terça-feira, 20 de dezembro de 2011


                                                                 A CAMINHADA


Sou um admirador exaltado das caminhadas e ciente de seus numerosos benefícios: espantar a preguiça, diminuir o mau colesterol para uma boa disposição de vida, como anunciam alguns experts em saúde. Cheguei a inventar trilhas pelas ruas da cidade e muitas vezes segui reto na velha Central (BR 404), rumo à aldeia em que reinou um duende chamado Bastiãozinho, o legitimo Poeta do Curral Velho. Pedras no meio do caminho obrigaram-me a parar. Havia esquecido um parágrafo na introdução do livro Karatis, escrito por mim, imaginem, onde ouso dizer que nosso caminhar não pára, mesmo sem os fatigados pés em poentas estradas que nos prepara a vida, na luz do dia ou em trilhas escuras, que impõem medo à peregrina alma.
          Encho-me de coragem e retomo a velha caminhada, meditativamente só, sem solidão...  Com solitude, fazendo com que me sinta mais próximo de mim mesmo. Precisei, apenas, insinuar o primeiro passo.
          Como ponto de partida escolho a Vila Esperança, no final do Bairro São José, que tem como soleira a velha e fatigada Ponte Preta. Esperança, o último aglomerado urbano do lado oeste da cidade, tímido e calado, mostra-me um olhar de desespero frente à dura sobrevivência. Como profere Shakespeare: “Os miseráveis não têm outro remédio a não ser a esperança”.
            Os Velhos poetas sempre me põem a pensar, e nada melhor para manter a mente ativa, enquanto se caminha.  Logo me chega outro desses sábios, chamado Vitor Hugo, que arremata: “ A esperança seria a maior das forças humanas se não fosse o desespero”.  Tenho a ligeira impressão de que, caminhar e remoer escritores de outras eras, confunde a mente da gente e tento reestruturar a desordem no pensar com mais um arcaico vaticínio, escolhendo Sêneca, o Moço, que assevera: “Só não alimentarás mais o desespero quando não tiveres mais esperanças”.
           Mergulho num profundo sobressalto... Putz!!! O que será da singela vilazinha da Esperança?
          Meus pés se despedem apressadamente da prometedora vila e transponho a centenária linha férrea para pisar no chão em que outrora trilhou o profeta Vidal de Frascarolo, capuchinho do Convento da Penha no Recife. Peregrinou pelos sertões do Ceará, antes do serpentear de trilhos, exercendo uma grande autoridade no espírito popular, como lembra Luis Câmara Cascudo, a nos relatar uma de suas famosas vidências: “Intentos grandes haverão, porém, na era de 189..., antes ou depois, verás coisas mil, no mês mais vizinho de abril”. Deu nome a esta larga Avenida (Regina Viarum) traspassada em toda sua extensão por padres, santos e coronéis, mas que em mim ainda palpita e acelera meu sangue queimando mórbidas calorias. Passo ao lado de uma réplica do cruzeiro em que Frei Vidal enfincava como marca de sua passagem. Mais adiante avisto a lúbrica bodega do Valmir, o último reduto dos etilistas da cidade que, ávidos, esperam acorrentados e sem livre arbítrio, desde os primeiros raios solares. Algo me impele a passar rápido. Na próxima esquina volto a sentir o cheiro de couro curtido no ar que se irradiava da bucólica bodega de Seu Raimundo Cândido, um dos comerciantes mais honestos que o mundo já viu.
             Num piscar, passo pela Fábrica de Sonhos, o Externato, e meu coração se aperta como a querer regar o leito seco do sazonal Poti. É dolorosa essa lembrança, é intolerável essa dor de que, até recentemente, só ouvira falar. Pesaroso, sigo em frente. A Praça do Barrocão se descortina, muito diferente daquela que outrora dava guarida as rodas gigantes e aos hilariantes palhaços de memoráveis circos. A Rua Frei Vidal finda (inicia) exatamente no cruzamento com a Padre Macedo, a única rua com ardência de pimenta e que somente Seu Ferreirinha sabe o porquê, e que, segundo o dramaturgo e poeta Lourival Veras é o maior memorialista de nossa história.  Alegre diviso as Torres da Matriz, onde dois vigilantes galos recentemente batizados (Macedo e Bonfim) olham-me a advertir, pedindo que passe e bem rápido, tenho a impressão que estão ressentidos com alguma coisa.
             Sigo em passo cadenciado, numa marcha puxada pela Rua Firmino Rosa, o velho professor que veio de Teresina ensinar na distante Villa Príncipe Imperial. Vejo uma antiga fachada, como uma pétala caída, que incita um mnemônico álbum de fotografia: Toty, Magy, Dona Rosa Morais, Monsenhor Bonfim, de um velho Pio XII que ainda se conserva numa relativa aparência de felicidade.
            As forças parecem minguar nas minhas cinquentenárias pernas, é o excesso de peso, lembrando-me que preciso de um sério regime, de uma firme dieta, sem sal, sem doce e sem gorduras, o preço que se paga por uma vida de atleta, ou pelo velho sonho de ficar velho sem envelhecer, correndo atrás de uma ilusória juventude.   
            Enxergo um Centenário prédio que anuncia o nome Cratheús num oitão nascente e fico atento ao apito do trem que ainda se descortina na velha ponte de ferro, trazendo em seus vapores de óleo, exalado em fumo, o arremate para uma longa espera que se impacienta sobre a marquise da estação.
           Ultrapasso novamente a linha férrea e sigo apressado pela Av. Sto. Hermínio, um herói(?) de guerra em tempos de paz, cujo irmão caçula, um dia, barbaramente tirou a vida do   pai do Professor, Cronista, Contista e Orador Juarez Leitão que, como grande Poeta, retratou a cena daquela tragédia: “E me lembro de ti, / cavaleiro de fêmeas e de anseios,/ nas noites e nos dias da saudade / que me guardam menino espantado. / O espanto / de teus olhos me agarrando com súplica / e acenando molhados, / Na garganta o grito ensangüentado,/ no corpo /  as janelas da tragédia / escancaradas para / soltar a vida. /  E tua vida era rubra./  Eu vi.” Recordo-me de uma apropriada frase que diz que a vida é uma tragédia sombria entre dois infinitos sonos.
            Caminho um pouco mais e tenho a impressão de ver o Sr. Otávio Portela, todo de branco, atendendo alguns militares e funcionários uniformizados que esperam o ônibus do Caxitoré, rumo ao 4º Bec. Ele coloca rapidamente mais uma garrafa de café quente sobre o balcão e avisa: O café aqui, é a jato! Não é por acaso que tem a alcunha de Frei Ajato. 
             Continuo mesmo ofegante, sentindo o esforço, pensando em desistir da longa empreitada e contorno um compasso-esquadro com um G centralizado, símbolo de justa medida e de retidão maçônica em frente a uma insensível estátua de um soldado sempre de prontidão e me lembrar o poeta Manoel Bandeira: ” Não quero amar, não quero ser amado.Não quero combater, não quero ser soldado” .  Agora percorro vagarosamente a BR 404 que vai direto para a Pedra 70 de onde se tem, a tardinha, uma esplendorosa visão de um belo pôr-do-sol, que se esmorece lentamente, por trás da Serra da Ibiapaba.  
            Percorro a BR 404 e na altura da Associação Atlética do Banco do Brasil contemplo a Rua Edmundo Pinto, o exemplo de cidadão íntegro, caridoso,trabalhador  e dono da saudosa Sapataria União, mantendo ao lado uma fábrica com 30 funcionários que eram também seus compadres.  Sigo o longo estirão que me conduz ao trevo de contorno para Curral Velho após a ponte sobre o Riacho do Tourão que, como um bovídeo aquoso se avoluma pelo sertão, mostrando um temperamento bravio, até desaguar no sequioso Poti.
           Admiro a sequência de suntuosos motéis pela pista que contornam o lado leste da cidade: Manhatan, Vips, Plaza, Charme Motel, para os momentos poéticos dos nossos concidadãos. Se não fôssemos humanos, demasiadamente humanos, seriamos libidinosamente coelhos, como dizem os poetas: o amor é só uma prosa livre, mas o sexo... é pura poesia, como nos atesta Quintana: Quando duas pessoas fazem amor, não estão apenas fazendo amor, estão dando corda no relógio do mundo
            No estremo urbano da BR 404 dobro à esquerda, na Rua Gentil Falcão, e mais adiante avisto outro motel, é o 2 mil, para comprovar minha viripotente tese. No limite de minhas forças físicas passo pelo Bairro dos Patriarcas, onde reside seu Gerardo, um dos três últimos seleiros de artes e ofícios de nossa cidade. Sorvo, de cima da ponte de concreto, as paisagens de uma saudosa goela onde nosso querido Itaim é abraçado pelas milenares pedras do Curtume, e se estreita pela primeira vez como a treinar para seu deslumbrante espetáculo no famoso Cânion, logo mais adiante.
           A Cidade Nova, em adiantado desenvolvimento, me surpreende, é só argamassa, britas, cimento e tijolos em construção. O Insular Bairro da Ilha está quase independente em tudo, livre do restante da centenária cidade. Outra vez diviso o Poti e o transponho como se atravessa historicamente o Rubicão, num trecho seco chamado Rio da Dona Delite. Sei que o tempo é sempre de travessias, e se não ousarmos fazê-las ficaremos para sempre à margem de alguma jornada.  E novamente piso a Frei Vidal, bem na esquina da minha amada Fabrica de Sonho e dou por encerrado este meu longo trajeto, sentindo o corpo cansado, mas o coração feliz por saber que, mais dias ou menos dias, terei pela frente mais uma longa caminhada a percorrer.


Raimundo Candido





José Alberto de Souza disse...

Cheguei junto com você a seu destino,
acompanhei prazeiroso essa caminhada
e fui conhecendo no passo vagaroso
uma longa estirada nesses recônditos
escamoteados pela nossa indiferença
que acesa memória teima em recordar
tantos fatos, diversos personagens
surgindo nos meandros deste trajeto...
Luciano Gutembergue Bonfim Chaves disse...
Raimundo Cândido, caríssimo Raimundinho,
viva as caminhadas, viva o pau Brasil, viva os que procuram guardar, expondo, a memória da cidade. Contudo, neste contexto da introdução do artigo, não sei qual o significado da palavra legítimo poeta do Curral Velho, mas afirmo sem medo de errar que pelo menos outro poeta viveu naquela nação, não sei se reinou, mas refiro-me ao senhor Joaquim Bonfim Filho, Datim Bonfim - não por coincidência meu avô e primeiro mestre em assuntos literários e anedotas populares.
Ressalto: reconheço e considero os versos de Bastiãozinho, inclusive certa feita imprimi alguns de seus versos em forma de "cordel" e lhe presentiei, exemplares que ele distribuiu entre amigos e apreciadores de poesia.
Ressalto 2: Raimundo Cândido, reconheço e admiro o vosso trabalho, apenas não pude calar esta ressalva.
Grande abraço, do amigo
Luciano Gutembergue Bonfim Chaves.


Elias de França Disse...
Acabo de aprender uma diferença entre solidão [só vim anunciar os teus cem anos de solidão] e solitude. Talvez a primeira expressasse a denúncia do "insulamento" que nossa cidade centenária sofrera por parte dos que a deviam cuidar... ou sei lá... só os poetas o sabem. Já nesta solitude, um olhar de raio-X sobre o tempo, os espaços, as suas personagens e as subjetividades... o passado está aí, com toda sua riqueza de detalhes, sua lírica e sua poesia, mas vivemos a aprender desprezá-lo em nome da modernidade. E debalde veneramos um presente e uma promessa de futuro, na mais das vezes, carente de sentidos.
A lamentar? Só uma coisa: não estar tambem esta caminhada nos anais do nosso livro do centenário. Parabens, poeta! Por preencher de sentidos os vazios de nossa inóspita vida!
Grande abraço


Prof Albery Gomes disse...
Raimundinho!
Preciso caminhar, não apenas para perder peso, pois preciso.
Mas para descobrir todas as vias de sonhos, as ruelas do sentimento e as veredas da alma.
Caminhar...
Caminhando com você, não contemplamos apenas o tempo ou paisagens. Mas a brisa e suas façanhas, as qualidades e defeitos do ser, já na chegada concluir que a caminhada não foi em vão, entendendo que o amor é o ponto de partida em qualquer caminhada.
Friso:
amor é só uma prosa livre, mas o sexo... é pura poesia, como nos atesta Quintana: Quando duas pessoas fazem amor, não estão apenas fazendo amor, estão dando corda no relógio do mundo.
Obrigado pelo texto adorei... Parabéns é maravilhosa sua obra.
Feliz Natal! Boas festas.


Ocelio Camelo disse...
Parabéns, Raimundo, por mais essa "Linda caminhada"!!!
E parabéns Crateús, não só pelos Cem anos, mas também por ter você, Raimundinho,
que sabe revelar, com tanta maestria e essa grande essência poética, o retrato da nossa querida
Cratheús...

Epitácio Macário disse...
Puxa vida, que verve desse crateuense Raimundinho. Se não me perco nas possibilidades de conhecimento geográfico, arqueológico, antropológico dessa caminhada, enxergo o mais profundo: uma visão humana, demasiadamente humana, de um povo de uma terra de tardes escaldantes. Este é um escritor por meio de quam a própria terra fala e sua gente diz a que veio. Enriqueceu-me a forma e o conteúdo da caminhada, elevando minha personalidade. Por isso sou-lhe muitíssimo grato, caro Raimundo Cândido - professor.

6 comentários:

  1. Raimundo Cândido, caríssimo Raimundinho,
    viva as caminhadas, viva o pau Brasil, viva os que procuram guardar, expondo, a memória da cidade. Contudo, neste contexto da introdução do artigo, não sei qual o significado da palavra legítimo poeta do Curral Velho, mas afirmo sem medo de errar que pelo menos outro poeta viveu naquela nação, não sei se reinou, mas refiro-me ao senhor Joaquim Bonfim Filho, Datim Bonfim - não por coincidência meu avô e primeiro mestre em assuntos literários e anedotas populares.
    Ressalto: reconheço e considero os versos de Bastiãozinho, inclusive certa feita imprimi alguns de seus versos em forma de "cordel" e lhe presentiei, exemplares que ele distribuiu entre amigos e apreciadores de poesia.
    Ressalto 2: Raimundo Cândido, reconheço e admiro o vosso trabalho, apenas não pude calar esta ressalva.
    Grande abraço, do amigo
    Luciano Gutembergue Bonfim Chaves.

    ResponderExcluir
  2. Cheguei junto com você a seu destino,
    acompanhei prazeiroso essa caminhada
    e fui conhecendo no passo vagaroso
    uma longa estirada nesses recônditos
    escamoteados pela nossa indiferença
    que acesa memória teima em recordar
    tantos fatos, diversos personagens
    surgindo nos meandros deste trajeto...

    ResponderExcluir
  3. Puxa vida, que verve desse crateuense Raimundinho. Se não me perco nas possibilidades de conhecimento geográfico, arqueológico, antropológico dessa caminhada, enxergo o mais profundo: uma visão humana, demasiadamente humana, de um povo de uma terra de tardes escaldantes. Este é um escritor por meio de quam a própria terra fala e sua gente diz a que veio. Enriqueceu-me a forma e o conteúdo da caminhada, elevando minha personalidade. Por isso sou-lhe muitíssimo grato, caro Raimundo Cândido - professor.

    ResponderExcluir
  4. Tem que ser crateuense da gema ou pode ser filho de crateuense? Gosto de escrever. Como deixar poemas aqui?

    ResponderExcluir
  5. Da família Bezerra, também sou dos Torquato. José por parte de Avô, Adilson não sei donde meu pai arranjou, mas diz que é nome de valor, aquele que acrescenta, e assim eu sou, poeta com todo amor.

    ResponderExcluir
  6. Eu vejo o céu limpo, com algumas nuvens de algodão, Da janela está o Congresso Nacional, tocam sinos na catedral, o povo caminhando, atrás de um buzu ou baú, e a polícia com sirene tocando, às vezes é ambulância ou bombeiros, mas os carros se afastam, dão passagem e a paisagem ensolarada esperando a chuva cair, e aquele balanço quase uma queda, o buzu parece que vai partir, enquanto tem gente sonhando com um camelo para pedalar até o trabalho. Buzu ou Baú é ônibus. Camelo é bicicleta. Mas como está tudo entendido, véi. Tenho que voltar ao serviço. Digitar as coisas que faltam. O Brasil precisa de nós e nós precisamos do Brasil. É isso. José Adilson

    ResponderExcluir