sábado, 16 de março de 2013

Os Profetas da Chuva



O sertão é um inexplicável lugar de milagres que nos seduz e nos inspira, mesmo pelos raríssimos prazeres que colhemos entre laboriosas dificuldades. Ele faz com que a gente enfinque raízes no chão, inospitamente seco, mas não nos educa como bem educou as plantas xerófitas para sobreviver no semi-árido mortificante, adequadas a hibernar em vida latente no penoso verão. Nós, sertanejos obstinados e subordinados ao duro agreste inadaptável, padecemos à falta d’água e afligirmo-nos ao ver o espírito da natureza sendo alquebrado pela cruel sequidão, lamentando o triste mugido do gado, sem ter o que comer e sem ter o que beber.

Disse, Leonardo da Vinci, um dos grandes sábios da humanidade: "Se tens que lidar com água, ou com a falta da mesma, sonda primeiro as experiências, depois consulta a razão". Antes de cair, num chuvisco fino ou como uma chuva medonha diluindo-se jubilosa, espargindo o perfume da terra molhada, ela dá um indício que vem. E alguns sertanejos sabem discernir os aspectos indicativos dos céus e os ocultos sinais da natureza. Formados nos descampados do sertão, como os profetas bíblicos que são produzidos nos desertos áridos, os adivinhos, como os cangaceiros, os beatos e os penitentes, estão profundamente identificados com os efeitos inevitáveis das secas. Ela, voraz e perversa, sempre vem e mata tudo: a roça, o curral e o lar, e só deixa uma nesga de esperança, inseparável da rija alma do rústico homem do campo, como seu último e doloroso bem, afixado nas fibras do coração.  

Dizem, os doutos, que nessas épocas difíceis, dos bichos de fôlego só escapa mesmo o fole.  E o sertanejo sabe que é bater os paus da porteira, se benzer e esperar, esperar somente... Por isso, é bem vinda a boa previsão dos profetas agricultores que aparecem, um em cada lugarejo, um em cada rincão. Desde que o monge capuchinho Frei Vidal da Penha, nos idos de 1870, missionou pelos Sertões de Crateús profetizando que a Praça da Matriz seria uma cama de baleia – no mínimo já prevendo chuvas para o Lago de Fronteiras – ou de quando os índios da Ibiapaba trucidaram o Jesuita Francisco Pinto e percorriam em procissão pelo cume da serra, com os ossos do velho padre a chocalhar dentro de um cesto de taquara de cipó, a implorar chuvas, que o rústico agricultor aprendeu a fazer previsão.   

                E os indícios da natureza são tantos: a floração do juazeiro em setembro, que é também o mês do ipê florir e dá frutos e do mandacaru em fevereiro que são bons sinais de quadra invernosa. A brisa fria do vento do “Aracati” se repetindo todo dia 18, de junho a setembro, é também um sinal. Verifique as alterações dos movimentos das formigas, dos cupins, dos sapos, das lagartixas, das cigarras e dos maribondos com suas casas nos cantos das varandas. Mas se um pássaro chamado joão e sua companheira maria-de-barro fizerem uma casinha com abertura para o poente, teremos muita chuva, sim senhor! A primeira lua de janeiro deve ser “atoalhada” por uma forte nuvem e se você puder, de uma olhadinnha no pé da orelha de um jegue, estando suado, é muita água por vir.

                Houve época em que nas Carrapateiras, Distrito do Realejo, na frente da casa do Senhor Firmino Barbosa, pai da Chica do Zé Dobrão, à tardinha, numa longa tora de madeira apoiada por reforçada forquilhas, os trabalhadores da roça iam se abancando para ouvir o profeta Firmino: - Vocês notaram como os mandacarus já estão florindo, é muita chuva! Eu percebi também umas alterações na estrela-d’alva! O Profeta do pé da serra já misturava os observações dos astros com as coisas da natureza, buscando uma melhor previsão.

                Na localidade de Jitirana, no rumo do açude carnaubal, o Zé Balé e o Juvenal Paraibano eram insistentemente procurados por previsões meteorológicas e também por outro dom preciosíssimo. Eles adivinhavam aonde havia água rasa nos subsolos, com ajuda de uma varinha bifurcada de madeira e um peão a girar, dependurado num cordão. Seguravam a forquilha com as palmas da mão para cima, envergando a outra extremidade para o chão. Quando a vareta vibrava era por que já estavam passando por cima de água subterrânea. Possuíam uma sensibilidade às radiações telúricas como se o próprio corpo fosse um campo magnético a detectar o valioso líquido debaixo da terra por meio daquela anteninha de madeira.   Os técnicos, atados aos conceitos científicos, chamam isso de radiestesia humana. Quando os músculos do Juvenal começavam a vibrar, uníssono à pontinha da forquilha, ordenavam: -  É aqui, podem cavar que tem água! Uma probabilidade de acerto de 100%!

                Outro profeta que dificilmente errava uma previsão era o Senhor Citó Mourão, morador da localidade de Tourão. O rico fazendeiro Raimundo de Pinho, apressado (Dizem que os Taiocas são assim mesmo!) em comprar uma partilha de gado de um amigo aperreado, consulta o Citó, que logo o avisa: - Raimundinho, as águas este ano são fundas!  E o fazendeiro desiste do negócio. Com a quadra invernosa se mostrando muito boa para o gado, Seu Raimundo de Pinho volta para reclamar do adivinho: - Mas Citó, você me deu um prejuízo! O profeta se defende, apontando o Riacho Tourão, ali, nas alturas: - Entre aí, Raimundinho, e veja se as águas não estão fundas!

                Dou crédito a um especialista quando este acredita no que diz, principalmente se passou a vida inteira observando os sinais proféticos da natureza e dos astros. É o caso do Senhor Ossian Machado Portella, um aposentado da Coletoria Estadual, tal qual o guerreiro e poeta irlandês, também chamado Ossian, gerador das genuínas baladas provenientes da Escócia. O profeta crateuense afirma, peremptório: - Professor, as observações na natureza são para as previsões imediatas, de pouquíssima duração. Eu me oriento pelos astros, sou um seguidor do inglês Mister Huss, o engenheiro que construiu as primeiras estradas de ferro de São Paulo até o Ceará. E o Senhor Ossian continua a me dar aula sobre Francis Reginald Hull e sábias lições meteorológica:  - A linha ferroviária da Serra do Mar, onde a gente ver incríveis obras de arte, como três túneis belíssimos, três viadutos com estrutura metálica, viadutos sobre pedras e trinta eclusas abobadadas, foi ele quem executou. Por aí, você tira meu amigo!  Ele pesquisou, incansavelmente, o fenômeno secular das secas no nordeste e descobriu que havia um estreita correlação entre a frequência dessas anomalias meteorológicas e o ciclo undecimal das manchas solares. Ao apresentar o famoso Diagrama das Secas tornou-se a maior autoridade em estudos climáticos do Nordeste . Este sábio engenheiro criou um amor tão grande pelo Ceará que um dia aspirou assim: "Desejo que após a minha morte, meu corpo seja envolvido na bandeira da minha pátria e que aos meus pés sejam amarradas barras de ferro da usina da Ceará Light, em seguida coloquem-me numa jangada e lancem meus despojos mortais a três milhas da costa cearense.”

 Ossian continua: - Estou de olho no El Ninho, que é uma explosão dentro do Pacífico, na sua massa de ar quente que se atravessa sobre o Estado de Minas impedindo a passagem de chuvas para o Nordeste. Vou vigiar, também, a linha do sol sobre o equador na passagem do equinócio, que é o um fenômeno do qual a Igreja tira proveito, para o dia 19, o dia de São José. E qualquer novidade eu lhe aviso, meu amigo!

Fico a imaginar como seriam os funcionários da FUNCEME com o denodo deste cearense no desejo de prever as chuvas ou a falta delas, depois que captam os dados dos céus, da terra e do mar, coloca nos melhores computadores para analisar, e ainda vão à imprensa, escrita, falada e televisiva, só para se vangloriar.

Vi, recentemente, um dos grandes pecuaristas de nossa cidade bastante preocupado, o Senhor Milton Menezes que, dia a dia, observa contrito, o seu gado morrendo. Liga para o filho, Cândido Neto, em Fortaleza: - Netinho, que você me diz das previsões? E o Cândido Neto, com fina ironia pelas previsões oficiais, responde: - Pai, por aqui só tenho os dados da FUNCEME, que não tem perigo de errar, ela ousa afirmar que, este ano, o inverno vai ser abaixo da média. Desanimado, Seu Milton desliga o telefone, o semblante cansado é um pálido desalento e fica, como todo criador crateuense, com vontade de bater os paus da porteira e se benzer, esperando pela maior alegria do sertanejo, que é ouvir os pingos tamborilando nas telhas, como música, onde cada gota cadente é um hino uníssono e festivo de ninfa vivificadora: a chuva!

Raimundo Cândido


Zacarias Bezerra de Oliveira disse...

É a sabedoria popular dizendo que o Homem precisa, antes de tudo, aprender a CONVIVER com a seca e não com bater. A natureza é sábia e se adapta ao meio. O Homem teima em lutar, em ir contra e sempre se dá mal, acaba não tirando proveito do seio
José Alberto de Souza disse...

A sua crônica me fez lembrar do filme Dersu Uzala - um dos melhores que já assisti - sobre um habitante solitário das florestas da Sibéria que serviu de guia a um oficial do exército russo, auxiliando-o em tarefas de demarcações territoriais e impressionando-o por seu conhecimento intuitivo, tão semelhante às observações telúricas do sertanejo.
É o homem despojado da tecnologia que se vale da contemplação da Natureza e que dialoga com ela na ausência de qualquer contato humano.

2 comentários:

  1. É a sabedoria popular dizendo que o Homem precisa, antes de tudo, aprender a CONVIVER com a seca e não com bater. A natureza é sábia e se adpata ao meio. O Homem teima em lutar, em ir contra e sempre se dá mal, acaba não tirando proveito do seio.

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  2. A sua crônica me fez lembrar do filme Dersu Uzala - um dos melhores que já assisti - sobre um habitante solitário das florestas da Sibéria que serviu de guia a um oficial do exército russo, auxiliando-o em tarefas de demarcações territoriais e impressionando-o por seu conhecimento intuitivo, tão semelhante às observações telúricas do sertanejo.
    É o homem despojado da tecnologia que se vale da contemplação da Natureza e que dialoga com ela na ausência de qualquer contato humano.

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