quarta-feira, 5 de outubro de 2011


                                        Uma Batalha Fantástica

Viajava, involuntariamente, enquanto meus olhos flutuavam pela tela analógica de uma TV. Os vinte e dois jogadores, ferozmente, disputavam numa esperançosa erva rala e rasteira, a posse de uma esfera pulsante, um forte símbolo de um país que se diz do futebol.
            A adrenalina induzida pela emoção do jogo acelerou o tique-taque mental de um transcendental relógio que me retroagiu a um tempo bastante remoto. De repente, achei-me numa ampla planície de vegetação espessa, com árvores gigantescas que mais pareciam arranha-céus, havia retornado há mais de dez mil anos na linha do tempo.
        Estava na pele de um ser pré-histórico, antediluviano, grosseiramente atarracado, debilitado pela fome, abatido pelo frio e dominado pelo medo, este instintivo mecanismo de defesa, que nos fez sobreviver da ferocidade dos dentes de sabre e da insanidade de nossos semelhantes, num ambiente hostil e humanamente desfavorável.
Ainda tive tempo de recitar em péssimo latim, pela primeira vez na face do planeta, antes mesmo do próprio dramaturgo romano Plauto, a sua famosa frase: ”Lupus est homo homini non homo”, pois senti na pele o original e primitivo frio que congelou os nervos, entorpeceu os corpos e atemorizou as almas de todos os homo sapiens, por séculos e séculos.
            Regresso à tela da TV, no momento exato que o meu querido time marca o primeiro e tranquilizador gol para acalmação geral dos nervos, pois a peleja estava intensamente acirrada, numa férrea disputa de prender a respiração. Mal atacamos com nossos talentosos vendavais em destrezas, quase que instantaneamente sofremos um contra-ataque desesperador, e vejo naquele verde gramado a mesma tensão que amedrontava homens das cavernas quando enfrentavam aquelas horrorosas feras.
            A vantagem momentânea de minha equipe ativa novamente o eterno devaneador que sou, inclinado a um rufar de assas pelos tempos incertos que se vão apresentando a minha frente. Da tela da TV pulo para um telão de cinema com seu surpreendente poder de trazer à vida de volta, criando novamente o ambiente e as pessoas de uma distante era. Agora me imiscuo no estupendo e milionário seriado denominado Roma. Estou no intrépido corpo de um legionário, combatendo em campo aberto, fazendo movimentos rápidos em resposta ao oxítono apito de um Centurião, que determina o atacar, ordena o recuar ou diz para nos protegermos com nossos escudos de uma chuva de flechas que caem pontiagudas do céu. Ouço o grito de gooool de um tendencioso comentarista da emissora de TV, mostrando em seu tom de voz um contentamento nada imparcial. O soldado que sou se enfurece e enfrento sozinho, com um elmo na cabeça, uma afiada espada e um pesado escudo, os inimigos à frente de meu estandarte. Cometo um grave erro de estratégia. O comandante apita ordenando um recuo, e um novo reagrupamento se ajusta numa nova tática. Ouço de modo repentino a ordem: Avé Cesar! Avante! Metodicamente, mas de modo temerário, minha centúria ataca em bloco compacto; o sangue do inimigo escorre afogueado pelo fio de minha espada e com, o escudo no braço esquerdo, vou me desviando de lances intencionalmente mortais. Não demora muito e um novo brado como um elástico esticado no ar chega aos meus tímpanos: Gooooool! como um arrebatado grito de vitória ao fim da guerra.  O nosso guerreiro mor lança o artefato mortal, que traça uma domesticada curva parabólica, indo se alojar bravamente na rede adversária. Toca-se a corneta final e alegro-me por mais uma guerra que termina em cantos paz.  
Se todas as batalhas dos homens se dessem apenas nos campos de futebol, quão belas seriam as guerras! Um emblema vermelho num manto preto para mim é coisa sagrada, uma paixão que não tem explicação, uma exigência indispensável para se refrear todo impulso guerreiro que possa existir na raiz de meu ser.
            Viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos, como um ludos, um divertimento sem mais significação, para não morrermos soterrados na poeira de banalidade.
            E ao término de mais um jogo-guerra em que o querido flamengo vence arrebatadoramente, e mais uma vez os legionários fregueses  são paulinos por 2 x 1, fico sonhando com um ar distante e vou de novo à Roma antiga encontrar o grande filósofo Cícero que, amistosamente, me evidencia sempre preferir a paz mais injusta à mais justa das guerras.

Raimundo Candido

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