sábado, 26 de novembro de 2011


Aurineide, uma felina poetisa.

O incomensurável duende –profeta–poeta  Pablo Neruda em seu belíssimo poema, Ode ao Gato, afirma que ninguém consegue perscrutar os mistérios da vida como sabe um simples gato  na sua performance de monge, de guardião do inextrincável, de explorador manhoso da metafísica natural para, em seguida, se recolher a um profundo silêncio de majestosa  aceitação e sensualidade.
Sou fervorosamente cão, por isso nunca entendi direito o porquê desta forte atração dos poetas pelos gatos. Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Morais, Mario Quintana, Guimarães Rosa sempre a conversar com seus dois gatos persas, Charles Boudelaire ( três poemas felinos nas Flores do Mal), Rainer Maria Rilke, Mark Twain, Charles Perrault (o criador do Gato de Botas), o sublime T. S. Eliot (com um livro de poemas inteiramente dedicado a seus gatos, depois transformado no famoso musical Cats na Broadway), Clarisse Lispector e uma felina poetisa crateuense chamada Aurineide  Martins e seus 40 gatos manhosos.  Se formos enumerar a todos os vates, seria uma lista enorme de apaixonados por bichanos. Desconfio que nós, ordinários caninos a balançar o rabinho, não passamos de mera prosa, enquanto os felinos, com seus misteriosos olhares de desdém, conduta interesseira, desconfiados e contraditórios representam a pura poesia que os enfeitiçam. Também imagino que os cães pensam que são humanos, os gatos; que são deuses.
               Um lugar Sus Generis é aquele em que a luminosa e imperceptível magia  sucede-se e o marca indelevelmente na linha do tempo, como no cruzamento da Rua Pe. Juvêncio com a Frei Vidal, minha Regina Viarum, religiosamente protegida. De lá, vem um espanto e um êxtase, despertando-me para o mundo, como a cruel queima de Judas na frente da casa de Dona Francina (com suas duas cadelas ferozes: Não sei e Depois eu digo)  e a visão estonteante de uma belíssima Rosa chamada Regina debruçada à janela, a irmã da professora, poetisa e prendada artesã Aurineide.         
            O Senhor Pitágoras Martins, afamado galã namorador, aquietou-se de uma agitada vida noturna para embalar o sono da princesa Aurineide até o dia em que a candidatou a miss crateuense, um tempo suntuoso, em que o belo e o nobre tinham valor. Àquela época, para as jovens inteligentes e prendadas, a vida lhes oferecia um bom casamento, um lugar no convento ou o árduo caminho na educação como nobre missão. As freiras da Escola Normal impediram que Aurineide seguissem este caminho de esplendor, desfilando nas passarelas.
            A professora Aurineide e Supervisora da Secretaria de Educação recorda do tempo em os alunos realmente estudavam: Havia exames no inicio e no fim de cada ano, para realmente se avaliar e dizer se podiam ou não passar. Lembra-se  de quando, uma turma de seu colégio, o Lourenço Filho, tirou brilhantemente o primeiro lugar, numa Feira de Ciências, competindo com toda uma Região Nordeste do Brasil.
 A Escritora Aurineide, recorda-se dos três anos de árduas pesquisas, realizada com sua colega Ivane Sales, para escrever o livro Resgate Histórico de Piranha à Crateús e das dificuldades para publicá-lo, mesmo sendo um livro de utilidade pública. 
A Artista plástica Aurineide, guarda dezenas e dezenas de belíssimos quadros, caprichosamente trabalhados com folhas de árvores, pólens, galhos e gravuras de belos pássaros, obras que com certeza encantaria até o naturalista Augusto Ruschi e é, certamente, um patrimônio cultural riquíssimo que Crateús ainda não conhece.
Da vida alegre e boêmia de Aurineide, este escriba se orgulha de ter participado, quando o saudoso botafoguense José Osmar, filho de Seu Antonio Deó (primeiro prefeito de Novo Oriente), com um inseparável violão, começava a cantoria com o Caboclo Vingador de Augusto Calheiros: No meu sertão /Numa linda palhoça /Vivia uma cabocla /Filha de Chico Simão /Namorou-se /De um caboclo renitente /Conhecido por Clemente /Apelidado Lampião e o restante da noitada era a belíssima voz da Aurineide que tomava de conta.
Mas o que realmente quero não é falar dos 40 felídeos de unhas afiadas da Aurineide, liderados pelo Mimoso que faz gato-sapato na sua residência, nem lembrar a digna professora que se indigna com a situação atual da educação pública no Brasil, nem somente alertar para o riquíssimo valor cultural de sua obra de arte, sem um merecido apoio das secretárias de cultura, mesmo no centenário de nossa cidade, nem é só recordar a gostosa época da boemia que ela muito bem plantou em seus poemas, quero sim, mostrar ao mundo a verdadeira poetisa e felina Aurineide Martins que certa vez, com um majestoso poema social, foi dispensada pela professora universitária de fazer uma avaliação final no curso de Pedagogia, e assim lhe disse: Quem escreve um poema desses, Aurineide, está acima de qualquer avaliaçãozinha pedagógica. Leiam essas duas estrofes, de um longo poema que diz das injustiças sociais:
Você já cumeu Sá Dona,
Angu d’água na refeição
E ficá do mesmo jeito
Pruquê num há digestão
Ingana só a fraqueza
Mas num faz volume não.

Sá dona a vida na roça
Só servi para o patrão
Qui tem tudo de mió
Sem gastar nenhum tostão
Pruque nóis é que faz tudo
E a paga é a isploração.

            A um momento que descobrimos uma fatalidade interior e ficamos vulneráveis ao cruel mundo exterior. Desfalecemos momentaneamente em desvario que espanta àqueles que esperam bem mais de nossa capacidade. Aurineide perdeu o pai, sentiu a despedida da irmã Rosinha e foi dolorido o adeus da querida mãe, como um infortúnio, um  algoz a lhe pesar nos ombros, retirando-se para um deserto de aspereza em que somente os gatos lhe aliviavam o pesar. Ainda assim não perdeu a sensibilidade de poetisa, pelo olhar e pela alma, continuou ajudando os que necessitavam de seu apoio.
Hoje encontrei um homem
Caído de cabeça baixa
A olhar o chão,
Decadente, esfarrapado,
Pedindo um pedaço de pão
A mão estendida,
Trêmula, suja, enrugada,
Quanta humilhação
Perdeu o orgulho, o amor próprio
Quanta degradação,
Todos passavam, olhavam
Sem lhe dar atenção!

Uma estrofe, de outro longo poema, que como um anjo com uma espada azul protege os mais velhos a cantar:

Não existe para o idoso
A menor consideração
Falta remédio, assistência
Abrigo, alimentação
E se um deles adoece
É melhor ficar em casa
Do que receber um não
Em portas de hospitais
Onde o pobre, o indigente
Morre sem medicação.

Lá na Rua Pe. Juvêncio, onde outrora admirava uma bela Rosa na janela, uma poética alma de mulher, novamente sai de seu casulo, e nos dá a esperança de um retorno para batalhar contra as misérias da vida, com suas duas poderosas armas, gatos e poesias. Ouçamos, mais uma vez, a felina poetisa a cantar:
Eu sou boemia
Porque gosto da noite
Para cantar, conversar,
Escutar, conquistar,
Não como as mariposas da noite,
Mas como as borboletas da vida.
Eu sou boemia
E tomo as minhas cervejas
Não para esquecer
Mas para viver!


Raimundo Candido

2 comentários:

  1. Mais que estilo saboroso, você resgata aquela linguagem requintada dos nossos clássicos e vai bordando filigranas com encantadoras recordações que afloram em sua memória, ilustradas por essas figuras incomparáveis...

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  2. Merecida homenagem a grande Aurineide !
    Parabéns a essa dupla Aurineide e DIM.

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