quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

                                                                     Preito à loucura

Mal a locomotiva principia na curva, o maquinista já olha para trás, verificando se há uma inoportuna cabeça se mostrando no portão aberto de um dos barulhentos vagões. É comum um clandestino subir, em surdina, sem murmúrio, sem leve sombra, aproveitando uma rápida parada numa estaçãozinha à beira da linha. Raramente é um destes desprendidos andarilhos, que vivem à toa, sem a reminiscência da uma partida ou a ânsia palpitante de uma chegada, afigurando-se como um poeta ou vagabundo. Ele sabe que é mais provável ser um insensato, algum infeliz demente que o mundo fabrica e que constantemente os encontra palmilhando os equidistantes trilhos, percorrendo sem ermo e com desatino numa infinda contagem dos dormentes.
                Muitos descem na acolhedora Estação de Cratheús, tangidos pelo zelo profissional do Auxiliar de Maquinista, e acabam achando refúgio em suas ruas hospitaleiras e na propensão de um povo em admirá-los, mas também com o insano e cruel hábito de atordoá-los. É uma nova atração que chega e a cidade engole aquela loucura e também se alucina, calmamente, como uma substância primordial para alimentar a sufocante melancolia.   
                Muitos engendraram sua insanidade por aqui mesmo, são os loucos de casa. Alguns, prisioneiros, as famílias os vigiam e protegem. Outros, que correm livremente soprando uma insensatez em descontrolado espetáculo, nos assombram, pelo paroxismo do incomum, chegando à fronteira do insuportável. 
Outro dia andando pela Rua Barão do Rio Branco – que logo deve ceder a placa de rua para o nome de um crateuense ilustre - já em frente ao Armarinho Literário da escritora Ana Cristina, vejo-a em desesperada aperreação, estava sentada no batente de sua loja, nada mais nada menos que “A Ninja”, uma figura misteriosa e obscura, desprovida de qualquer senso critico, com um pano preto cobrindo o rosto e uma pontiaguda arma na ponta de um cajado, querendo a todo custo um livro para ler. A poetisa Ana teve que entregar, para se livrar daquele insano mito do Japão, o livro “Cantigas do Oco do Mundo” do poeta e também acadêmico Antonio Elias de França. Tomara que a poesia tenha-lhe acalmado os nervos. Lá na frente o Dom Ratinho, outro estranho demente, caminha acelerado e soltado altos esturros, intensos berros chamando atenção dos transeuntes por ter sido enfezado pelos tumultuosos Mototaxistas. Já não se fazem mais doidos como antigamente.
                Perambulava pelas ruas de Crateús um doido chamado Cabral e um valente Tenente denominado Nonato, ambos uniformizados a caráter.  Cabral por deslocada paixão militar, e o Raimundo Nonato por predestinação cívica a Nação. Um fazendeiro, querendo agradar o Tenente, lhe manda um gordo Peru para a véspera de Natal. O ingênuo portador, avistando o Cabral de uniforme todo rasgado, lhe pergunta:  — O Senhor conhece o Tenente Raimundo Nonato? Eu trouxe um peru para ele!  O insano Cabral responde de imediato, com sua voz grossa: — Está falando com ele!!!  O fazendeiro ao encontrar o Tenente, indaga: — Que tal o peru, Comandante! O coitado do insensato Cabral pegou um duro xilindró, mas comeu peru no natal.
Perambulava pelas ruas de Crateús um homem que ao perder o juízo se metamorfoseou num caminhão.  — O Chico Budú já está lá fora! Avisava alguém da chegada do caminhão humano, que sequer subia na calçada, pois automóvel tem que estacionar é na rua. De lá mesmo esticava o braço com uma latinha surrada e imunda. Água, café e comida, tudo na mesma vasilha como se abastecesse o tanque de gasolina. É assim a mente humana, uma alma triste, mas sem nenhum tormento. Só víamos ali, no meio da rua, a sombra de um ser que foi alguém que sorriu e que amou um dia. Um esquelético fantasma, um risível espectro pensando que era um carro, nada mais de um homem restou.
Perambularam pelas ruas de Crateús tantos mansos doidos, e ainda nos deixaram saudade, como o Capão, em quem todo sapato dava no pé dele. A macaca caiu, o Paulão, a Careca que após proferir uma montanha de impropérios, inocentemente dizia: — Há meu Deus, tanto nome feio que eu sei e não me lembro de nenhum!
                Vagueava pelas ruas de Crateús o Pirulito, um insano, mas protegido pelo grande empresário José Arteiro da Empresa Rápido Crateús. Alguém propositalmente pedia: - Pirulito mata o bode! Com as mãos dava uma tapa na nuca, reproduzindo um pesado machado, emitia um longo berro e se tremia como o animal morrendo.
                Perambulava pelas ruas de Crateús, o Rouxinol, com os neurônios corroídos pela cachaça Lagoa do Barro a lhe trazer horríveis alucinações, ficava encostado nas paredes da Igreja da Matriz, dizendo alto e em bom tom: — Lá vai o diabo me levando...  — Lá vai o diabo me levando...     — Lá vai o diabo me levando... 
 Dizem que a loucura não é hereditária, embora alguma família seja propensa a apresentar mais loucos que as outras. Acho que por ter um pouquinho do sangue de Dona Maria I, a Francisca Isabel Josefa Antônia Gertrudes Rita Joana, que o Rio de janeiro chamava A Louca, tire só pelo nome, uma loucura.
É imperceptível a faixa de transição entre o dualismo existencial de sanidade e de loucura. Há tanta sensatez revestida de loucura e tanta loucura ornamentada de sensatez que acabamos descobrindo uma pura razão na loucura, uma insanidade lúcida.
                Um especialista uma vez me que disse: não adianta camuflar aquele fixo olhar, aquela sensação que corrói a nossa alma e atormenta a nossa mente, a única explicação é a loucura, uma loucura disfarçada que deve ser assumida e dignificada, mas de qualquer forma, loucura.
Eu não sei não, mas estou percebendo que, com este meu sorriso inadequado no rosto, e por não escrever mais coisa com coisa, alternando os elementos concretos com os entes abstratos de um céu azul, colado ao cinza da terra que compõem a natureza cósmica a configurar todo o paradisíaco ar que respira meu ser, é coisa de quem estar ficando pires, não acham?
Raimundo Candido

Jose Alberto de Sousa disse...
Gostei do refrão - perambulava - no início de alguns parágrafos, dá bem uma ideia dos descaminhos a que são conduzidos os insanos.
Lembra-me a história de um colega de trabalho que andou pela minha terra e, ao regressar, comentou que tinha gostado da cidade, só que nunca tinha visto uma concentração tão grande de malucos como aqueles que "perambulavam" por lá.
E ele ainda teve a desfaçatez de descrevê-los um a um com toda riqueza de detalhes para que eu os reconhecesse sem hesitar
Ana Paula disse...
Acho! Prof. Raimundim, que tipo de elixir ( Ainda é a amargosa?) o senhor anda tomando para estar escrevendo assim? Aquele professor que ensinava Matemática ainda existe? O senhor está de parabéns e a Academia de Letras de nossa terra, também.
Ex-aluna Ana Paula. (A que o senhor chamava “A santinha”, lembra-se? Desculpe-me, pelas traquinagens!)

Elias de França disse...
A distância entre os extremos deve ser mesmo muito pequena: entre a dor e o prazer, o ódio e o amor, a loucura e a genialidade... Raimundo, o Cândido e, talvez, louco tambem " por não escrever mais coisa com coisa", cada dia se revela mais genial em sua prosa fluente, embelezando as agruras de nossa vida carati.
Já virou moda a gente postar isso, mas lá vai de novo: parabens, poeta!

Um comentário:

  1. Gostei do refrão - perambulava - no início de alguns parágrafos, dá bem uma ideia dos descaminhos a que são conduzidos os insanos.
    Lembra-me a história de um colega de trabalho que andou pela minha terra e, ao regressar, comentou que tinha gostado da cidade, só que nunca tinha visto uma concentração tão grande de malucos como aqueles que "perambulavam" por lá.
    E ele ainda teve a desfaçatez de descrevê-los um a um com toda riqueza de detalhes para que eu os reconhecesse sem hesitar.

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