segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

O ano em que parei de fumar


“Para os peixinhos do aquário, quem troca a água é Deus.”
Mario Quintana 

A graça de ver a fumaça esvair-se ao meu sopro, escorrendo líquida pelos meus momentos bons e outros nem tanto, perdera o gosto. Não lembro a hora, lembro apenas que esqueci o maço de cigarros ao lado do cinzeiro quase repleto de baganas e cinzas, que o ventilador se encarregava de espalhar sobre a mesa, os livros, meu quarto. Também dera! – a vida me escapava gota a gota, vermelha, empanturrando-me, roubando-me o fôlego e a consciência. Eu sumia em carne e energia, há anos. Então, de repente, minha chama da vida tremeluzia seu final. Cinquenta e três anos depois, eu apagava, finalmente. 

Então acorreram amigos, amores, parentes, e apelaram todos: viva!, e eu desobedeci. Doutores tomaram meu pulso, auscultaram meu peito, furaram-me, encheram-me de pilulazinhas de vida e me ordenaram: viva!, e eu desobedeci. Seres assépticos, claros, transparentes ligaram-me a tubos, despejaram litros e litros de sangue nas minhas desaparecidas veias, empurraram vento novo em minhas ventas e disseram: viva!, e eu desobedeci. E apenas esquecia de me despedir. 

Eita, nunca mais teatro! Nunca mais saudade! Nunca outra risada! O mesmo amor nunca mais! As tardes quedariam cinzentas, as ruas, vazias. E tantos livros pra ler! Tantos cheiros de mato! Tanta conversa não dita! E meu gato, quem o amaria? Qual mundo novo eu não visitaria? Alguém ainda diria meu nome pensando em mim?... 

Quando segunda-feira chegou e eu me esqueci de morrer, foi assim como a descoberta de outra primavera. Como se Thiago de Mello tivesse soprado em meus pulmões e anunciado, diretamente pra mim: "este homem renascido é um homem novo". Não resisti à ternura que me ofertaram e sobrevivi. Era o mínimo que eu podia fazer. 

Outro cigarro? Acho que agora não, obrigado. 

Lourival Veras 
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Especialmente para Paulo, o Nazareno, Nenzé, Carlos Felipe, José Wellington, Emiliano, Elanildo, Valneide, Gilvan, Célia, Raimundo, Ricardo Júnior, Neto – e todos esses que cuidaram de mim. Para Cleber Bonfim, Mauro Soares, Lourenço Torres, Hosana, Neto Gonçalves, Lucinha, Raimundo Candido, Edvaldo Barbosa, Elias de França, Adriana Calaça, Edilson Macedo, Edmilson Providência, Carlos Henrique, Raul, Edilson Pinto, Paulo Geovani, Rogério, Socorro Pires, Ailton – e todos esses que olharam por mim. Para Teka, Vania, Celina, Conceição, Veras, Socorro, Nego, Railce, Indinha, Mateus – e todos esses que rezaram por mim. E para Karla, é claro, essa que atrapalhou o trabalho da morte que me vigiava agourenta ao pé da cama, e ainda por cima me chama de meu amor. Obrigado por terem gritado: viva! Eu escutei.

Raimundo Cândido disse:

Poeta Lourival, Veras poeta! Que não seja a nossa audição a antena da alma! Você não nos desobedecia, pois o Lourival Veras está acima de um velho corpo cinquentão e o clamor  pela vida lhe chegava pela antena mais pura da raça, que é quando ouvimos pela LUZ e não pelo som.  O meu amigo Lourival é um poeta de luz, e ainda tem muito que nos iluminar!

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