domingo, 19 de agosto de 2012

Avôhai


             Um poeta- cordelista-agricultor, lavrador de Cante Lá que Eu Canto Cá, entediado com tantas homenagens e títulos que lhe foram concedidos por diversas Instituições de Ensino Superior – cinco “Doutor Honoris Causa” – num repente de ocasião gorjeou com saudades da roça, onde matutava de inverno a estio afeito patativa, com foice e enxada na mão: “Chegando o tempo do inverno, / tudo é amoroso e terno, / sentindo o Pai Eterno / sua bondade sem fim. / O nosso sertão amado,/ estrumicado e pelado, / fica logo transformado / no mais bonito jardim.”
Ainda é um poético paraíso, mesmo com os apetrechos da modernidade que instalaram por lá: um amplo estacionamento de carros, um rumoroso bar, piscina azulada, campo de futebol e um grande salão de eventos. Mas o bonito e bucólico jardim era quando a branca casinha da Fazenda Pereiros, rodeada de frondosas algarobas, tinha um alpendre com um parapeito convidativo ao sossego da gente e não impedia que o olhar contemplativo, de quem se esticava numa alada rede de algodão, se deleitasse na visão aguada e aromal de um açudinho chamado Jaibara. Naquele lugar, dificilmente acharemos um pé de Pereiro, árvore nativa da caatinga nordestina, pois foram quase todos transformados em estacas de cercas, lenhas e carvão.
                Os primeiros meses de chuvas são bonitos de se ver, espontaneamente jorra um rejuvenescido sertão. Tudo verde, tudo alegre e a vida a brotar do chão. Na arejada varanda da fazenda, uma cena incomum já nem chama atenção dos habituais visitantes dominicais: um manso canário-da-terra se empoleira no punho de uma rede com varanda de crochê e trina reverenciando ao homem que ali está, majestosamente, deitado.  O Senhor Júlio Facundo de Menezes, com mansa serenidade a transbordar de um meigo olhar, demonstra infinita sabedoria que só subsiste na humildade dos que já nasceram sabendo viver. Contempla os meninos, que brincam inocentemente no terreiro e nota a ausência da Delite, a filha mais velha, que está sendo esmerilada carinhosamente pelos avós maternos, o fazendeiro João de Matos ( Pudidi) e a bondosa avó (Budidi), também sente a ausência, pelo vago olhar, de José e Antonio Belê, mas não no soberbo coração.
              Chama o mais irrequieto dos meninos, que se diverte com o irmão Wilson e pergunta, para mostrar o orgulho de pai, pela perspicácia de um filho precoce:
               – Oh, Joãozito, venha aqui e me responda, o que você vai ser quando crescer?
               O ingênuo menino ouvira falar que Dédalo para fugir do Labirinto, prisão do mitológico Minotauro, inventara um par de asas coladas com cera nas costas. E ruflaram, um sábio pai acompanhado do filho, o imprudente Ícaro, na busca de liberdade, rumo ao encontro da realização do sonho maior da humanidade: voar como os pássaros. E o menino resoluto, responde:
             – Papai, eu quero ser piloto de avião!
              Admiram-se todos, inclusive Vilebaldo Martins, um senhor careca, de riso solto, dono de um posto de gasolina, há muito amigo da família. E com voz grave, afirma:
             – Amigo, Júlio, eu tenho a impressão de que esse menino herdou toda impetuosidade dos Matos. Não tem uma gota da paciência dos Menezes, pois mal se desprega do chão para andar e já está é pensando em voar!
              Um cheiro de grão torrado atiça as narinas, é quando Dona Maria de Matos manda trazer um cafezinho quente que é servido com queijo coalho, acabado de sair da prensa. Com a resolução de quem é habituada a tomar decisões e emitir opiniões, anuncia:
             – Ano que vem, mandaremos os meninos para estudar em Fortaleza. As meninas vão para o colégio de Nossa Senhora do Sagrado Coração das irmãs Dorotéias, e os meninos vão se aplicar, para ser doutor. Já acertamos a viagem no caminhão do Sr. José de Alencar.
             Com a debandada dos filhos para o mundo, os pais padecem na expectativa dos mesmos, premeditam os sonhos e almejam um feliz regresso ao lar. O Joãozito, como ele mesmo profetizara, retorna como piloto da aviação comercial e avisa que chegará nas asas de uma assustadora e metálica esperança. Os amigos e familiares o aguardam, ansiosos, na Fazenda.
              Os galos das torres da igreja nunca haviam tomado um susto tão grande como o daquele voo rasante sobre a praça. No desfecho dos anos 40, foi o primeiro piloto crateuense a se exibir por aqui e se dirige como ligeiro falcão para os Pereiros, num espetáculo arriscado da arte de pilotar. Dizem que as galinhas ficaram sem nada para ciscar no terreiro, perdendo inclusive as penas depois que o aparelho passou lambendo a chão, onde há pouco um magricelo menino sonhava em pilotar um avião.
             Com a aeronave na pista de pouso do campo velho, mal se estira na rede da varanda para agradecer os calorosos aplausos, recebe ordens da mãe, Dona Maria, para deixar uma amiga que está mal de saúde, em Fortaleza. Mesmo a contra gosto, vai. Quem é ele, para desobedecer à índole rija da filha do poderoso João de Matos?
              Foi outra grande admiração, quando perceberam que, mal a alquimia do temperado almoço irradiava o aroma de um farto banquete no ar, o top gun indomável já estava de volta ao lar. Tinha a índole de um Santos Dumont nas veias, mas o destemor mitológico de Ícaro na alma. O mesmo inclemente sol que derreteu as asas do mitológico grego voador presenciou o nono acidente aéreo que o vitimou, carbonizado ao bater nos fios de alta-tensão.
              Um poeta português, das múltiplas personalidades, tinha razão quando disse: o nosso viver é um morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela. Dona Maria de Matos, também se fora. Sabemos que para se suportar melhor a vida devemos está pronto para, também, morrer. E a poesia da velha Fazenda Pereiros foi se apagando aos pouco!
              O transporte para a cidade era feito sobre um felpudo coxinil branco na cela de um alazão machador, treinado por Cícero Maçal, um exímio adestrador de cavalos. O Padrim Júlio constantemente vinha para a casa da Dona Delite, na cidade e neste sempre vir, foi ficando, para alívio do cruel isolamento, desafogo da solidão e alegria dos netos. Tínhamos bons momentos de recordação com as repetidas lembranças de Vovô, pois recordar antigas venturas ainda é um puro momento de felicidade. Até num resmungo infantil ele rezava na gente: “Cancão do bico torto do sobrecu arrebitado...” e a dor logo se ia.
             O Manoel Nene Martins Coriolano, um reservado advogado com licenciatura plena e total em História, foi quem me confirmou: – Raimundo, o teu avô era um grande historiador- memorialista e foi uma pena ter partido sem deixar registrado todas aquelas boas lembranças. Fez questão de me recordar uma delas, a história do Padre Verdeixa.
             Seu Júlio dizia que o Pe. Verdeixa, da região do cariri, depois de ordenado, mostrou-se ateu e sacrílego e por se meter em arrojados litígios políticos, sempre se opondo aos sistemas de governo, ficou um indivíduo homiziado, constantemente perseguido por Jacarandá, um alferes do Exército que seguia seu rastro por onde andasse.  Uma vez, no distrito de Siupê, em Caucaia, bateu à porta de um camponês, a quem pediu abrigo. A dona da casa estava em trabalho de parto, assistida por um feiticeiro. O Padre o expulsou e rabiscou umas breves palavras num papel, colocou o escrito dentro de um saquinho em forma de esculápio, pendurando-o, urgido de devoção, no pescoço da parturiente e quase que instantaneamente um novo ser veio ao mundo. A população ficou grata ao santíssimo homem. Verdeixa seguiu em frente com os agradecimentos monetários daquele humilde povo e o saquinho maravilhoso ficou de pescoço em pescoço realizando prodígios.  De tanto andar, o medicinal e milagroso esculápio descosturou-se. Alguém violou o segredo e leu com espanto o que achavam ser uma valiosíssima oração-forte: “ - Vamos passando bem, eu e meu cavalo, se quiser parir, poder parir! Se não quiser, pode morrer entupida! “
            Embora gostando de contar saborosas histórias como essa uma neta me afirma, a escritora Vera Lúcia Menezes, que Vovô assistia a todas as missas, compenetradíssimo, e no final da solenidade ainda beijava a mão do digníssimo padre. 
            Um dia, como os passarinhos, que ele gostava de alimentar na calçada da Rua Frei Vidal da Penha, como se soubesse o último dia de sua longa vida, deita-se, vira de lado e parte, sem dizer um adeus.
             De tudo resta um confidencial silêncio que reverencio, não com o trinado do extinto canário dos Pereiros, mas com uma composição magistral e emocionante voz do compositor Zé Ramalho: ” Um velho cruza a soleira /de botas longas de barbas longas / de ouro o brilho de seu colar...” Depois do instante silencioso, que por si é oração, só a música para me manifestar o inexprimível.  A alma enternece e as lágrimas caem. É o Padrim Júlio, pai e avô, como uma canção! “ Pares de olhos tão profundos / que amargam as pessoas / que fitar” Nos é retirado pelos anjos, num condolente fim de tarde, amabilíssimo Avô, Pai... “Oh! Meu velho e invisível Avôhai...   


 Raimundo Candido

José Alberto de Souza disse...
Que pena de mestre, varando a nossa sensibilidade com histórias emocionantes e transcendentes


Um comentário:

  1. Que pena de mestre, varando a nossa sensibilidade com histórias emocionantes e transcendentes.

    ResponderExcluir