segunda-feira, 7 de maio de 2012

O Encontro




                Eu sempre desconfiei das coisas do mundo. Não acredito na estabilidade das formas sólidas, na espontaneidade líquida do que fluí com feitio brando e que me arrasta rio abaixo, com uma bravia carranca. Até da fingida desordem de um aéreo caos que se me apresenta, determinando o que vejo, eu duvido. Fizeram-me acreditar em muitas coisas bobas, como no invisível átomo carregado de partículas e que sou uma mera poeira de um imenso Big Bang a caminhar inexoravelmente para o decantado Big Crash. Incutiram-me a crer até nas mágicas fórmulas de felicidade, mas, no íntimo, eu sei que é necessário acreditar em algo bem maior, se não o viver fica desonesto.
                Há muitas razões para se duvidar dessas coisas mundanas, mas eu possuía uma forte intuição, tinha uma clara visão de que poderia haver uma interação entre a minha determinante vontade e um mundo paralelo que se reflete no espelho da minha alma, uma tábua de salvação, a existência do aprazível Éden onde posso rever a todos que um dia se foram. Para confirmar esta minha visão, um encontro me fora marcado. Agora poderia desvendar esse impenetrável mistério.
Os encontros mais importantes que se tem notícia na história da humanidade foram combinados pelas almas antes mesmo dos corpos se avistarem na casualidade. É como a confluência dos rios, somos predeterminados com bastante antecedência a entrechocarmo-nos em convergência divina, num afluxo que há muito emana de nossas mentes num curso caudaloso e propício a um novo renascer.
                Aquele fadado encontro e que há muito já estava agendado, me fora despertado numa mensagem eletrônica pelo ilustríssimo Luiz Bonfim, um aposentado de vida boa, por intermédio das ondas de uma rede social assombrosamente moderna. Certas pessoas virtuosas aproveitam estes espaços inusitados para enviarem seus sopros de esperança, como a benevolente Vera Lúcia Teixeira e o poeta-compositor Ocelio Camelo, afeitos anjos benfazejos. Na missiva virtual, o amigo Luiz, me dizia assim:
— Vá, chegue bem cedo e fique aguardando... porque eles, com certeza chegarão.
                Confesso que senti certa objeção, pois um verso de um memoroso poeta, exímio driblador da morte e apelidado de São João Batista do Modernismo, o libérrimo Manoel Bandeira, não me saía do espírito: ”Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra alma. Só em Deus — ou fora do mundo. As almas são incomunicáveis. Só os corpos se entendem, mas as almas não”. 
                Enchi-me de coragem e fui. Já escorado na esquina da Fábrica de sonhos, no prédio do velho Externato N. S. de Fátima, esperava assim meio inseguro naquela situação, mas sem a aflição desesperadora de quem não sabe aguardar. Sentia uma pontinha de impaciência, o que não deixa de ser uma fração de um pecado, pois foi a falta desta virtude que nos fez ser expulsos do paraíso.
                Repetidas vezes estendo a longa vista pelos cruzamentos das ruas em busca de algo enquanto o tempo, propositalmente, demora a transpor o umbral da tarde. De repente, meus olhos que tantas vezes viram o ocaso, extasiam-se no crepúsculo do fim da rua, foi como se alguém descesse dos últimos raios que se despediam, num vulto vagaroso, encurvado sobre um bastão e a caminhar lentamente, me pareceu que estava só aguardando o fim do dia. Foi inacreditável o êxtase e ainda duvido do que vi. Pela mesma rua que outrora fora conduzido numa rede estirada no longo varal de aroeira, o velho frade capuchinho, chamado Frei Vidal da Penha de Frescarolo, vinha ao meu encontro, os pés descalço, vestido num habito preto, e só se via a longa barba branca saindo debaixo de um negro capuz pontiagudo.  Já bem perto, com um olhar cansado, mas penetrante, me dispara uma pergunta a queima roupa, numa voz fatigada e trêmula, característica dos anciões:
— Quem é você?
Atordoado estava e mais pálido fiquei, sem forças para responder aquela urgentíssima pergunta.
— Este é o poeta Raimundinho, meu Frei, que nasceu nesta esquina e cresceu brincando neste sacrossanto espaço que agora pisamos.
O medo aumentou desproporcionalmente, pois aquela resposta, com um som tão seguro, não saíra de minha boca. Vinha da outra esquina, uma figura esbelta num caminhar firme e elegante, rosto fino, mas com uma voz que me pareceu emitida por um trovão. Só podia ter-se sublimado das partículas do ar, pois acabara de olhar naquela direção e não vira nada.
— Que prazer lhe encontrar por aqui, digníssimo Pe. Juvêncio! Viu como está a nossa rua, agora é uma Avenida bem moderna, com esse tapete preto a lhe cobrir a poeira, nem parece mais aquela estradinha dos anos de 1800. Ainda bem que não afirmei que esta terra seria uma cama de baleia e nem cresceria como o rabo de minha besta.
— Não foi digníssimo, ainda bem! Pois todas suas profecias se realizaram como estava previsto.  Eu sinto é uma imensa saudade das águas doces dos Tucuns, se os crateuenses  tivessem continuado a beber daquela divina nascente, a situação municipal estaria bem melhor, e alguns cidadãos não teriam ido, com tanta sede, beber em outras fontes, como temos notado ultimamente.
Com os nervos já se acalmando, o temor e o tremor sumindo, ouço um “Boa Noite!”  educadíssimo com uma voz doce e suave. Eu tenho a firme sensação de conhecê-la. Viro-me rápido na direção da voz e vejo o inacreditável para meus olhos, mas que alegrou meu coração, uma dupla inesperada caminhava ao nosso encontro, era Dom Fragoso, com aquele sorriso largo e sincero acompanhado de perto pelo Pe. Alfredinho, que me pareceu ter um círculo brilhante sobre a cabeça, mas foi só impressão, pois me lembrei que ele não gostava que lhe atribuísse essas coisas.
— Está tudo bem, Raimundinho?
— Tu... tu...  Minha voz estava presa e meus olhos deviam perecer umas bilas de gude de tão arregalados. Ele mesmo continuou a falar.
— Fiz uma visitinha aos meus velhos aposentos já que o governo espiritual desta diocese está se mudando. Transmita aos nossos amigos que desejo que o novo Presbítero nem seja tão carne nem tão peixe e cuide bem do nosso rebanho.
Aproveitando a ocasião, tentei balbuciar uma pergunta importantíssima sobre uma questão de saudade, e percebi um disfarçado sorrir afirmativo na sua face, entes mesmo de ouvir a minha pergunta, quando uns estampidos de fogos pipocaram no ar.
Despertei assustado, os estrondos deviam ser os fogos da Igreja convidando os fiéis para alguma festa religiosa ou alguém avisado aos incautos da chegada de algo muito bem aguardado.
Mesmo acordado, tive a impressão de ter ouvido um quarteto se despedir em coro, anunciando ao longe:
— Não dê crédito aos artificiosos sussurros que existem por aí, Raimundo, nem se importe com as ilusões da matéria, siga o único caminho da fé que você chegará a Deus e poderá viver plenamente. Até o nosso próximo encontro!
E um agradável silêncio, como um amém bradado dentro de uma Catedral, ainda ecoa no imenso espaço vazio da minha mente.

Raimundo Candido


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