sábado, 19 de novembro de 2011

                                         Seleiro: uma arte em extinção 

Um impulsivo vento continuamente sobe indisciplinado pela contramão até o final da ladeira da Rua Cel. Totó, no bairro de Fátima I. De ouvi-lo passar Seu Manoel Rosa, na crua solidão interior, alegra-se feito criança que nunca está só, mostrando um largo e autêntico sorriso estampado no rosto, como quem guarda o simplório segredo de toda felicidade. Dona Dionísia, sua esposa, trabalha atrás do balcão da bodega ao lado, situada na esquina, no portal da conhecida Favela. Dizem que o segredo da vida está na arte. Deve ser por isso que seu Manoel labora nas peças de couro, com fina habilidade, até os 92 anos consolidando dignidade que hoje, aos 95, se estampa no brilho do olhar, e já nem lembra com exatidão desse digno passado. As encomendas sempre vão chegando, uma sela para o alazão de um fazendeiro amigo ou o pedido de um heróico vaqueiro para remendar um gibão. Serviço mesmo, nunca faltou, por isso trabalha incansavelmente. Alguns amigos trazem as encomendas e aproveitam para um dedinho de risonha prosa, como o Tobias das Flores que após encomendar um conjunto de arreamento, o surpreendeu com uma inusitada pergunta:  
 Manoel, você sabia que nós somos parentes?
O que fez Seu Manoel, de subido, indagar:
  — De onde vem, Seu Tobias, esse nosso ignorado parentesco?
Tobias respondeu de imediato, em tom de brincadeira: 
 — Hora Manoel, é simples, você é Rosa e eu sou Flores!
 A forte gargalhada daqueles dois respeitáveis senhores atiça a viva curiosidade na oficina mecânica do Chico Sampaio, onde nunca se falou pouco da vida do povo. Era um bom tempo aquele que reinava ali, muito trabalho, a bela arte de seu Manoel Rosa e uma infinita felicidade na íngreme ladeira da Rua Cel. Totó.
Dizem que o segredo da vida está na arte e é por isso que na singela Rua Poti, homenagem ao símbolo maior da centenária cidade, há um mágico espaço no número 1122 daquela curta via onde se exerce um dom como extinto oficio. É um artista do couro que nos lembra um artesão da arte dos versos,  patativa do Assaré que assim cantou a alma do rude sertanejo: Da minha vida eu me orgúio, / Levo a Jurema no embrúio / Gosto de ver o barúio / Do barbatão a corrê / Pedra nos cascos rolando, / Gaios de pau estralando, / E o vaquêro atrás gritando, / Sem o perigo temê. Refiro-me ao poeta-artesão, o senhor Alcides Sampaio ou Preto Fidelis, como o queiram chamar,  o Patativa do Couro, que sabe os segredos da vida e da arte, revestindo soberbamente um valente vaqueiro com gibão para proteção e que lhe cai como fino terno, ainda lhe põe luvas e perneiras, guarda-peito e chicote,  depois entrega a sela e o alforje para um difícil oficio exercer. Se o for visitá-lo agora , com sorte, poderá ver um centenário baú reformado em ornado couro e transformado em obra-prima, digna de guardar  no bojo todas as mais caras jóias e os mais ricos tesouros. Poderá  admirar uma sublime sela encomendada por um riquíssimo conterrâneo, para presentear um cardiologista- fazendeiro lá das bandas da terra da garoa.  Verá como de um simples instrumento de trabalho, uma velha faca de sete polegadas, já com o fio a encostar-se no lombo, rapidamente se produz um gibão, uma sela, uma cabeçada, um chapéu, uns arreios, um alforje, umas peias, um chicote e a careta do boi numa arte que vem há mais de dez mil anos se aprimorando e corre um grande risco de, inesperadamente, se acabar.
  Dizem que o segredo da vida está na arte, que tem a capacidade de dizer o indizível, exprimir o inexprimível e traduzir o intraduzível. No Bairro dos Patriarcas, antiga propriedade rural de Seu Cícero Patriarca, mora um dos nossos últimos moicanos da arte do couro.  Ao nos aproximarmos da sua casa logo ouvimos um som característico, o facão grosando o couro numa comprida tábua chamada de grosador. Seu Gerardo nos recebe com uma alegria contagiante de quem conhece profundamente aquele sertão que a gente empurra para trás e ele, teimosamente, volta a nos rodear e é sabedor que das ardentes veredas a gente pouco pode esperar como nos ensinou o grande mago Guimarães Rosa. Antes de despertar para a arte, o Seu Gerardo cansou de embrenhar-se um dia e meio num mato fechado, sem comer e sem beber, mastigando nesgas de fumo, correndo pela caatinga de espinhosas juremas atrás de um desgarrado e arisco boi e só voltava com o bicho muito bem peado. De uma feita, vinha com um magote de vacas paridas, lá para o lado de Nova Olinda, no Buriti dos Montes, e teve que soltar o gado para dormir com os cansados bezerros, num  lúgubre cemitério da beira do rio, ouvindo o gemido das almas. O irritado proprietário do local até hoje procura o cabra de coragem que fez isso, para colocá-lo para dormir na cadeia.
Dedica-se a fabricação de tudo que é possível, em couro, alforjes, surrões, selas, chapéus, cabeçadas, estribos, bridões, laços que coloca para revenda no comércio de ração do Senhor Milton Menezes. A arte do Seu Gerardo Paiva dá para tudo mesmo, pois estava a cobrir um daqueles cavalinhos em que as crianças tiram lindas fotografias com um peludo couro de um bode velho. Tomara que ele tenha tirado todo aquele mau cheiro.
 Dizem que o segredo da vida está na arte, ou é a exuberante vida que vai lentamente se desenhando em arte-viva ou é a encantadora arte que vai invejosamente imitando e sorvendo a essência da vida, mas sempre pelas prendadas mãos destes primorosos e raríssimos artesões que merecem toda proteção contra uma ameaçante extinção.

Raimundo Candido

José Alberto de Souza disse...
Ainda bem que existem artesões da palavra como você que nos resgata com fidelidade fatos que vão caindo no esquecimento com toda esta evolução tecnológica. Luzidia prosa poética cheia de cadência, ritmo e refrões:

“Dizem que o segredo de uma vida está na arte.
Ou é a exuberante vida
Que vai lentamente
Se desenhando em arte-viva
Ou é a encantadora arte
Que vai invejosamente
Imitando e sorvendo
A essência da vida,
Mas sempre pelas prendadas mãos
Destes primorosos
E raríssimos artesões
Que merecem toda proteção
Contra uma ameaçante extinção."


Um comentário:

  1. Ainda bem que existem artesões da palavra como você que nos resgata com fidelidade fatos que vão caindo no esquecimento com toda esta evolução tecnológica. Luzidia prosa poética cheia de cadência, ritmo e refrões:

    “Dizem que o segredo de uma vida está na arte.
    Ou é a exuberante vida
    Que vai lentamente
    Se desenhando em arte-viva
    Ou é a encantadora arte
    Que vai invejosamente
    Imitando e sorvendo
    A essência da vida,
    Mas sempre pelas prendadas mãos
    Destes primorosos
    E raríssimos artesões
    Que merecem toda proteção
    Contra uma ameaçante extinção."

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