segunda-feira, 26 de março de 2012


Em Memória do velho meu pai, Chico Pinto, cearense de Ibiapaba 
( *Crateús, Ceará , 1923-  +Barreiras, Bahia 2009)

 CEGO DOS ÓIO

"Sabe quem sou eu?", ousou desafiar meu pai.”Então diga lá!”

O cego inclinou levemente a cabeça branca para a esquerda, descansou a velha sanfona num tamborete, enxugou o suor do rosto de feições fortes com um lenço de flanela, e pediu a meu pai que se aproximasse um pouco mais. Com suas mãos grandes de dedos mágicos ele apalpou os sulcos da face do meu pai, percorreu toda a extensão da fronte larga, passeou pelo nariz afilado de onde pendia o bigode cheio, se estendeu pelo queixo, seguiu a barba rala até as orelhas; e sentiu o volume do crânio como se fosse um oleiro a modelar um pote em argila.

"É Chico Pinto, não é?"

Era. acertou de primeira.

"Conheci pela cabeça, num sabe? Pelo formato. Pois é. Cabeça de cearense é diferente. Eliminei oito estados duma vez. Depois tem essa cicatriz no pé do ouvido... Foi coice de jegue, não foi? Foi estripulia de menino, não foi?"

Ambos acharam graça e folgaram. E eu fiquei ali, sorrindo, sem entender muito bem aquela conversa.

O cego, que se chamava Dantas, meu pai me contou depois, era uma lenda viva do Nordeste. Prosearam: Dantas falou das suas andanças tocando pelas feiras do sertão, e meu pai contou como fomos parar naquele fim de mundo. Então Dantas lhe disse: " Olha, Chico, eu não dou de me queixar não, mas estou ficando velho; e é de velho mesmo reclamar. Antes, era só ouvir a voz, o sotaque,  para eu identificar o cabra. Agora, tenho que assuntar bem, seguir o tato, passar a mão, descobrir as marcas, o sinais, que nem quem compra cavalo de cigano. Fosse moça nova, meu amigo, eu não me avexava. Fazia inté questão."

Riram de novo, com gosto.

Satisfeito pelo reencontro, meu pai se despediu deixando uma nota de dez na cuia do cego que o agradeceu dizendo até logo. Lembro ainda que aquele dia, de qualquer ponto da feira em que estivéssemos, podíamos ouvir o solo triste do "Assum preto cego dos óio" que o sanfoneiro cego extraia do fole. Meu pai, que o conhecia desde bem antes de eu nascer, disse-me que, assim como o pássaro da música do Gonzagão, o seu Dantas, cego dos olhos, tocava cada vez melhor.
  Raimundo Candido disse...
Chico Pascoal é um escritor cearense, crateuense em formação, com contos publicados em antologias e sites mundo afora. E leitor apaixonado. (Segundo ele, mas sabemos que é um dos crateuenses mais premiados literariamente neste mesmo mundo afora!)

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