da Serra Grande
                                                     vertendo rio de sangue,
                                                     dançando xaxado ligeiro,
                                                     orando à Cícero Romão
                                                     na crença
 da pedra cristalina
                                                     para o seu corpo fechar.
                                                     O cabo de prata
                                                     do cruel punhal de aço
                                                     alumiou nas veredas escuras
                                                     os fantoches dos mandacarus,
                                                     o faro dos rastreadores,
                                                     o dedo sujo dos coiteiros
                                                     delatando o olhar de vidro
                                                     do capitão Virgulino
                                                     com sete tiros no corpo,
                                                     chapéu de couro bordado,
                                                     lenço vermelho rendado,
                                                     sol escaldante nos couros,
                                                     abatido no fundo da noite,
                                                     todo o bando decapitado
                                                     pela volante do Ten. Bezerra
                                                     e o afã lampiônico acabado,
                                                     fim do cabo de prata
                                                     do cruel punhal de aço
                                                     instrumento de pura magia

                                                     extinto no raiar do dia
                                                     pelo automático matraquear
                                                     que pôs fim a toda marmota
                                                     na emboscada de Angico
                                                     e do sangue jorrou uma grota.


                                                     Raimundo Cãndido