quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Botequim


              Era um prédio antigo que ficava na esquina da Rua Cel Zezé com a Rua Poeta José Coriolano de Souza Lima, no coração da cidade. O amarelo desbotado das paredes indicava um evidente desamparo e nas entradas laterais, escancaradamente encardidas, via-se o desleixo de cada oitão. Logo cedo, o desembaraçado Teófilo abre as portas do recinto. Alguns fregueses, sequiosos, já o aguardavam para reiniciar mais um dia de rojão etílico, e como nos aconselha o francês Baudelaire, bebamos para não sentir o terrível fardo do tempo que nos quebra os ombros e nos curva ao chão.
              De início, é só pinga-pinga de desocupados cidadãos. Alguém toma um trago fiado, soltam uma conversa mole de quem não infunde a mínima fé, e prossegue no descuido da vida. Os pinguços inveterados esticam o olhar rumo à porta, na esperança de que um (des)conhecido se apiede de seus nervos em frangalhos e lhes pague um trago.
                Na hora do Rush, enquanto os passos da humanidade giram para destrocar uma carcomida fome, um dos eixos móbeis do mundo, alguns agem como autômatos cumprindo uma penosa rotina, e se dirigem aos bares para aplacar a sede que os consomem.
               Enquanto Teófilo disputa uma porrinha de palitos fósforo com o Prof. Praxedes ( peculiar avis rara social ) e despacha outra cerveja a um velho freguês no balcão, um impaciente doutor pede um whisky na mesa. Já está habituado ao intenso movimento sem demonstrar a mínima aperreação.  Ouve-se um reclame, em estridentes berros que vem de uma sala reservada, lá atrás. São os funcionários da Coletoria Estadual que mastigam um litro de aguardente com um indigesto tira-gosto: — Oh, Teófilo, a panela de buchada até que está boa, mas este cheirinho de rato é que estraga tudo! E botequeiro se justifica:
               — Desculpem pessoal! Coloquei umas vitaminas para os ratos. Mas não se assustem, pois acho que dentro da panela, não caiu nenhum rato morto, não!
              Uma questão complicada nos bares é na hora de pagar o que se deve, é só falar em acertar uma conta que se estampa a alegria nos olhos dos donos dos botequins. Alguém pede para somar o débito, que já vem se acumulado há dias... A amnésia de bêbado é coisa notória e trivial: — Eu não bebi essas cervejas todas, Teófilo!  Mas um brincalhão, ali por perto, sempre tira um sarro da dúvida alcoólica:  — Ora, ora...a cerveja estava aí, geladinha, só esperando. Se você passou em frente ao bar e não entrou para beber... O Teófilo anotou!
               Alguns quarteirões dali, esquina da Rua da Pimenta, Elias Vieira, outro barmen show, atende com distinção e gracejos aos seus fregueses. Sempre que abre uma cerveja, dá umas embaixadinhas com a tampa da garrafa, demonstrando o talento e arte que lhe sobraram dos salões de dança, era um carrapeta. Uma vitrola solta a voz de antigos seresteiros para o deleite dos ébrios que regam a saudade do que nunca tiveram ou nunca terão.
              Um pé de valsa, já meio zonzo, cantarola a canção que só se efetua na veludosa voz do cantor Jessé, a grande atração da Boate do Louro da Cruz, logo mais: “Rimas de ventos e velas / vidas que vem e que vai / a solidão que fica e entra / me arremessando contra o cais”, e recordo-me dos colegas, barcos ébrios, que tentarão encher o tanque no botequim do Valmir, antes de ir ao show do Louro. Espero que Juracy, não engorde o olho mais uma vez e faça a polícia fechar o pobre Bar do Valmir, aonde temos direito a uma cuspidela ao pé do balcão.
              São diversos os pontos onde a população etilista ingere uma abrideira, o primeiro trago, passando pela saideira, a tangedeira até chegar a irremediável caideira. Na bodega do Luiz do Emídio, última estação da Frei Vidal, pode-se entrar, abrir a geladeira, escolher a loura mais gelada e apreciá-la sentado sobre o balcão.  Liberdade assim, nem na nossa casa. Já no Bar do Tio Onésio, sócio do Lourinho, é um clube de elite, embora esteja situado no Beco da cachaça, o pinguço de lá mostra um pedigree até nas feições do rosto, que o diga o bancário Júlio Menezes.
                Das classes de bêbados a mais desregrada é a dos poetas. Um deles ousou dizer: “O álcool é como o amor. O primeiro beijo é mágico, o segundo é íntimo, o terceiro é rotina. Depois dele, você tira as roupas da moça” E de todos os poetas embriagados, o Velho Safado chamado Charles Bukowski bateu todos os recordes, era como se tivesse um carimbo na testa: Eternamente Ébrio!
              Por aqui, na terra da puríssima ou desdobrada Lagoa do Barro, um poeta tentou passar de consumidor a produtor de aguardente, mas as circunstâncias providenciais lhes tiraram as duas possibilidades e ele foi ser poeta-compositor-construtor. Nunca devemos lamentar que um poeta torne-se um bebedor, devemos lamentar sim, que nem todos os bebedores sejam poetas.
               Um dos mais antigos barman que se tem notícia no mundo chamava-se Eubulo, em 375 a.C. na antiga Grécia. Ele descreveu, com detalhes, como se conduz eficazmente um bar: As três primeiras taças de bebida são para os comedidos, a primeira é para saúde, a segunda para o amor e o prazer e a terceira para o sono. Devemos avisar aos consumidores que já basta e os persuadimo-los a ir para casa. Se insistirem em ficar, é exclusiva por conta e risco. Só avisamos, amigavelmente que a quarta dose pertence à violência, a quinta ao tumulto, a sexta, à folia, a sétima, aos olhos roxos, a oitava ao policial, a nona, à bílis e a décima dose à loucura e ao desespero. Sábio Eubulo!
               Depois que a Presidente(a) Dilma Rousseff presenteou o poderosíssimo Barack Obama com um litro de cana, de edição limitadíssima, no valor unitário de R$ 212. 000, 00, cheguei a conclusão, pelo bocado que bebi (Mais que um bocado!), de que já ingeri um rio de dinheiro.
                Para quem bem sabe, até a história do Brasil foi escrita sobre os tonéis de cachaças. Os irmãos portugueses quando caíram na besteira de proibir a nossa branquinha pela desgostosa bagaceira deles, transformaram a cachaça no símbolo de resistência ao Império Lusitano e vencemos, de copo na mão, mais uma guerra.
               Há quem diga que a nossa aguardente, a malvada, o mé, o engasga-gato, a água que passarinho não bebe, serve até de remédio: cura gripes, elimina os vermes, debela frieiras, espanta as tristezas e outras mazelas... Eu acredito! E despeço-me desta mesa de bar com mais um dito do velho vate bebedor Baudelaire: “ É preciso estar sempre embriagado. Eis aí tudo: é a única questão. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa maneira. Mas embriagai-vos!” Até e deixo, para não perder o costume, a conta dependurada no prego mais alto da prateleira.

Raimundo Candido
Silas Falcão disse...
Poeta Raimundinho, você me (re) conduzia aos bares da juventude. Com os amigos ou meu pai, tomei todas no bar do Teófilo. Seu Eliás, que tinha um filho que o chamávamos de Jerry Adrianne, foi outro bar da minha boêmia. Tinha também o Zé Artur, no bairro dos Venâncio. Bela crônica.

José Alberto de Souza disse...


ExcluirPara o santo, o primeiro gole derramo no chão e os outros vou distribuindo sem distinção. Agradeço esta alma caridosa que me pagar a conta.

2 comentários:

  1. Poeta Raimundinho, você me (re) conduzia aos bares da juventude. Com os amigos ou meu pai, tomei todas no bar do Teófilo. Seu Eliás, que tinha um filho que o chamávamos de Jerry Adrianne, foi outro bar da minha boêmia. Tinha também o Zé Artur, no bairro dos Venâncio. Bela crônica.

    Silas Falcão

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  2. Para o santo, o primeiro gole derramo no chão e os outros vou distribuindo sem distinção. Agradeço esta alma caridosa que me pagar a conta.

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