segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

O ladrão de poemas


Elias de França 21/12/2012

 Ao poeta Raimundo Cândido
Andava a matriarca inquieta de um lado a outro da casa a remoer transtornos. Até errara a conta das três ave-marias que sempre rezava ao almoço, entre dois pai-nossos e dois pelo-sinais. Enérgica em autoridade e mando sempre era, mas de último passara a ordenar com certa irritação.

Às filhas, nada parecia fora do lugar: as contas em dias, como sempre, a despeito das mais de três décadas de viuvez da mãe. O trabalho era árduo, mas amparava a todos. Das duas irmãs que distante deixavam saudades, boa causa remia a tolerância, vez que em curso de ascendente carreira profissional na Universidade. O irmão homem mais velho em brilhante atuação no direito

A preocupar só o desnorteamento do Dim...  Nada, porém, de agora. Bom e manso desde menino, nunca fora promessa de pompa ou sucesso. Acanhado demais para sobressalto ou fama. A matemática bastava bem a sua pouca fala. Raciocínio não houvesse, a rigidez das fórmulas numéricas o socorria diante de seus percalços. Os desencantos de anos vinha a expiar em bebedeira e boemia. Deixara até a família. Desgosto causava, sim, mas fazer o que? A ninguém ofendia, além de si. E o sofrimento que causava à mãe não era bastante para o recente cismar.

Até que num instante de sossego, chama as filhas, as quatro mais velhas, em volta do sofá da sala. Tira do bolso do vestido de inteiro luto um tufo de rabiscos em papel pautado. Picote de arame de caderno mal extraído... poesia de sublime sentir. Distribui alguns entre as quatro, deixa que vejam os escritos... Em baixa voz, pede que busquem descobrir de Dim donde e de quem anda a copiar aqueles versos. Passa a explicar seus motivos: entre todas as provações, obstinou-se em educar os filhos dentro da moral e bons costumes. Inconcebível, pois, roubar um grão que seja, quanto mais poemas, luz da ideia perfeita. Pouco fizera ou dissera das noitadas e farras do filho, mas aquilo não toleraria. Exigiria retratação, ainda que às custas de ter que dobrar um homem feito de barba no queixo.

Pasma diante do riso discreto das filhas, seguido de testemunhos tantos empenhados a Dim, com lágrimas nos olhos. Nada repreende, entretanto. Eram esfarrapadas desculpas, tão, que tomou por piedade para com o irmão caçula. No íntimo, as frases de confiança das filhas lhe traziam algum alivio às angústias. Embora, bem soubesse, ele não seria capaz de tanto, Deus tudo tem e pode dar. O que aos homens é caminhar nas trevas, ao criador pode ser a estrada da boa ventura. Seguiria, como sempre, em vigília até o tempo lhe mostrar as verdades.

E o tempo da matriarca foi tanto que mostrou ao mundo um ladrão de poemas fazer nome, assim, sempre de roubar essências: da sertaneja e sua pele de barro e cera; da lenha e o fogão em chamas solares; das bodegas e seus gomos gigantes; das memórias o doce mormaço...  Renascido pela palavra, em prosa e verso forjados de idos e escórias, seu dizer é capaz de embalar o balé dos anjos, fazer cantar o concreto e alegrar o ar inóspito de todo o velho e dormente viver.

Um comentário:

  1. Elias, parabéns pela homenagem ao nosso poeta Raimundo Cândido. Ele merece. Cabra danado de bom. Valeu!

    Silas Falcão

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