sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Madrinha Francisca


               O repique de nove pancadas no sino do SS Sacramento: Dlão! Dlão! Dlão! Dlão! Dlão... anunciava a hora do Angelus, quando um mensageiro trouxe a notícia do despontar de Jesus Cristo, nosso Salvador. Pelas esquinas da cidade, uns temerosos católicos faziam o pelo sinal da Santa Cruz: Livrai-nos, Deus, nosso Senhor, dos nossos inimigos. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém...  Mas, nas duas torres da Matriz com a tinta branca empalidecidamente enodoada, as vigorosas badaladas perturbavam um bando de morcegos, que fugiam em louca revoada. O poeta, cronista e professor Luiz Bezerra, aproveitava, mais um episódio citadino, para confirmar o humor perspicaz: - Eles saem assim, feitos uns alucinados, porque não foram batizados!

                Os portãozinhos da longa mureta, que davam acesso ao pátio da Matriz, já estavam abertos naquele crepúsculo vespertino dominical de 1952, e o povo ia chegando para a retreta no belo coreto circular que ficava no alto calçadão da Matriz. Até já se falava, devido à polêmica campanha do rebaixamento das calçadas, em diminuir aqueles cinco degraus dificultosos, mas o Padre Bonfim sonhava em, além de retirar a mureta erguida pelo Pe. Juvêncio, construir as alas laterais da nave da catedral.

                O Talentoso músico, Mestre Chico sempre foi pontual.  A banda começava, exatamente, às 7 da noite, tocando o dobrado “Jaçanã na lagoa”, seguido de um belíssimo roteiro musical que deleitava ouvintes de bom gosto, até na maneira de vestir. Enterneciam-se quando a voz do cantor se diluía em Índia ”... seus cabelos nos ombros caídos, negros como a noite que não tem luar...”. Precisamente às nove horas, antes que apagassem as luzes dos postes, o sopro da flauta anunciava A Baratinha: “Chega, chega, minha gente, que o choro vai começá, repara como é gostoso, este samba de matá. A  Baratinha, a Baratinha, a Baratinha, bateu asas e voou.” Uma jovem Senhora de pele trigueira, olhos vivos, mente ativa, e puro espírito de alegria, que todos conheciam por Madrinha Francisca, rodopiava sem a mínima timidez por entre aquela gente requintada, dirigindo-se para a saída do pátio. Convidava a todos para que, amanhã de manhã, segunda-feira, não perdessem o 7 de Setembro, pois o Instituto Santa Inês, mais uma vez ia desfilar.

                Era um espetáculo ímpar. Uma emoção que aflorava com a beleza dos colégios desfilando em cores cívicas para equilibrar uma verde exibição das forças varonis no entorpecido sentimento nacional. O povo ia se perfilando na linha do meio fio da Rua Firmino Rosa, delimitada por uma grossa corda colocada pelo 4º BEC. Alguns pais instalavam o filho menor no cocuruto para que este pudesse “enxergar” uma pátria dentro do Brasil.

                O Instituto Santa Inês sempre foi o melhor a desfilar. E agora estava a capricho, com as balizas ostentando elegantes vestidos brancos e mãos calçadas em luvas, anunciando os motivos de cada bloco que passava: o cobiçado ouro de nossas riquezas, os emplumados índios, a colorida fauna, a verde flora. As meninas marchavam com jardineiras azuis, os meninos em calças caqui e engomadas túnicas, os mais pequeninos simbolizavam o futuro da nação, metidos nas alvas batas de médicos, nas togas de advogados ou nos capacetes de engenheiros. Ao som dos tambores da banda, uma propriedade do colégio, iam marchando e encantando o público para júbilo dos pais que acenavam orgulhosos para os seus rebentos. A cavalaria trotava com os filhos dos fazendeiros, chamando atenção para encerramento do show do Instituto.

                Houve um tempo, dizem os mais velhos, em que no planeta Terra reinava uma intolerável melancolia e os duendes, por compaixão da raça humana, inventaram a alegria. Saíram pelo mundo a ensinar a boa nova, como professores da arte do contentamento e da emoção. Em Crateús, a fada chamava-se Francisca de Araujo Rosa, que magicamente infundia, em seus alunos, um estado de extraordinária satisfação e alegria.

                Para o Instituto Santa Inês, o ano fora de muitas atividades sociais, culturais e cívicas, mostrando o empenho e a determinação da diretora em moldar seus filhos, como fazia questão de chamar os alunos, em cidadãos prontos para enfrentar o mundo com trato social, instrução e sabedoria.

                Enquanto se dirigia à casa do Prof. Luiz Bezerra, onde reside como hospede de honra, relembra os momentos do carnaval realizado no mês de fevereiro, para seus queridos alunos e das noitadas divertidas no salão do Crateús Clube. E vai cantarolando baixinho: Oh! Jardineira porque estás tão triste? Mas o que foi que te aconteceu? No mesmo instante em que lhe vem à mente o 24 de Junho, dia de São João. Ela brinca mentalmente até com o santo:  “Oh, cabra festeiro, esse joão!” Naquele dia, fora madrinha de fogueira de tantos amigos que até perdera a conta. Só a meninada no batismo na igreja superava em quantidade, para amadrinhar. Mas gostava mesmo era de “passar fogo” nas noites estreladas do sertão, banhada pela luz da Lua, ouvindo o pipocar de fogos. As brasas inda fumegando em vermelhidão e os dois, madrinha e afilhado, caminhando em semicírculo até encontrarem-se para então darem-se  as mãos.  Ela proferia: ” São João dormiu, São Pedro acordou, vou ser sua madrinha que São João mandou”. O afilhado, imediatamente, repetia: “São João dormiu, São Pedro acordou, vou ser seu afilhado que São João mandou”. Repetiam o ritual três vezes, circundando as brasas vivas da fogueira. No final, o afilhado orgulhosamente solicitava: - Beça, Madrinha Francisca! Deus te abençoe, meu afilhado! Eram momentos de poesia e para toda vida!

                Como a trágica filósofa-matemática Hipártia,  Madrinhha Francisca andava um passo à frente de sua época. Usava as artes diversas, a ciência, a natureza, a dança, o teatro, os jogos e principalmente a música para o desenvolvimento sócio-efetivo das crianças, tornado-as mais alegres e receptivas no processo de aprendizagem, criando uma nova dimensão na vida dos seus privilegiados alunos, coisa que só aconteceu nas antigas sociedades gregas. Criou a Orquestra Morais Rolim, integrada por talentosos discípulos, em homenagem ao amigo comerciante. Sempre que a professora retornava de suas constantes viagens, a orquestra ia esperá-la no patamar da estação, e com o próprio Morais a comandar a orquestração inicial: “Tum, Tum, Tum...tumtumtum... É Morais Rolim! Tum, Tum ,Tum...tumtumtum... É Morais Rolim!”

                De longe, avista o Prof. Luiz Bezerra no portão da casa, como se já aguardasse pela chegada dela e logo imagina “Isto foi bem coisa da Airan, que ordenou que ele fizesse as pazes comigo!” Reclamara de uma pequena sova que o menino Hermínio, seu afilhado, levara do pai e a reação do professor foi brusca: - Se você está achando ruim que eu eduque meu filho,assim, está ali a porta da rua!

                Mal se aproximara da casa, o professor vai logo falando: - Chica, vamos acabar com isso! Deixe de se antipática! Os dois titãs da educação fizeram as pazes, mas a comemoração foi um longo abraço na sua grande amiga Airan Veras, esposa do Prof. Luiz Bezerra.

                Outra curiosa amiga, um dia lhe perguntou: - Madrinha Francisca, a senhora gosta tanto de festas, mas porque não casou? Ela pacientemente explicou: - Vou lhe dizer uma coisa minha companheira, o Padrinho Totonho Rosa, que me criou, não queria que eu dançasse, que eu me divertisse e não permitia que eu pegasse na mão de nenhum homem, imagine namorar.Um dia, ele quis me casar, à força, com um motorista dele, fiquei detestando casamento. Eu moro só porque é o jeito, mas nunca me acostumei. Também... Ninguém aguentaria minha pisada, é para cima e para baixo, neste mundo de meu Deus! Aprendi a dançar sozinha, gosto de festas porque eu sou é Araújo!.

                A querida professora nos dá a impressão de ser a própria estrofe de um belo poema da Cecília: “Adestrei-me com o vento e minha festa é a tempestade!”

              E se hoje, você andar pela Rua do Instituto Santa Inês, antiga Érico Mota e, inesperadamente, ouvir um grito de “Anarriê, anavan tur... Olha o balancê!!!” com certeza é a digníssima e saudosa professora Madrinha Francisca que adorava um exuberante viver, como uma abelha venera o néctar das flores para elaborar o mais doce mel!

 Raimundo Cândido

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