quinta-feira, 5 de janeiro de 2012


                                                                     Sangradouro Santo
Um entardecer sobrevem lento e atrasado, se desvanecendo preguiçoso como a impedir mais uma noite densa e sombria sobre o gueto. O tempo desce feito uma brisa carregada de presságio, anunciando martírios e a gotejar pesadas aflições na branca eternidade guarnecida por arame farpado, num bairro judeu.  Um vulto baixinho,de cabeça raspada num pijama listado de azul e branco com uma rubra insígnia triangular colada no peito, escorrega furtivamente por entre sombras de antigos prédios, desviando-se de olhares traiçoeiros da cruel Gestapo que perscruta até as batidas de um emudecido coração.
 A fome, o frio, o trabalho extenuante e as doenças infecciosas, como o tifo, já exterminam os judeus bem antes da vergonhosa “Solução Final” que caracterizou o holocausto.  As pessoas morrem pelas ruas e os encarregados não dão conta da remoção dos cadáveres. Removidos pela manhã, novas pilhas se formavam à tarde. Crianças brincam nas calçadas, em meio a corpos apenas cobertos por folhas de jornais. O tempo, como o conhecemos, das horas, dos dias e dos meses, não existe. A existência, pesadelo atroz, é conduzida entre um infortúnio e outro. Uma rala sopa diária, de batatas podres, é a única refeição com uma bisnaga semanal de pão, que completa a fraquíssima refeição.
O cozinheiro Fredy Kurtz, nosso vulto baixinho aprendera russo só para pregar o Evangelho aos companheiros desliza encoberto pelas sombras e traspõe um longo pátio levando sobras de comidas para os colegas de infortúnio. Alfredo pensa em Maximiliano Kolbe, mártir da caridade, que se voluntariou para morrer de fome no lugar de um pai de família, quando é surpreendido pela Polícia Nazista e, neste instante, relembra-se das brancas montanhas da Suíça, onde gozara a infância. Em 1945, num ato de ousadia próprio de uma alma inspirada, foge. Estranha a indiferença dos exaustos soldados arianos, com quem se depara pelo caminho e percebe, com alegria no peito, que a cruel guerra chegara ao fim.
Ali, naquela lastimosa estrada, recuperada a liberdade, um dos dons mais preciosos da humanidade, toma três decisões importantíssimas para sua vida: tornar-se padre, trabalhar com os mais pobres entre os pobres e jamais vestir outra roupa que não reproduzisse o modelo do uniforme do campo de concentração, em memória de seus companheiros mortos.
Se a porta da percepção estivesse sempre aberta a nossa frente, veríamos como são infinitos os caminhos para as possibilidades. Ao escapar da morte no caminho da liberdade e o fogo divino o ilumina e o sagra espiritualmente, como senhor das forças e dos dons que já o habitava, é  sinal de grande benção. E naquele incomum lugar, nasce o místico Afredinho.
Na linha tênue que sincroniza coincidência e destino, sempre se manifesta o anonimato de Deus, como na união do alimento com a vontade de comer, da refrescante água com a desconfortante sede, como no benéfico encontro do Pe. Afredinho com o saudoso Dom Antônio Batista Fragoso, no propício sertão de Crateús.
Já ouvira falar desta terra distante, cheio de sacrifícios, de pelejas, de espinhos como os pregos da cruz e também soube que reside um povo que nunca esmorece, nunca se entrega como os mandacarus no tempo da seca. Igual ao sertão de Guimarães Rosa, onde viver é muito perigoso... Porque aprender a viver é que é o viver mesmo... É uma travessia perigosa, mas é a vida.  
Soube que neste semi-árido nordestino marcado por estiagens periódicas e, sobretudo por injustiça para com os mais necessitados, havia uma Diocese que era considerada como um espinho na garganta da famigerada ditadura militar, reputação devida ao famoso bispo, Dom Fragoso, que fizera opção preferencial pelos pobres. Isso o agradou e com um sorriso franco no rosto, decide vir para encontrar-se entre os mais pobres.
Há uma palavra marcada com ferro em brasa na fronte da sociedade brasileira: Prostituição Infantil. A mais triste e antiga das misérias da humanidade que corroí o nome da pátria, não do país do carnaval, não do país do futebol ou da corrupção, mas a pátria de Irmã Dulce, a de Dom Helder e a de Dom Fragoso. A violência e o abuso sexual dentro de casa, o abandono, a fome, a miséria contribuem para que essa chaga vergonhosa faça com que uma digna mulher se humilhe e se venda como uma simples mercadoria.
Logo ao chegar por aqui, o Pe. Alfredinho é levado a visitar uma jovem vítima da prostituição que estava morrendo de tuberculose.  A difícil “vida fácil’ daquela menina-prostituta (Antonieta é seu nome!) condói em seu coração. Enquanto a maioria desvia o olhar para longe, os olhos do amor têm uma preciosa visão daquilo que se rejeita. Uma visão que se torna clara à medida que se olha para dentro do coração, pois a nossa única riqueza é ver. É fácil enxergar além do que nossos olhos são capazes, pois a dor - ao contrário do prazer - não tem máscara. A prostituta confessa-se com o Padre Alfredinho que lhe responde, suavemente:  “ Antonieta, somos nós que devemos pedir perdão a você. Perdão pelos pecados de uma sociedade que não lhe ofereceu outra alternativa de vida. Como Jesus prometeu Antonieta, você nos precederá no Reino de Deus. Interceda por nós.”
Afredinho, ao criar a Irmandade do Servo sofredor (ISSO) disse: “O pior do mal não é matar o homem, mas matar a imagem de Deus no homem. A força do mal não procura destruir o ser humano, mas Deus nele” A missão da irmandade é restaurar o rosto desfigurado, o rosto machucado do ser humano. Se uma parte está desfigurada toda humanidade está desfigurada. Se um único ser humano for rejeitado, toda humanidade será rejeitada.
São Francisco de Assis dizia que o homem vale pelo que é diante de Deus e mais nada. A verdadeira humildade é uma grandeza e diante dos inferiores é uma nobreza.
A pureza no coração de Pe. Alfredinho é inseparável de sua simplicidade e de sua inerente humildade. É estranha essa qualidade... No momento que achamos que a temos... Já a perdemos. Numa tarde ensolarada, o Padre caminha concentrado pela Rua Frei Vidal com passos curtinhos e apressados, sem o baboleio característico dos braços que se apóiam em duas surradas sacolas a tiracolo. Quando se emparelha defronte a um frondoso Benjamin, pára e entra na residência de Dom Fragoso. Em ato contínuo lhe pede a benção: — A benção, Dom Fragoso! O Bispo, homem digno, nobre e naturalmente humilde, em respeito ao padre, responde: — Que é isso, Alfredinho? Eu é que tenho que lhe tomar a Benção... – A benção, Alfredinho! Riem os dois, e também sorri mais Alguém, lá em cima, daquela demonstração de franqueza e modéstia.
Sacrifício é algo que vai além dos meros significados contidos no dicionário, como renúncia, abnegação ou ofertas. Sacrifício é vida, nos diz o fundador da Irmandade do servo Sofredor. A missa é um grandioso e santo sacrifício. A maior de todas as ofertas solenes, que já existiu na face da Terra, foi a morte de Jesus Cristo ou quando Abraão, com o coração partido e os olhos lagrimejando, levantou-se naquela bíblica madrugada e foi imolar Isaque, seu único filho, em obediência a Deus. Alfredinho reza, sem comer há dias, deitado no duro chão da Igrejinha de São Francisco, em habitual sacrifício e lhe servem somente uma salobra água de coco. O povo implora para que ele pare. Não entendem, como pode um raquítico homem suportar tanto tempo sem comer! O ano de 1983 começa particularmente difícil, depois de três anos seguidos de seca no sertão de Crateús. O dia 19 de março já se foi e São José não mandou a abençoada chuva. O gado morre de sede e de fome, o agricultor não semeou o chão. E alguém associa o sacrifício de Alfredinho a uma grave de fome para que o Céu mande a redentora chuva. Será que Deus está cego, surdo e mudo que não ouve a clemência deste pobre homem? Será que, mais uma vez, nos abandonou? Não! Um outro grita, lá do meio da rua. Ele ouviu!!! No décimo quinto dia, quando já chega ao fim o sacrifício, cai um providencial aguaceiro salvando o sertão. Uma multidão dirige-se a igreja, e o aclamam e o veneram como a um santo.
Quando, numa seca violenta, os sertanejos vinham para a cidade sem nada, pedindo comida e trabalho, eram considerados pelo exército, pelos comerciantes e pela polícia como invasores e inimigos. Alfredinho tomou a frente e disse: Invasores não, são irmãos que precisam de nós. Então sugeriu que se colocasse um cartaz nas casas, com a sigla PAF (Porta aberta ao faminto), isto é, vocês não são invasores. Mais de 2000 casas colocaram os cartazes e acolheram os pobres irmãos do interior.
No período de estiagem extrema, onde a fome aperta como um dolorido cinto e o êxodo rural expulsa o homem do sertão, os governantes abrem as inoperantes emergências para sustentar o trabalhador do campo. Alfredinho se alista na frente de serviço do Sangradouro da Santa Fé com o único propósito de ser presença viva da fé, sem remuneração e relembra o tempo do sofrimento e da opressão nos campos de concentração. Como um Dom Quixote, o cavalheiro de triste figura, vestido com uma armadura medieval, um elmo na cabeça para evitar a insolação, leva um carrinho de mão cheio de barro, num vai-e-vem constante, parando para descansar e rezar pelos irmãos ”Ouve, Senhor, a justa causa; atende ao meu clamor...; dá ouvidos à minha oração...” No final celebra, como o profeta Isaias, a vaticinar de seu altar ”: O sangradouro da santa fé, como Jesus, um dia vai verte água e sangue ...”  Santo Sangradouro... Santo Alfredinho, que ali, continua presença viva pelos pobres e ainda sangra...

Raimundo Candido

José Alberto de Souza disse...
Nesse capítulo, você fala em Guimarães Rosa, que ainda estou devendo, e me lembra de Graciliano Ramos, que ainda estou pagando...Mas quem lê Raimundo Cândido que outra imagem mais pungente e vigorosa pode encontrar para sentir o drama dos excluidos desta nossa sociedade impermeável a qualquer altruísmo!



Paulo Nazareno disse... 





Meus Deus! Primorosos textos esses do J.Bonfim e Raimundinho Cândido.Fiquei zonzo.Cada um no seu cada qual,usaram do "chicote do corpo"(língua/palavras)de modo maestroso. Tem gente assim;uns dizem ser dom, outros inspiração.Não interessa! Cabe a nos,pobres mortais,o privilégio de poder sorvê-los à conta-gotas, a sílabas por síbalas, nesse misterioso exercício da inteligência e da superação humana. Suas bençãos!

3 comentários:

  1. Nesse capítulo, você fala em Guimarães Rosa, que ainda estou devendo, e me lembra de Graciliano Ramos, que ainda estou pagando...
    Mas quem lê Raimundo Cândido que outra imagem mais pungente e vigorosa pode encontrar para sentir o drama dos excluidos desta nossa sociedade impermeável a qualquer altruísmo!

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  2. Meus Deus! Primorosos textos esses do J.Bonfim e Raimundinho Cândido.Fiquei zonzo.Cada um no seu cada qual,usaram do "chicote do corpo"(língua/palavras)de modo maestroso. Tem gente assim;uns dizem ser dom, outros inspiração.Não interessa! Cabe a nos,pobres mortais,o privilégio de poder sorvê-los à conta-gotas, a sílabas por síbalas, nesse misterioso exercício da inteligência e da superação humana. Suas bençãos!

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  3. Querido amigo Raimundo,

    quando li Sangradouro e depois ouvi as histórias de meus pais e meus tios passei a entender melhor a vida do nosso povo, todo o sofrimento, esperança e fé. Minha tia trabalhou com ele (Alfredinho) em Santa Fé e minha mãe conta que no bolsão da Cacimba do Meio ouviam falar deste padre que trabalhava junto com o povo e era igual a um santo.

    Obrigada por dividir seus saberes, palavras e delicadezas.

    Sua amiga kafkiana

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