domingo, 4 de novembro de 2012

As 7 Noivas do Mozão


 
               Desde quando a serena imagem de Nossa Senhora passou a fitar, do topo do Arco de Fátima, os devotos crateuenses que  num deliberado ato de amor, prenderam-na em grades cordiais, desde quando os irmãos Lúcia, Jacinta e Francisco passaram a lhe fazer contemplativa companhia que o quarteirão da Rua Dom Pedro II, partindo da divisória linha férrea até a calçada do imponente prédio do Banco do Brasil, se transformou numa verdadeira algazarra de transeuntes. Não faltam motivos para se percorrer aquele trecho comercial nas primeiras horas da manhã, enquanto o sol inclemente pouco arde.
              O trânsito é intenso naquela via, mas bem poucos se benzem ao passar pelo venerado e histórico arco, pois a preocupação com o dia-a-dia os torna indiferentes, num vivo clima de inquietação, em busca de sobrevivência.
               A maioria são criadores de gado, ovelhas ou porcos que se desesperam atrás de comprar ração para que seus animais possam escapar desta impiedosa seca de 2012, a pior dos últimos trintas anos.
              O comércio do saudoso Senhor Izauro Machado, um dos mais antigos daquele trecho, é do tempo em que cada prédio tinha uma avantajada Jiboia (cobra de veado) para dar conta das infestações de ratos. Hoje, os filhos Flávio e Antônio, continuaram a tanger o empreendimento, conservando os antigos fregueses aliado aos novos que vão chegando pelo bom atendimento e pelo clima de convivência cultural.
             — Amigo Antônio, qual o preço da ração, hoje? Pergunta um Senhor com um elegante chapéu de massa e ares de fazendeiro.
              — O milho está 46, o xerém e o resíduo 48 e a soja a 80. Aproveite que já vai subir de preço.
              Mas há quem nada compre, sendo assíduo freguês das cadeiras de couro cru, dispostas como um convite a sentar-se e lorotar, falar dos políticos, da vida alheia ou contar uma mentira qualquer. Eu, vou só ouvir!
               A palavra que sai da boca do povão é sempre espontânea, carregada de adjetivos, se elogia, enaltece mesmo, se fere, punge como um punhal amolado!
               — É um tinhoso! Um bacorim enjeitado do cangote duro! Alguém chega reclamando de um negócio que não deu certo por aí.
                — Que foi que fizeram com você, meu amigo? Pergunta Flávio Machado já em busca de novos dados para alguma saborosa crônica.
                 Às vezes, velhos conhecidos que há muito se foram em busca de melhores dias regressam, como ave de arribação, e proseiam sobre o que fizeram ou deixaram de fazer, mas sempre confessando suas doloridas saudades.
                 Quando não é o insensato Chico - entre outros tantos que já houve - pedindo uns trocados para comprar cigarros e que logo escapole da sugestão de trabalho, como o capeta foge da cruz, é o taxista Romualdo soltando uma canção melosa, e é ele mesmo quem faz a introdução da segunda voz, pedindo música: — Oh, Romualdo, canta mais uma aí! 
                 — Não posso, não! Ele responde.  
                 — E por quê?
                 — Porque não posso mais andar procurando ela...  Entoa, em voz alta, um melodrama choroso que em pouco tempo atrai diversos curiosos para a porta do armazém.
                 Quem mais chama atenção nas assembleias bisbilhoteiras da Rua Dom Pedro II é o Mozão, um sessentão bonachão que dá a impressão de ter achado o segredo da felicidade, pois está sempre com um sorriso estampado no rosto. Ouvindo-o esquadrinhar a vida do povo, lembrei-me do Poeta Passarinho, Mário Quintana, que uma vez disse: “Não te abras com teu amigo, que ele um outro amigo tem. E o amigo do teu amigo possui amigos também...”
                 Mesmo sendo um caminhoneiro de alto gabarito profissional e tendo conduzido trens rumo ao calorento Piauí, tenho a impressão de que a sua verdadeira profissão é de repórter, pela curiosa tenacidade com que sabe da vida de deus e do mundo, incluindo os segredos das mulheres casadas.
                 Relata com detalhes como um criador espertalhão colocava o gado, já cansado e caduco, propositalmente na linha férrea para depois de atropelado retirar o quarto traseiro e ainda receber as indenizações da REFESA e num espirituoso gracejo conclui: — O “fulanim” era velhaco que só jumento da orelha branca, daqueles que não deixa a gente colocar nem o cabresto!
               Conta-nos da situação dos ricos da cidade que só saem para rua à noite, com medo dos credores, diz que alguns até almoçam escondido para não ter que pagar refeição para os coitados dos empregados. Peremptoriamente afirma: — Eu não tapo o sol com peneira, não! Pode ser meu pai, prestou, prestou! Não prestou, não Prestou! Sei de fazendeiros por aqui que só tem os filhos doutores por causa do leite com água! E tem gente boa que só paga as contas com intrigas, afirma ele.
                 Não sei por que, mas nestas horas lembro-me do velho sábio Freud: “Quando Pedro me fala de Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo”. Mesmo ciente que o homem é dono do que cala e escravo do que fala, contínuo sorrindo e me divertindo com as histórias do Mozão.
                Alguém atenta para o vivo olhar do aposentado maquinista, que acompanha com saudade os passos de uma jovem que passa rápido pelo portão do armazém e pergunta:
               — Mozão e as noivas? Conta aí! 
              Ele ri, mas destrinça lentamente a inusitada história.
               — Eram sete noivas, todas com alianças no dedo, e entre elas havia cinco campesinas Marias. A bicicleta tinha um dínamo colado no pneu que acendia um farol para iluminar as veredas do caminho. Eu, com a cabeleira luzindo de brilhantina, partia do Barro Vermelho até a casa da primeira candidata a casamento, que impaciente esperava com os cabelos que nem mijada de mocó com tanto óleo de mamona que escorria no cangote, passava um tempinho por lá.
               Aquele era o tempo dos réis, quando palavra dita valia mais que papel assinado. Os pais das noivas iam logo ameaçando: — Oh, se bulir, eu capo! Hoje, é um enroscado de novela, que se o cabra namorar mais de sete dias ou ele mexe com a moça ou a moça mexe com ele!
              Quando me despedia da casa da primeira noiva, ela subia num pé de ata para observar que rumo eu tomava, mas eu não era besta, apagava a lanterna da bicicleta e seguia danado para cortejar a segunda, depois namorar a terceira...
               Mas sabemos que isso é coisa bíblica, vejam Abraão, Jacó, Davi e Salomão tinham várias mulheres. Só o sábio Salomão chegou a ter 700 esposas e 300 concubinas e o sertanejo alencarino, cabra-da-peste virado numa girita, não fica muito atrás, não! O senhor Franciné de Pacajus, com 77 anos é conhecido como homem de ferro do sertão, tem três mulheres e 51 filhos sustentando a todos sem a grande riqueza dos velhos profetas.
             Mozão nos confirma que cada uma das mulheres sabia da existência das outras e que todas tinham a absoluta certeza que seria a preferida, por isso nunca deu desavença. Confusão grande foi receber de volta as alianças das outras seis, quando ele escolheu uma das Marias para digníssima esposa. Mesmo assim, o galanteador Mozão um dia trocou a eleita Maria, custosamente escolhida entre as sete noivas, por uma nova esposa e afirma disparatadamente que voltou 500 reais pela permuta... Eita, Mozão feroz!
           Um dia, na terra do frevo e de lampião, um cidadão confundiu o amigo Flávio com o seu querido Secretário de Cultura, e não me surpreendo mais não, porque hoje sei a razão: alguns felizardos atraem espontaneamente cultura assim como o metal é seduzido pelo imã, e se duvidar é só passar um tempinho no armazém do Seu saudoso Izauro! Oh, Cratheús...

 

Raimundo Cândido

José Albertto de Souza disse...
Aqui no Sul, o nosso Érico se orgulhava da sua condição de contador de histórias, E você, caro Raimundo, que “só vai ouvir nas assembléias bisbilhoteiras da Rua Dom Pedro II”, é bem um guardião desta rica oralidade (assim sem “m” antes), “da palavra espontânea que sai da boca do povão”... Preservando-a para a posteridade.

Um comentário:

  1. Aqui no Sul, o nosso Érico se orgulhava da sua condição de contador de histórias, E você, caro Raimundo, que “só vai ouvir nas assembléias bisbilhoteiras da Rua Dom Pedro II”, é bem um guardião desta rica oralidade (assim sem “m” antes), “da palavra espontânea que sai da boca do povão”... Preservando-a para a posteridade.

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