segunda-feira, 14 de maio de 2012

Galo do Tourão


                                                         
Há quem diga que sempre é tempo de travessias solto a voz nas estradas, já não quero parar, meu caminho é de pedras, como posso sonha — como diz a letra de uma música, e se não transpormos as arriscadas correntezas ficaremos sempre às margens de nós mesmos. Não importa como, ou porque, um vento norteador, continuamente, nos impulsionará.
 O Rio Poti, apressado em cumprir-se em largo apetite oceânico, era como uma 5ª Sinfonia de Beethoven quando as margens se iam estreitando. Às vezes, se expandia como uma clássica melodia ressoada a violino, aparentando uma sutil calmaria e nesse ponto, na passagem do Bairro dos Venâncios, os canoeiros aproveitavam para atravessar os viajantes, que vinham apressados com seus indispensáveis afazeres ou regressavam resolutos de suas obrigações para o sossego da Ilha, para o campestre Tourão ou o distante Pastos Bons.
O Zé Regino, excelente tocador de violão, também entendia das artes de canoagem, juntamente com seu amigo, o experiente remador Dão Aleixo, o único concorrente. Quando um ia firme e determinado, o outro vinha com intensa coragem, cortando na proa a força bruta das águas onde esta era menos intensa e sem o perigo de ir ao encontro das pedras traiçoeiras.
A clientela que ia chegando logo ajustava o preço da arriscada travessia que nunca passava de um reles cruzado. Um jovem elegante que se aproxima, num gingado matreiro, já é bem conhecido da dupla de canoeiro, e chama-se Antonio Xavier Mota do Nascimento, o Galo do Tourão, possuidor de um ilustradíssimo discurso.
                Com seriedade que lhe é própria, pergunta:
                — Canoífero, quanto queres de remuneração pecuniária para me transportar deste pólo ao outro hemisfério?
                O canoeiro também querendo se exibir, graceja espirituoso:
                — Seu Antônio, o senhor está me perguntando quanto cobro para lhe deixar lá no cemitério?
                Indignado com a réplica rimada do canoeiro, o Galo responde na bucha:
                — Caboclo, se fores por ignorância te perdoarei, mas se fores zombando de minha alta prosopopéia caniancra, dar-te-ei um murro no alto da sinagoga que cairás chorando aos meus pés como uma mulher perdida.      
                 Toda lenda começa assim, de uma simples e maravilhosa narração oral que cai no repertório popular como fato sucedido e que é repetido pela imaginação poética, virando tradição.  Isso se deu, também, com Águia de Haia, o ilustradíssimo Rui Barbosa.  Um relato diz que, ao chegar em casa, ouviu um barulho estranho vindo do quintal. Chegando lá, constatou haver um ladrão tentando levar seus patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do indivíduo e, surpreendendo-o ao tentar pular o muro com seus amados patos, disse-lhe:
              — Oh, bucéfalo anácrono! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopéia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.
                E o ladrão, confuso, diz:
               — Dotô, eu levo ou deixo os pato?
                Todo homem rude, que chama atenção pelo feitio quixotesco, mas sendo dotado de uma rara inteligência, aprimora-se pela escola da vida, pela lida na roça e sempre se sobressairá no manejo das palavras ou no dom da arte, feito um Patativa ( Se um doto me perguntá / Se o verso sem rima presta, / Calado eu não vou ficá / A minha resposta é essa: / — Sem rima, a poesia / perde alguma simpatia / e uma parte do primô / não merece munta Parma / é como corpo sem arma / E como coração sem amô). No improviso das palavras, utilizadas pelo Galo do Tourão está a mais pura prosa que brota da emoção, como ao chegar ao mercado para comprar um cambo de peixes:
                — Moco, quanto queres por um cambo desses nadantes que vivem a explorar as águas do Poti que nasce na Serra da Joaninha, atinge o Atlântico e vai até mesmo ao Pacifico?
                Ou mesmo quando viajava de saudosa Maria Fumaça para a cidade de Ipu, e replica ao fiscal do vagão após a terceira abordagem sobre uma passagem:
                — Bilheteiro, queres ter a equiessência de não incrementar a picotação desta minha autorização de viagem a qual me conduzirá à terra de Iracema, a vigem dos lábios de mel que a plebe apela para a ignorância e chama de a loira desposada do sol.
                Um homem não é só um “ter” ou um “ser” de um instante presente, é também o que ele profere e o que ele edifica sobre o torrão em que nasceu como um patrimônio cultural e humano para que as ascendências se perpetuem nas gerações futuras e fujam de um obscuro anonimato. Os discursos empolados e veementes do Sr. Antonio Xavier é um dos nossos bens imateriais que devem ser tombados. 
                Trabalhador incansável, não media esforços para sustentar uma prole numerosa, e sempre necessita da ajuda dos filhos para a árdua terefa:
                — Marclô, oh filho meu, érguide deste leito e vai aquele aglomerado público que os imbéceis chama de mercado e compra duas massas côncavas e convexas que servirão de alimento vitais e que a peble apela para a ignorância e chamam de cuscuz.
                Por motivos diversos corremos o risco de perder tudo que temos até mesmo a nossa preciosa liberdade, pois um agir não é só determinado por um constrangimento exterior mas também de acordo com nossas necessidades interiores. De uma feita, na prisão, o Galo chama seu filho:
                — Marclô, oh filho meu, vai a tua casa e diz a tua mãe, que é a minha legitima esposa, que eu não estou preso, estou apenas détido, que os imbécieis apelam para a ignorância e chamam de detido.
Suas refutações espirituosas sempre provocam um riso espontâneo nos lábios de quem o ler, como o que ocorre agora com você, meu amigo leitor, e é de se esperar que, lá de onde esteja, com seu agastamento peculiar, ele nos responda:
 - Sujeito inculto, se ris de minha prosopopéia por tua estúpida ignorância, eu te perdoo, mas se zombas com desdém por tua alma tosca, dar-te-ei um cocorote no alto da tua sinagoga que ficarás a ver estrelas.
Mas isso não acontece, e ele permanece calado, na sua maneira elegante, no seu garbo de um fino dândi, a nos mostrar que o silêncio, às vezes, é a melhor resposta...

Raimundo Candido

Um comentário:

  1. Ô, mundinho, e que me dizes da arte do mal falar de que era mestre o grande Adoniran Barbosa, pois saiba que tão difícil quanto dizer o português correto, mais ainda desafiador é dominar o dialeto lá do Brás!!!

    ResponderExcluir